Texto de Ana Pago
Como tantos jovens de 16 anos, Cristiana Alhinho e Afonso Gomes foram criados com a premissa de que estamos destinados a relações perfeitas. É como nas histórias: casaram-se e foram felizes para sempre, porém o que não falta à sua volta são casos de violência entre casais, incluindo rapazes e raparigas da sua idade. O que podiam fazer para prevenir logo ao nível da escola? Instigarem os alunos da Secundária Fernão Mendes Pinto, no Pragal, a agir se conhecessem – ou enfrentassem eles mesmos – um tormento do género? Não, ninguém merece a dor. Mal souberam que o Instituto Português do Desporto e da Juventude promovia a iniciativa Namorar com Fair Play, compreenderam que tinha chegado o momento.
«Todos os dias há casos destes nas notícias. Achei que valia a pena ir a Lisboa fazer o curso de três dias do IPDJ, em dezembro de 2017, se com isso pudéssemos ajudar alguém», conta Afonso, convicto da importância desta ação que integra o projeto Escolas Solidárias – criado em 2010 pela Fundação EDP para promover a cidadania ativa e solidária nas comunidades escolares.
Também Cristiana se aflige com isto: romances que aparentam ser de sonho e descambam em pesadelo. Cicatrizes que ficam para sempre. Relações que nunca deviam ter existido, porque namorar não é maltratar. «É grave. As pessoas nem se apercebem da dimensão que isto tem no país. Daí o nosso objetivo ser que os alunos entendam o que está mal e como mudar», diz.
E é justamente a esse processo que Margarida Pinto Correia, diretora de Inovação Social da Fundação EDP, gosta de chamar «sementeira»: dar aos jovens a capacidade de agirem e mudarem a sua comunidade, além de margem para assimilarem o impacto do que fazem. «Eles são extraordinários a inventar novos caminhos», elogia, considerando que a educação para a cidadania ativa é um trabalho de continuidade. «Temos défice de capacidade de olhar, avaliar e pensar em propostas.» Défice de acreditar que «eu faço a diferença», independentemente do enquadramento ou tipo de comunidade. Com o Escolas Solidárias eles experimentam, sentem os resultados e querem mais.
3 000 000 De horas cem por cento solidárias de plena cidadania
ativa: foi este o contínuo gerado ao longo de todo o ano letivo de 2016‑17, ajudando a melhorar as condições de vida de mais de 245 mil pessoas.
«A grande maioria regressa no ano seguinte. Acredito que levarão a métrica de intervenção consigo e poderão, no futuro, ser cidadãos ativos nas universidades, nos empregos e nas comunidades onde atuarem», sublinha Margarida Pinto Correia, esperançada. Em 2015, a ONU definiu 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável que urge alcançar a bem do mundo e da humanidade. Uma vez que o desafio global exige atitude de cada um de nós, o programa Escolas Solidárias estabeleceu então oito grandes áreas de intervenção: pobreza e fome, desemprego/sustentabilidade económica, educação, saúde, conviver com a diferença, parceria global para o desenvolvimento humano, população sénior e sustentabilidade ambiental.
«Entre turmas de 10.º, 11.º e 12.º anos, o Namorar com Fair Play envolveu 96 alunos e já temos pedidos para o próximo ano letivo. Inclusive pedidos de outras escolas», revela Maria de Jesus Guedes, professora de educação moral e religiosa e coordenadora do Escolas Solidárias na Secundária Fernão Mendes Pinto. Ações como esta fazem sentido à luz da máxima de que educar só acontece se se deixar entrar os problemas que os alunos trazem de fora, ligando a sala de aulas à família. «Não é uma iniciativa isolada: ela surge integrada na preocupação da escola em alertar, fazer refletir e levar à ação», concorda Maria de Lurdes Cruz, professora de inglês-alemão e responsável pelo gabinete de projetos e relações com o exterior, cujo trabalho cruza com o de Maria de Jesus.
Nem se trata só de prevenir a violência no namoro, mas de ensinar que a igualdade entre homens e mulheres é uma questão de direitos humanos e exige oportunidades idênticas na educação, saúde, trabalho e influência. «Toda a gente ouve falar destas violações, todos as conhecemos. Contudo, ninguém fala abertamente connosco», lamenta Cristina Cruz, 18 anos. A intervenção de Cristiana e Afonso na sua turma – a começar pelas mensagens de telemóvel para explicar o que é certo ou viola o consentimento do outro – caiu como uma explosão que podia ter reduzido a sala a pó. «Nunca tínhamos tido um choque daqueles», diz a aluna. Foi ótimo para evitar que se repitam casos como o da americana Jessica Logan, que em 2008 se enforcou no quarto depois de ver o ex partilhar fotos dela nua nas redes sociais ao terminarem o namoro. Tinha 18 anos.
40 000 Alunos e professores envolveram‑se, na última edição, nos projetos desenvolvidos no âmbito das Escolas Solidárias.
Muitas vezes, uma boa ideia é mesmo tudo o que é preciso para se despertar nos alunos uma consciência cívica e de solidariedade, sublinha Júlia Neves professora de francês na Secundária João Gonçalves Zarco, em Matosinhos. Havendo vontade, arranja-se sempre tempo e a obra nasce. «Cheguei à escola em 2015 e foi-me atribuída uma direção de turma muito boa, com um grupo cheio de vontade de fazer coisas além das aulas», explica a atual responsável pelas Escolas Solidárias, orgulhosa deste espírito de ajuda ao próximo. «Percebi que tinha de se criar atividade, fazer um levantamento das necessidades locais. Então fui falar com a técnica superior do gabinete de ação social da Junta de Freguesia de Matosinhos-Leça da Palmeira, Diana Moreira.»
Foi ela quem sugeriu que seria interessante dar aulas de inglês a idosos, integradas no projeto Vivências Seniores da Junta, a par de atividades como o teatro, pintura, yoga, equitação terapêutica, informática e ateliers. Nascia o Inglês Sénior, de que os mais velhos não abdicam nem à lei da bala. «Pensei como podia tornar isto um projeto solidário e concluí que até seria fácil pondo bons alunos na sala – vão sempre uns cinco ou seis certinhos –, a apoiarem quase individualmente os seniores, enquanto a professora ia dinamizando a aula», adianta Júlia Neves, que na altura desafiou a colega do inglês na João Gonçalves Zarco, Isabel Nunes.
2016/17 foi a sétima edição e contou com 433 escolas inscritas do 2.º ciclo ao secundário, profissionais e artísticas, públicas e privadas
«Há um ano, quando ela saiu, a professora Manuela Saavedra assumiu o lugar. E acontece que quem tem estimulado mais as aulas até é um aluno de 14 anos, Nuno Samúdio, que os utentes adoram», conta. Se calha Manuela faltar por ter formações ou uma reunião de urgência, manda-lhe os materiais e ele assegura aquela hora e meia todas as quartas-feiras à tarde. «Há uma senhora lá, antiga professora primária, que garante que o Nuno é o melhor professor que já teve na vida», ri-se Júlia. Também para ele tem sido uma descoberta: «Gosto muito. Sinto que faço a diferença. Entretanto percebi que quero seguir línguas e dar aulas, o que torna tudo ainda mais positivo.»
Já para não falar na vantagem inegável de os idosos não se sentirem tão intimidados a tirar dúvidas, acrescenta Manuela Saavedra, apontando o óbvio. «São tudo pessoas com mais de 60 anos, com dificuldades a decorar, para quem o inglês é uma experiência nova na vida.» Vêm todos para socializar e aprender, ávidos destes momentos. E faltam pouquíssimo, mesmo com maridos ou esposas doentes e crianças para ir buscar à escola. E sim, há outros projetos deles inscritos nas Escolas Solidárias, como a recolha de alimentos e visitas ao Lar de Sant’Ana, mas o Inglês Sénior é, de facto, fora de série, sublinha Júlia Neves: «Os miúdos constatam que os idosos não são um bicho-de-sete-cabeças; estes tratam-nos como netos e ancoram-nos à realidade. Só isso vale tudo.»
A 17 de junho de 2017, um mar de fogo deflagrou em Pedrógão Grande, distrito de Leiria, e avançou sobre Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Ansião, Sertã, Pampilhosa da Serra. Nesse mesmo dia, outro incêndio angustiante deflagrou em Góis, Coimbra, e alastrou aos concelhos de Pampilhosa da Serra e Arganil naquele que foi o maior incêndio florestal de sempre em Portugal. Queimou pessoas vivas, retorceu metal como se fosse caramelo. Deixou paisagens negras onde antes havia quilómetros e quilómetros de floresta. Em outubro, o país ainda ardia. Quem, no seu perfeito juízo, poderia não aderir ao projeto Green Cork da Quercus para reflorestar o país?
2010/11 marcou o arranque do projeto escolas solidárias da fundação EDP.
«Este ano, a 21 de março, já tínhamos comemorado o Dia Mundial da Árvore e da Floresta de forma simbólica, a plantar cinco árvores cedidas pela Câmara Municipal de Lisboa e a revista Fórum Estudante», revela Paula Perrolas, psicóloga e orientadora na Escola Secundária de Fonseca Benevides, Lisboa. Aí souberam que a Quercus ia recolher rolhas de cortiça na comunidade, de 13 de abril a 30 de junho, para reciclá-las e converter esses valores em plantação de árvores nas zonas ardidas. Fizeram as contas por alto: um quilo de rolhas é igual a uma árvore plantada e eles são oito professores e 28 alunos de 10.º, 11.º e 12.º anos com vontade de ver acontecer. Podiam fazer aquilo.
«Temos outras ações de voluntariado no âmbito das Escolas Solidárias que nos obrigam a sistematizar bem os nossos objetivos, como o apoio à Ajuda de Mãe ou a recolha de papel, tampinhas de plástico e comida para o Banco Alimentar», explica Paula Perrolas. Acrescentar o Green Cork à lista, parecia-lhes, custaria muito pouco quando comparado com a nobreza dos resultados. «Algumas rolhas têm vindo de casa. Outras aqui de um restaurante próximo que as guarda para nós. Outras ainda de alunos do Alentejo que as trazem quando lá vão», diz a psicóloga. Se acreditam que podem deixar a sua marca no mundo?
«Sem dúvida. É só estar aberto à ideia», afirma Andreia Filipe, de 16 anos. «Há quem goze connosco, como se estivéssemos a perder o nosso tempo, embora um bocadinho de cada vez faça a diferença», confirma Eliane Chantre, de 19. Hoje em dia é muito difícil as pessoas saírem da sua zona de conforto e há colegas que chegam mesmo a mandar-lhes a boca de que só estão no voluntariado para faltarem às aulas, como se isso acontecesse, lamenta Carolina Lourenço, da turma de Andreia e com os mesmos 19 anos de Eliane. «Esquecem-se é que o Green Cork é uma forma de nos envolvermos com o ambiente, que é algo vital. Sendo nós o futuro, é bom estarmos a contribuir para uma coisa que é nossa.»
nestes sete anos, 819 escolas já se inscreveram pelo menos uma vez, com todos os distritos do país representados
E este é também o pensamento que move Dulce Garrido, da Escola Básica do 2.º e 3.º ciclos de Miguel Torga, na Amadora: se os alunos são o amanhã, e se grande parte dos seus tem graves carências económicas, com repercussões ao nível da alimentação, há pelo menos que assegurar que têm o que comer em alturas de maior incerteza. «Fazemos sempre angariação de alimentos no natal e na páscoa, no entanto eles comem todos os dias e às vezes nem o pequeno-almoço conseguem tomar em casa», justifica a professora de geografia, empenhada em mobilizar o corpo docente a levar géneros para a escola sempre que apanha os colegas a jeito na sala de professores.
«Vou falando insistentemente com eles, apesar de nem sempre ser ouvida, porque acredito que o projeto Como Todos os Dias vale este esforço da nossa parte», diz. Neste ponto entram a mediadora Inês Coutinho e Joana Silva, técnica social, que identificam os agregados familiares e gerem a distribuição dos cabazes de emergência. «Ao todo, já distribuímos 18 desde o fim de outubro de 2017 até à data, com contributos das tais recolhas de alimentos no natal e na páscoa também inscritas nas Escolas Solidárias», adianta Inês. Trocado por miúdos, somaram 97 quilos de arroz, leguminosas, açúcar, farinha, bolachas, cereais, salsichas, atum, papas de bebé, compotas, manteiga, e 50 litros de leite, algum azeite, óleo e outras bebidas de que as crianças costumam gostar.
«A partir daí, são as famílias que nos procuram quando estão mais necessitadas», explica Inês. Nunca conseguiriam chegar a todas todos os meses, pelo que preferem responsabilizar os agregados: «Havendo uma certa vergonha em pedir, temos a certeza de que só o faz quem precisa realmente deste nosso apoio.» E não, nenhuma das que fazem aquele trabalho dia após dia se deixa derrotar. Nem Dulce, nem Inês, nem Joana. Tudo cresce naquele clima de entreajuda. «Algumas pessoas, sem nunca chegarem a estar desafogadas, avisam-nos se são capazes de se aguentar sozinhas para darmos a outros mais aflitos do que elas», diz a mediadora. E isso em si é tão bonito como estender a mão ao próximo.
Conselho de amigos
Há quem prefira pensar que a solidariedade dá trabalho – é a melhor desculpa para não se meter nela – e depois há aqueles que, experimentando-a, querem pô-la em prática nas suas mais diversas expressões. Incluindo a da figura original dos amigos conselheiros. Na Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, no Pragal, todos sabem quem são. «Dou apoio de inglês a um miúdo do 10.º ano, uma hora e meia uma vez por semana, e é ótimo para ambos», afirma Rita Guedes, finalista e futura psicóloga de 17 anos. Numa altura em que se fala tanto em desenvolver soft skills no mercado de trabalho, a amizade tem sido do melhor para facilitar a relação com os outros e melhorar o desempenho profissional no futuro.
E tudo isto partindo da convicção de que aquilo que se passa dentro da escola deve ser da responsabilidade de todos, defende Maria de Lurdes Cruz, responsável pelo gabinete de projetos e relações com o exterior. «Se existe insucesso escolar, se alguns alunos não se adaptam – sobretudo jovens estudantes paquistaneses, colombianos, venezuelanos, indianos ou nepaleses, que chegam sem falar nada de português e têm de se integrar ainda assim –, se calhar mais facilmente outros alunos lhes deitam a mão.»
Aqui, o apoio destes amigos conselheiros estende-se à matemática, ao inglês e à física, às necessidades educativas especiais e até aos métodos de estudo – que incluem, por exemplo, saber organizar um caderno diário. «A escola é um sítio de pessoas, não de conteúdos», reitera Maria de Lurdes Cruz. O que significa que sem estar criada esta relação de empatia, com uma atmosfera confortável para se aprender, a coisa não vai funcionar.