Amélia, chamemos-lhe assim, recorria constantemente a uma frase construída por si para encaixar propositadamente naquela vontade difícil de vencer, uma espécie de lengalenga feita à pressão para desculpabilizar qualquer sentimento de culpa ou vestígio de remorso.
“Trabalho muito, nos momentos de alívio vou ver montras, distrair-me, compro o que me apetece porque eu mereço.” Sobretudo roupa, muita roupa, e artigos para a casa quando teve o seu espaço. Pelos seus cálculos de cabeça, terá roupa nos armários e cómodas que daria para usar durante três anos sem repetir a toilete uma única vez. Trabalhar, aliviar a cabeça, entrar nos centros comerciais, comprar, comprar, aquele momento de satisfação, uma sensação de bem-estar e uma alegria que, no entanto, não duravam para sempre. A satisfação compensava os dias intensos de trabalho. E esse clique acontecia muitas vezes.
Amélia começa a sentir que aquele alívio comandado por impulsos afinal não faz sentido. A vários níveis. Nos armários, na carteira, na cabeça. “Batia um sentimento de tristeza e de vazio”, conta. Chegar a casa, voltar a experimentar e confirmar que, na verdade, aquelas compras não têm explicação ou uma base de sustentação. Não havia necessidade, havia sim uma compensação. E o confronto com a realidade.
Três vestidos parecidos com a última compra e que ainda não tinham sido estreados. Por vezes, a aquisição daquela camisola que naquele momento era o máximo rapidamente era substituída por outra obtenção sem que a memória conseguisse lembrar-se da última peça que era fantástica. “Se me esquecia era porque não era assim tão maravilhosa e imprescindível.” E depois as contas. “Esse dinheiro era significativo, 150 a 200 euros por mês que gastava em coisas de que não precisava.” Sentia-se mal, enredada em compras sem justificação, sem necessidade.
Foram dez anos assim, até há alguns meses. Com sentimentos de culpa, promessas de mudança, recaídas constantes. As conversas com a irmã, que se reconhecia em vários momentos dessa satisfação e dor, ajudaram. Fizeram um pacto de se apoiarem uma à outra, resistirem, não caírem em tentação. E tem resultado. “Estou em fase de tratamento, identifiquei que tenho um problema que quero resolver”, garante Amélia, na casa dos 30 anos. Agora raramente entra em shoppings porque sabe que acabaria por ceder e o dinheiro que poupa sempre dá para uma viagem que lhe assegura maior prazer e que permite descansar. “Sinto-me mais contente, tenho consciência de que o que fazia era uma estupidez.”
Gastar milhares de euros por mês em roupa, sapatos, acessórios de moda, artigos de decoração, casas ou carros, pode ser o pão nosso de cada dia das celebridades. Porque são lindas e têm de alimentar o culto da beleza. Porque são jovens e têm de parecer eternamente jovens. Porque são ricas e têm muito dinheiro para comprar o que lhes apetecer, quando lhes apetecer, nas quantidades que lhes apetecer.
Kim Kardashian, Beyoncé ou Rihanna são alguns exemplos que encaixam neste perfil, segundo notícias da imprensa internacional. A cantora Mariah Carey, dada como consumidora compulsiva, até terá usado cartões de crédito dos empregados para compras e cirurgias plásticas, depois de a equipa que gere as suas finanças não lhe passar mais cartões para as mãos. Elton John também teve um passado de viciado em compras. E o músico Noel Gallagher, dos Oasis, tem 99 guitarras e centenas de pares de sapatilhas Adidas vintage que admite que nunca irá calçar.
Jane Fonda está do lado oposto. Acaba de dizer ao mundo que não vai adquirir mais uma única peça de roupa. A atriz de 81 anos anda envolvida num movimento de combate às alterações climáticas. Às sextas-feiras veste um casaco vermelho, a sua última compra em peças de vestuário, e sai para a rua em ações de defesa do ambiente. São manifestações semanais chamadas Fire Drill Fridays. Foi numa dessas iniciativas, no primeiro dia deste mês, que anunciou a sua posição de não mais gastar dinheiro em roupa. E ponto final.
Tristeza, ansiedade, depressão
A sociedade de consumo não facilita e os chamamentos surgem de todo o lado. Há cursos de marketing, publicidade, formações intensivas de como construir uma montra, como vender, as mil e uma técnicas de persuadir. Os consumidores são o alvo. “O ato de comprar é um ato que o nosso cérebro processa como algo positivo.
Quando se compra alguma coisa fica-se na posse de um objeto”, realça Joaquim Cerejeira, médico psiquiatra e professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. O cérebro está programado para ter. “Comprar dá uma sensação de recompensa, é a novidade, é um produto novo, e o cérebro fica satisfeito.” Comprar, comprar, mesmo o que não faz falta, preencher aquele vazio que remói. “As compras servem para compensar um dia que correu mal ou uma má notícia que se recebeu.”
A tristeza, a ansiedade, a frustração, o stresse, uma depressão, contribuem para compras sem sentido. Obter o que não se precisa acaba por colmatar lacunas e alimenta a falsa ideia de que a felicidade também depende da aquisição de objetos. “Hipervaloriza-se o que se compra e nunca se reconhece que foi um ato impulsivo. E depois não há vontade de se desfazer de um produto porque seria o reconhecimento de um erro.”
“É um mecanismo de defesa que resulta algum tempo, e parcialmente, mas depois acaba mal”, diz o psiquiatra. E quando interfere no dia a dia e na relação com a família e com os filhos é preciso um travão. É o dinheiro que se gasta sem explicação e que faz falta para outras coisas essenciais, são as críticas a esse comportamento, é um mal-estar que pode comprometer a felicidade com o cônjuge ou com quem está à volta. É um ciclo vicioso.
Aquela tensão, comprar, comprar, o alívio, o remorso e a culpa e um processo que se repete vezes sem conta. “Os casos mais extremos estão associados a momentos depressivos e de ansiedade”, observa. É raro alguém chegar a uma consulta a admitir que compra sem sentido, muito menos que é comprador compulsivo (doença descrita internacionalmente como oniomania). Roupa, sapatos, joias, produtos de beleza e utensílios domésticos são os objetos mais adquiridos em excesso. É o ato de comprar que dá prazer e é sobretudo praticado por mulheres. Há uma explicação para que assim seja baseada na própria evolução da espécie.
Nos primórdios dos tempos, os homens saíam para caçar e as mulheres ficavam responsáveis por acumular os alimentos para que nada faltasse em casa. Os cérebros moldaram-se desta forma. Os papéis alteraram-se e os cérebros não acompanharam as mudanças.
O apelo ao consumo, as facilidades que surgem de todo o lado, os créditos ao virar da esquina, o endividamento. Catarina Frade, professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Sociais, frisa que este assunto não é assim tão linear. Há fatores a pesar nesta equação. Áreas geográficas, faixas etárias, condições socioeconómicas, gostos, necessidades, vontades.
Há ainda a tentação dos juízos de valor sobre o que cada um deve consumir e a eterna pergunta se existe ou não uma linha que define o que é comprar em excesso e comprar o que é necessário. “Os estilos de vida, os padrões, as necessidades, são tão variados.” O mesmo produto num outro contexto, num outro país, numa outra realidade com mais ou menos fôlego financeiro pode ter uma leitura completamente diferente.
E as ideias moralizadoras do que é consumo supérfluo, e o que não é, surgem à superfície com facilidade. “As pessoas reagem a estímulos. As compras por impulso são, de facto, um problema”, assinala. E os instrumentos financeiros ajudam, sobretudo os cartões de crédito. “Há uma enorme oferta, os consumidores estão sempre a ser ‘bombardeados’ com publicidade, com iniciativas, com promessas de qualidade, conforto, estatuto”, sublinha.
Tudo favorece as compras acima das necessidades e, neste momento, o mercado financeiro tem dinheiro para emprestar e a moeda tem de circular. O que é necessário e o que é supérfluo? Essa é a grande questão.
As ratoeiras
• Uma compra, duas compras, muitas compras. Uma compra leva habitualmente a mais compras no mesmo dia ou até na mesma hora. A sensação de que tudo está desatualizado nos armários de casa agiganta-se e cai-se na tentação de substituir o que supostamente é velho por um novo artigo.
• Comprar para melhorar o humor, levantar o astral. O dia foi difícil, é preciso mudar a agulha, ir à loja favorita, fazer aquela compra para compensar um mau momento. Uma pequena recompensa, uma alegria passageira.
• Os medos. O medo de amanhã já não ter dinheiro. O medo de amanhã aquela peça já não estar na loja. O medo de não acompanhar a moda. O medo de não ser como os outros. O medo de ficar para trás.
• Saldos, promoções, ofertas, descontos. É quase tudo a mesma coisa e tudo se encaminha para deitar mão ao que não se planeou.
• Tudo mais barato. Duas calças pelo preço de uma. Três camisolas pelo preço de uma. E aquela ideia que se economiza quando, na verdade, se adquire mais do que o que se precisa. E, por vezes, já se sabe: o barato pode sair caro.
• O vendedor implacável, com a lição estudada, que sabe atrair a confiança, que sabe falar ao coração, que conhece tão bem a qualidade daquele artigo que não deve haver melhor à face da Terra. E os gastos multiplicam-se.
• Comprar para o futuro. As calças dois tamanhos abaixo para quando se perder peso. Ou o casaco acima um tamanho porque a tendência é para engordar uns quilos nos próximos meses e depois o botão não aperta. Os sapatos de sonho para uma ocasião tão especial que pode nem acontecer. Aquele futuro que nunca mais chega.
• Comprar uma peça única, o que os outros não têm, e quanto mais caro for, mais exclusivo e único parece. O que é incomum normalmente chama a atenção.
• Comprar o que está na moda, o que toda a gente tem. Mesmo que contrarie o estilo, mesmo que faça estragos no orçamento, mesmo que não se precise. Se todos têm, é preciso ter.
• As estratégias bem afinadas de quem vende. Música agradável, cores quentes, cheiros apetitosos, temperatura confortável, produtos dispostos nos locais certos. Tudo para provocar uma sensação de bem-estar a que é quase impossível resistir.