Heróis sem aviso

Francisco Soares

Francisco Soares (Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Resgatar uma vida numa nuvem de fumo

Francisco, funcionário de uma empresa de toldos, ainda hoje não sabe se o devia ter feito. Só sabe que, no momento em que percebeu que estava um vizinho dentro de um apartamento em chamas, nem pensou em mais nada. “Foi o instinto.” Foi há pouco mais de um ano. Era segunda-feira de manhã e “ia com o pequenote tomar um cafezito”. Só que, assim que saiu do prédio, foi dar com os vizinhos de olhos pregados nas alturas, num dos últimos andares do bloco 12 de Vila D’Este (Vila Nova de Gaia).

Da janela, o fumo, negro como breu, saía às carradas. “A minha primeira reação foi perguntar se havia alguém dentro de casa. Quando me disseram que sim, só pensei em pedir à vizinha para me ficar com o miúdo e em ir lá em cima.” À medida que subia, ia dando ordens a quem encontrava para sair. Ele não. Seguiu até ao andar em chamas e desatou a bater à porta.

“Grande chefe, vai sair daí ou vou ter de arrebentar a porta?” Lembra-se de fazer a pergunta umas quantas vezes, sem que do outro lado tenha chegado qualquer resposta. Até que, das profundezas, emanou um suspiro. “Não consigo.” O instinto voltou a apoderar-se dele. “Então arrume-se, que vou deitar a porta abaixo.” Não foi fácil. Deu-lhe um, dois, três, quatro pontapés. E a porta não cedia. Tombou por fim, um sem fim de “patadas” depois.

“Estroncou. Foi fechadura, foi tudo. Os nervos já eram tantos que nem sei.” O resto é um puzzle de imagens que ainda tenta compor. Foi o vizinho prostrado no chão, meio no corredor, meio na divisão em chamas, já a ficar inconsciente, enegrecido de fumo, queimaduras em várias partes do corpo, nas mãos sobretudo. Foi Francisco a berrar-lhe se era doido, por querer salvar a casa em vez de fugir, antes de o arrastar para fora do apartamento. Foi outro vizinho a aparecer para o ajudar a transportar o homem para baixo.

A ambulância que demorou a chegar e ele a esgueirar-se de fininho assim que pôde, porque não gosta de câmaras. A esposa que lhe perguntou se era maluco. Os dias em que andou a rever o episódio em “loop” e a pensar que se algo tivesse explodido podia ter acabado mal para todos.

Depois disso, não viu mais o homem (“um vizinho até me disse que já faleceu”). Nem ninguém lhe agradeceu. Não se apoquenta. “Desde sempre que gosto de ajudar. Já quando ia para a praia com os meus amigos, se alguém estivesse atrapalhado na água, íamos lá ajudar, fazer aqueles salvamentos rápidos.” E ainda assim, Francisco, 28 anos, resiste a pôr-se em bicos de pés. “Não me sinto um herói.”

Margarida de Santos Sousa

Margarida de Santos Sousa (Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Bravura de sexta-feira 13

Margarida de Santos Sousa, 60 anos, emigrante em França há mais de 40, ainda se lembra exatamente do que pensou naquela sexta-feira 13 dos horrores, quando viu uma multidão invadir-lhe o pátio do prédio. Passava pouco das nove da noite, ela lá estava, tranquilamente ao telefone, a mascarar as saudades da filha, enquanto decorria uma festa de aniversário numa outra entrada do edifício.

“Lembro-me que lhe disse: ‘Olha, enganaram-se. Vêm todos para aqui. Espera lá que já lhes vou ralhar. Estão a vir com uma fúria’.” A fúria era outra, a dos três membros do autodenominado Estado Islâmico que irromperam Bataclan adentro com armas de guerra e desataram a disparar sem freio, baleando mortalmente 89 pessoas. Foi tudo ali, perto da rua de Margarida. Nem deu por ela. Só estranhou a multidão a invadir-lhe o pátio.

Não vinham para uma festa. Vinham de um enterro. Um enterro em grande escala. “Encharcados de sangue”, recorda Margarida, porteira e residente de uns prédios próximos do Bataclan há quase três décadas. “Uma pessoa fica um bocadinho paralisada. A princípio ouvi ‘tiroteio, tiroteio’ e durante uns minutos parecia que nem sabia o que era um tiroteio. Só depois é que acordei.”

Foi aí que a bravura se encarregou dela. Nem medo, nem sangue, nem a vertigem da palavra tiroteio a rodopiar-lhe na cabeça. Foi só bravura. Abriu a porta de casa, para que a multidão ensanguentada pudesse esconder-se do terror e passou horas a prestar os primeiros socorros, com a ajuda de uma médica do prédio. “Não tive tempo para pensar em mais nada, a não ser em ajudar.”

Entre os feridos, havia uma francesa com duas balas nas costas. E medo. Um medo capaz de revolver as entranhas mais afoitas. “Temiam que viesse alguém atrás deles, para continuar o que tinha começado. Só pediam que apagássemos as luzes e fechássemos as cortinas.” O estado de alerta durou quase até às cinco da manhã, quando o grupo, de dez a 15 pessoas, saiu.

A gratidão, essa, não mais se foi. “Muitos ligaram-me a agradecer e fomos mantendo contacto. Até houve uma rapariga que me veio trazer um ramo de flores.” Di-lo com uma ponta da satisfação pela missão cumprida. Mas apressa-se a enxotar a vaidade. Mesmo que, meses depois, tenha sido condecorada pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com o grau de Dama da Ordem da Liberdade.”Chegaram a dizer que era uma heroína. Não sou. Sou igual ao que era. Não podia fechar a porta com tanta gente cheia de sangue. Que horror, seria um monstro.”

Cláudio Cotrim

Cláudio Cotrim (Foto: Rui Miguel Pedrosa/Global Imagens)

A pergunta salvadora

Há pequenas decisões na vida que podem fazer toda a diferença. No caso de Cláudio Cotrim, 23 anos, duas delas ajudaram a salvar uma criança. A primeira aconteceu ainda na escola, quando, durante o curso profissional de técnico de receção, o jovem natural de Ferreira do Zêzere teve uma aula de suporte básico de vida e primeiros socorros. Já depois de ter aprendido técnicas de imobilização e reanimação cardíaca, Cláudio colocou ao enfermeiro uma questão que o moía fazia tempo, até por ter sobrinhos pequenos: “E no caso de uma criança estar engasgada, o que se deve fazer?”

Por essa altura, parte dos colegas já tinha saído da sala. Cláudio ficou. Parecia que estava a adivinhar. A adivinhar que naquele dia de abril, quando ia a passar de carro à porta do café, ia ver uma avó desesperada, a tentar valer a uma menina de dois anos e meio, que se tinha engasgado com um rebuçado. Foi aí que Cláudio tomou a segunda decisão definidora. Parou o carro, correu para a menina e pôs em prática os ensinamentos daquela bendita aula de primeiros socorros.

“Estava roxa, sem ar. Já não conseguia segurar-se em pé. Por isso, fiz o que me ensinaram.” Ajoelhou-se, curvou a menina sobre as pernas, segurou-lhe com uma mão no peito, enquanto a outra lhe batia nas costas. Segundos depois, sentiu o alívio tomar conta dele. A menina começou a chorar. “Fiquei preocupado porque o rebuçado não saltou. Mas depois foi vista pelos bombeiros e eles confirmaram que estava tudo bem.”

E Cláudio descansou, por fim. Com a aflição, a avó mal lhe agradeceu. Mas uma amiga que soube da história fez questão de a divulgar no Facebook. E aí começou uma cadeia de elogios, que se estendeu dos amigos ao trabalho. “Houve várias pessoas que vieram ter comigo, para dizer que foi um grande ato. Os meus amigos costumam dizer que, como estão com o herói de Ferreira de Zêzere, até já podem beber mais uns copos. E os meus colegas de trabalho [é funcionário de uma empresa de retalho] começaram a brincar comigo, a dizer que agora que trabalham com um herói, era melhor poupar-me mais um bocado”, conta, a rir.

Em casa, a festa também foi grande. Mesmo que o ato heroico de Cláudio não tenha sido uma surpresa. “Sempre adorei ajudar os meus pais, até em coisas simples, como as lides domésticas. E se vir alguém em apuros não consigo virar a cara. Em tempos, ajudei uma rapariga diabética, que estava desmaiada. Como o meu pai é diabético, sabia o que tinha de fazer. Medi-lhe os níveis de glicemia e pus-lhe açúcar na boca.” As tais pequenas decisões que fazem toda a diferença.

Rafael Faustino

Rafael Faustino (Foto: João Vieira/Global Imagens)

Madre Teresa de Tomar

Desde que se lembra de ser futebolista que Rafael Faustino, 22 anos, tem o vício de se aproximar sempre que alguém aparenta estar maltratado. “Acho que tem a ver com o facto de ter sido sempre capitão. A minha mãe costuma chamar-me Madre Teresa de Calcutá”, diz, meio tímido, meio a rir. Tanto que, há uns meses, quando um jogador adversário chocou de forma aparatosa contra o guarda-redes e ficou estatelado no chão, sem pingo de consciência, o jovem tomarense já tinha sido uma ajuda preciosa.

“Fui lá virá-lo de lado, para não haver o risco de sufocar.” Agora, em março, o médio defensivo do União de Tomar e finalista do curso de Fisioterapia voltou a chegar-se à frente para prestar socorro. No caso, desatou a correr para Inês, uma jovem de 19 anos, adepta da equipa adversária. Aconteceu nos últimos minutos do jogo entre o Amiense e o União de Tomar, a contar para o campeonato distrital de futebol de Santarém.

“Tínhamos acabado de fazer o 5-1 e eu estava a voltar para o meio-campo defensivo quando me apercebi que havia um grande aparato na bancada, à volta de uma adepta do Amiense. Pareceu-me que estava a ter um ataque epilético”. Rafael nem hesitou. Virou as costas ao jogo, saltou o muro que dava acesso à bancada e pôs-se em ação. “A minha preocupação foi protegê-la do muro, para não se magoar, e pô-la de lado, para não se engasgar. Depois, foi esperar que as convulsões abrandassem. Ela ao início estava muito perdida. Estive sempre a falar com ela e a perguntar-lhe se sabia como se chamava e onde estava.”

A preocupação fê-lo perder por completo a noção do tempo. A única referência que tem é a da mãe, que garante terem passado uns 20 minutos. Foi já mais tarde que Rafael percebeu que Inês não tinha tido um episódio epilético – antes, um ataque de convulsões provocado por um quisto que tem no cérebro. Nada que belisque a gratidão da jovem. “Depois desse episódio, ela foi procurar-me ao Facebook, para me agradecer. E fomos mantendo o contacto, falando do que se estava a passar.”

Entretanto, até já foram juntos à televisão. E o gesto de Rafael tem-lhe valido um chorrilho de distinções. “Logo no jogo recebi o cartão branco, do fair-play. Depois, o patrocinador do União deu-me uma taça de agradecimento, por honrar os valores do clube que represento. E recebi um prémio da Associação de Futebol de Santarém, por ter tido uma ‘atitude louvável’.” Para orgulho da mãe, feliz por ter em casa uma espécie de Madre Teresa de… Tomar.

Liliana Oliveira

Liliana Oliveira (Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Amor de mãe, nervos de aço

Quando, com 10 e 11 anos, passava horas a ler os vários fascículos da “Enciclopédia Médica da Família” que o pai tinha em casa, Liliana Oliveira, 41 anos, estava longe de adivinhar que isso a ajudaria a salvar a vida do filho. Os maiores sustos da vida teimam em chegar sem aviso. O dela aconteceu a 5 de agosto de 2017, no dia em que o Benfica disputava a Supertaça de futebol. O futebol diz-lhe pouco. Mas disso não se esquece.

Porque se lembra bem de o filho, então com três anos, estar sentado à mesa da sala, olhos postos no televisor. Lembra-se bem que, por ter achado tanta graça, lhe tirou uma foto e publicou no Facebook. Lembra-se que, pouco depois, o “Pedrinho” começou a fechar os olhos. E de pensar que o sono estava a tomar conta do garoto. Como tantas vezes faz, aproximou-se da cadeira para o ir deitar. Foi quando estava a chegar ao pé dele que o pesadelo começou.

“Começou a revirar os olhos e ia cair desamparado. Agarrei-o já no ar. Tinha os lábios roxos e estava completamente rijo. A minha filha mais velha [também lá estava] costuma dizer que ele parecia um boneco.” Fernanda, a filha, ficou em pânico. À distância de dois anos, ainda se adivinha a aflição. Liliana, a mãe, sentiu o medo a querer vergá-la. Mas não deixou que os nervos levassem a melhor. Lembrou-se das enciclopédias que tinha lido em catraia, dos episódios do “Serviço de Urgência” também, e deitou o filho sobre a mesa.

Começou a fazer-lhe massagem cardíaca e respiração boca a boca. Lembra-se que, pelo meio, chamou o pai, e que também ele ficou em pânico. Até que o choro do cachopo rasgou a aflição. “Ainda hoje não sei como consegui ter aquela calma.” Demorou a cair nela. Até porque, na altura, o mais importante era correrem para o hospital. Pedrinho ficou internado dois dias, em observações. Mas os muitos exames nunca foram totalmente conclusivos.

“Os médicos apontaram para um ataque epilético, mas nunca tiveram certezas. Até porque ele não teve convulsões. Só ficou rijo, todo rijo. Deram-lhe medicamentos para não se voltar a repetir e continua a ser acompanhado de seis em seis meses.” Um desfecho que podia ter sido bem menos feliz, se Liliana não tivesse tido nervos de aço. “Na ambulância, os bombeiros felicitaram-me por ter salvado a vida do meu filho. E no hospital a médica deu-me os parabéns por ter mantido o sangue frio.” Bendita enciclopédia.

Fernando Rocha

Fernando Rocha (Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

O salvamento que quase acabou em tragédia

O cunhado é que o avisou: “Aquele gajo vai atirar-se da ponte.” O humorista Fernando Rocha já não foi a tempo de ver. Só ouviu o estrondo. E fixou o homem. Foi aí que o viu, afundar e vir à tona, afundar e vir à tona. E percebeu-lhe o apuro. Habituado a atirar-se da Ponte Luís I em criança, para sacar umas moedas aos turistas, não perdeu tempo. Foi a correr para o rio, enquanto se despia e descalçava. Quando já só tinha os boxers mergulhou. Não em linha reta. Porque a corrente estava “muito forte”. Teve de nadar contra a corrente.

Foi há dez anos, eram quase 11 da noite, estava ele tranquilo na primeira esplanada do Cais de Gaia, a tomar café. Entrou por umas escadas que iam dar ao rio. “Mas atirava-me fosse onde fosse. Numa situação daquelas é entrar no rio e acabou.” E pôs-se a nadar. Até chegar a meio do rio e conseguir agarrar o homem. Mas o salvamento quase acabava em tragédia. “Quando cheguei à beira dele, ele, aflito, agarrou-se a mim e afundámos os dois. Tive de lhe dar um empurrão nas costas, para me afastar dele.” Lá foi à tona. Deu-lhe dois gritos, a dizer que só tinha de dar aos pés.

Depois recompôs-se. Virou-o de costas para ele e começou a puxá-lo. Só que a corrente estava tão forte que apenas conseguiram parar uns 600 metros mais à frente, já depois de todos os restaurantes do Cais de Gaia. E a história só teve final feliz graças a dois ajudantes preciosos. “O meu cunhado, o Rogério Macedo, e o André, um moço que não nos conhecia, mas que também foi lá, é que nos ajudaram a subir para um barco rabelo.” Fernando Rocha faz questão de frisar os nomes.

O indivíduo mal lhe falou, de tão grogue que estava. Minutos depois, chegou a polícia marítima. E não mais lhe pôs a vista em cima. Foi só quase um ano mais tarde que percebeu a história. O rapaz, em depressão com a morte da mãe, tinha-se atirado ao rio. Fernando Rocha soube-o porque lhe apareceu em casa uma velhinha de 80 anos, plena de gratidão. “Era a avó dele. Disse que não podia morrer sem me dar um abraço.”

A mulher do humorista é que não achou piadinha nenhuma. “Ficou zangada. Perguntou-me se tinha noção que para salvar um indivíduo desconhecido tinha posto em risco o pai dos filhos dela. E tem razão. Reconheço que pus em causa a felicidade dos meus filhos.” Ainda assim, dez anos depois, garante que não se arrepende.

“Se acontecer algo à minha frente, o meu instinto é ir ajudar. Sempre fui assim.” Tanto que a mãe, a irmã e os amigos nem se surpreenderam. “Já sabem que este ‘gajo’ não funciona bem.” E ri-se dele. Como se correr risco de vida para salvar alguém fosse afinal simples. Os heróis também se fazem disso.