António Fagundes: “Estamos com palavras de ordem em vez do debate público de ideias”

Texto de Alexandra Tavares-Teles | Fotos: Orlando Almeida/Global Imagens

Mais de 50 longas-metragens, mais de 30 novelas, mais de 45 peças de teatro. Um dos maiores atores brasileiros, galã irrepetível, está em Portugal com a comédia “Baixa Terapia”. No camarim do Teatro Tivoli, em Lisboa, António Fagundes explica o sucesso da peça, percorre a carreira, lamenta o estado atual do Brasil. Desiludido com Lula, o ator, de 69 anos, encara a possibilidade de vitória de Bolsonaro com a palavra resistir.

Gosta muito pouco de olhar para trás. Porém, pensando no Brasil, está difícil olhar para o futuro?
É, o futuro do Brasil está negro. Mas convém não ficar olhando apenas para o nosso umbigo, achando que é um problema só nosso. Não é, é do mundo inteiro. Alguma coisa aconteceu na última década que levou as pessoas a deixarem de pensar. A gente está vendo o reflexo disso na Suíça, na Suécia, nos Estados Unidos, na França. E no Brasil.

A palavra fascismo banalizou-se a ponto de, perante um candidato como Bolsonaro, já não assustar?
Por mais que se tenha banalizado, ela existe e a noção de que o fascismo existe está aí, forte. O que acontece é que a gente esqueceu que o autoritarismo não é só de direita. É de esquerda, também. A brincadeira agora é entre a eleição de um autoritário corrupto ou de um democrata corrupto, porque corruptos todos acabam por se revelar.

Qual é o seu maior medo, em relação ao Brasil?
O pior é o que virá depois das eleições, seja qual for o vencedor: a indefinição. Na segunda volta, o voto útil, votar contra um candidato e não por um candidato, fará com que o presidente eleito acabe tendo apenas uns 10% do eleitorado com ele e 90% do eleitorado contra. Não terá representatividade. Por outro lado, e é algo que está a ficar completamente esquecido, esta eleição também vai escolher senadores, governadores e deputados federais. E, na verdade, quem governa o país é o congresso e o senado. Sem alianças ninguém vai conseguir governar o país. Por isso digo o pior é o que vem depois, qualquer que seja o eleito. Não terá representatividade.

É preciso resistir?
Temos uma longa experiência de resistência democrática. Foram 21 anos de ditadura e desses eu apanhei 19 como profissional de teatro. Fiz um teatro muito político, muito interventivo e a gente resistiu. Sim, é possível resistir. A gente tinha uma brincadeira que falava “pior não fica”. Não é verdade. Pode ficar sempre pior.

O que é possível fazer para contrariar isso?
Faltam-nos pessoas com representatividade, com boas propostas. É fundamental criar quadros novos, mas para isso é preciso mexer na educação, na cultura, na saúde, no emprego, na segurança.

Lula foi uma desilusão?
Para mim foi. O Lula e o PT. Era o partido que viria para consertar tudo isso, que viria para mexer exatamente no que tem de ser mexido, para investir na educação, na cultura.

A educação melhorou?
Não muito e não é por falta de verba. A educação tem 10% da dotação orçamentária, é muito dinheiro, mas falta vontade política. Mesmo com essa verba toda, temos 40% de analfabetos funcionais no Brasil. Isso quer dizer que o cidadão sai da escola sem entender o que leu.

Em quem votaria se estivesse no Brasil?
Infelizmente não vou votar e não tenho um candidato. Mas acharia um. Teria de ser.

Hoje, daria a cara por uma campanha?
Não. Deixei de fazer isso a partir de 2002, depois de dar a cara por Lula.

Porquê?
Porque percebi que quando se ajuda alguém a ser eleito – e há momentos em que é importante ter essa participação -, perde-se capacidade crítica em relação a essa figura. E isso não é bom.

É para muitos o melhor ator brasileiro. O que o distingue de tantos bons atores que tem o Brasil?
Atores maravilhosos, com trabalhos maravilhosos. Nunca pensei no que me distingue, mas talvez a sorte de ter podido escolher o meu caminho, fazer escolhas de carreira. Foi assim no teatro, no cinema e em televisão. Sou capaz de determinar as razões que me levaram a fazer cada peça, ao longo de 50 anos de carreira. Porque foi escolha minha.

Em telenovela, foi muitas vezes galã. Bonzinho, confiável. Hoje, os atores preferem papéis de vilão.
É verdade. Hoje em dia, defender a ética e os bons costumes é coisa chata. Prefere-se aquele que muda de cara, que é capaz de matar, de roubar, o que não tem freios. Também porque são papéis mais fáceis.

Foto: Diana Quintela

Que tipo de personagem requer um grande ator?
Um grande ator pode revelar-se em qualquer tipo de personagem. Mas a personagem que não tem grandes manifestações exteriores é o mais difícil.

Partilha da ideia de que as personagens podem atormentar, tomar o ator?
Um ator a quem isso aconteça precisa de terapia.

Deixa mais nas personagens do que as personagens em si?
É verdade. Deixo sempre um pouquinho de mim nas personagens. Seria muito difícil conviver comigo se levasse para casa alguma coisa de cada personagem.

Que método usa para compor uma personagem?
O trabalho do ator é muito intelectual. Não tem nada dessa coisa de ser tomado pelo personagem. Esse é um problema psicanalítico, não é o trabalho de ator. Gosto de contextualizar o personagem, de o colocar na época dele, no momento dele, ver o que o circunda, como se relaciona com as pessoas, procurar entender esse comportamento. E guardo sempre a impressão da primeira leitura, aquela primeira leitura que me fez rir, chorar, emocionar. Essa primeira vista é exatamente a primeira vista que o público vai ter depois. Então eu pego em todo esse trabalho intelectual e tento passar para a plateia essa sensação. Não tenho de sentir nada. No final, estou com desgaste físico muito grande, mas emocionalmente intacto. O contrário do que deve acontecer com a plateia que viu o trabalho: deve estar fisicamente descansada, mas emocionalmente inquieta.

Como lida com a crítica negativa?
Sou exposto há 52 anos a todas as críticas negativas que possa imaginar. Se fosse ligar para isso estava perdido.

Recorda-se da pior?
Não guardei, nem foi importante para mim a ponto de me lembrar agora. Acho que me situo algures entre os cinco críticos especializados que odeiam o meu trabalho e dizem que é muito ruim e aqueles 50 milhões de pessoas não especializadas que amam o meu trabalho e dizem que é muito bom.

Até que ponto ser bem-parecido ajudou na carreira?
Sempre servi muito bem as personagens, sem me preocupar com isso. Por vezes, até me destruía fisicamente em favor da personagem e a minha vaidade sempre foi a vaidade da personagem – se ele é velho, gordo e careca eu serei o velho, gordo, careca que a personagem exige.

Sobre os dotes físicos costuma responder “não sou o meu tipo de homem”. Quem é para si um homem bonito?
Pensando na minha época, um Alain Delon ou um Marcelo Mastroianni. Mas, sabe, o ator tem uma vantagem – há sempre uma bruxinha velha para fazer. A Ingrid Bergman, que recusou as operações plásticas, sempre falava isso – sempre vai ter uma bruxinha velha.

Os atores são menos castigados do que as atrizes. No entanto, nunca ponderou fazer uma plástica?
Não, nem vou ponderar (risos).

Não gosta de escolher momentos-chave da sua carreira. Porquê?
Sempre tive da minha carreira uma visão de conjunto. E é verdade, sempre discuto com as pessoas que analisam um trabalho isoladamente. Se você não levar em conta o que foi feito e o que pode ser feito, não está analisando nada. Está apenas a ser preconceituoso. Sei que o que estou fazendo hoje resulta do que fiz há 40 anos, algo que pode até nem ter dado certo, mas que venho corrigindo desde então. Esse processo é o que me entusiasma.

Mas nem todos os passos pesaram o mesmo. Uns são motores.
Os meus erros são os meus motores, é com eles que aprendo.

Em 1976 vai para a Globo. Foi um passo importante?
Foi uma experiência importante porque fiquei nessa empresa 42 anos. Em retrospetiva, posso dizer que foi importante, mas na época não tinha essa noção.

O que foi mudando na forma de representar, que arestas foi limando?
No teatro esse exercício é diário. Mais do que isso – é feito minuto a minuto. É um exercício tão minucioso e tão constante que fica difícil dizer que foi neste momento que aprendi.

Como funciona a trabalhar em grupo? Por exemplo, nas novelas em que trabalhou com grandes atrizes?
Gosto muito de observar os meus colegas. Uma das coisas que o ator deve buscar é exatamente o entendimento do outro. Ouvir o outro, entender o outro, participar da emoção do outro. Tenho sempre muita curiosidade pelos meus colegas.

Como gere o conflito?
Prefiro não ter (risos).

E quando tem?
Resolvo rápido.

Diria que tem bom feitio?
Tenho. Mas não podem provocar-me muito.

A melhor maneira de o irar é chegar atrasado?
É.

Tem uma guerra contra os telemóveis em salas de espetáculo. Impede a entrada de quem chega depois da hora, atitude que lhe valeu processos em tribunal.
Ganhei-os todos e vou ganhar todos os que vierem.

Desconfia da internet e não frequenta redes sociais. É lá que o movimento “Me Too” tem tido enorme eco. Em 50 anos de carreira assistiu a situações de assédio?
Se olhar o meu currículo, percebe que nunca tive tempo sequer para prestar atenção a essas coisas. Trabalhei tanto a minha vida inteira. Fiz mais de 50 longas-metragens, mais de 30 novelas, mais de 45 peças de teatro.

Mas conhece o movimento.
Não tive tempo para pensar nisso. Aliás, nem quero pensar nisso.

Perante tanta denúncia, sobretudo no meio, tem medo?
Esse perigo não corro porque eu nunca assediei ninguém. Mas eu posso falar o que quiser de você.

Os acusados devem ser proscritos?
Esse é um problema – a confusão entre obra e autor. Quem comete o crime pode e deve ser punido, mas isso não anula a valia profissional. Se misturar, vai acabar com tudo o que existe na face da terra. Picasso foi terrível, Chaplin foi terrível, Churchill foi terrível.

Algum puritanismo?
Somos uns imbecis. A gente está deixando de pensar. Passamos a olhar as coisas como definitivas, quando não o são. Estamos com palavras de ordem em vez do debate público de ideias. Temos de conversar mais, calmamente, ouvir e entender o outro. Não sei se o problema é da internet, mas a verdade é que é assim. A internet deu voz aos imbecis, dizia Umberto Eco.

Voltando ao teatro. Qual é o maior pesadelo do ator? A branca?
Nossa, é horrível. É um pesadelo recorrente. Abre a cortina e o ator está em cena sem saber o que dizer. Aconteceu-me muitas vezes.

E então?
Por vezes dá-se um jeito, mas nem sempre é possível. Já tive de sair de cena, pegar o texto, ver o que tinha de dizer e voltar para a cena. Quando voltei ainda aplaudiram. O teatro é isso.

Dos quatro filhos só um seguiu carreira.
É, os outros trabalham (risos).

Que conselho lhe deu?
Nunca impusemos nada para eles. Queremos é que sejam felizes com a profissão que escolheram.

O primeiro conselho profissional?
Nem um. A experiência não se transfere.

O filho participa nesta peça, uma comédia. Há quem diga que o género desprestigia carreiras ditas sérias.
Fazer rir é bem mais difícil do que fazer chorar. Mas não só. A comédia provoca, mexe com o poder, desestrutura. Dizem que é de segunda categoria porque têm medo dela. O poderoso tem medo da comédia.

Na comédia, qual é o maior desafio?
É um desafio enorme porque envolve uma outra personagem que não é costume ser levada em conta chamado plateia. Veja o Tivoli – tem 1100 pessoas sentadas lá dentro, pessoas que não pensam igual. O desafio é pôr essa plateia a rir em conjunto, como se fosse uma única pessoa.

Comediantes que admira?
Todos os que me fazem rir. Por exemplo, Woody Allen, com o seu humor extraordinário, ou Jerry Lewis.

Há uma liturgia do teatro que está a perder-se?
Está, mas tento preservá-la. Por exemplo, a cortina. Sou de uma época em que existia uma profissão chamada cortineiro, um cidadão treinado para abrir e fechar a cortina. Era uma arte e variava de espetáculo para espetáculo. Umas vezes corria lenta, outras rapidamente. Também se perdeu a liturgia do aplauso e a sua gradação, que ia da vaia à ovação. Por favor, manifestem-se, é o que por vezes me apetece dizer.

Como reage o público português?
É um público muito quente. Muito participante, ativo no espetáculo, no aplauso, mas essa tal gradação perdeu-se há décadas.

Perdeu-se a pontualidade.
A pontualidade não é apenas chegar na hora. Demonstra interesse, vontade de deixar o mundo lá fora, de sentar calmamente e não ser mais importunado. Porque o grande truque do teatro é esse – que em cinco minutos a pessoa esqueça onde está. A qualquer distração a magia vai embora.

Quando pensa em Portugal pensa em quê?
Portugal tem uma coisa muito bonita que é a manutenção do património histórico. Seja qual for a vila há um monumento, uma igreja, um castelo, uma biblioteca. Isso só foi possível porque não houve ainda uma grande especulação imobiliária, mas estamos chegando lá (risos).

O que nos une e o que nos separa?
O que nos une muito é a burocracia. É uma herança que recebemos de bom grado no Brasil. O que nos separa é a cultura. Portugal tem uma força cultural que o Brasil, infelizmente, perdeu.

Acompanha o trabalho de atores portugueses?
Conheço alguns, mas infelizmente não acompanho o trabalho.

Quando sentiu que a representação ia ser a sua vida?
Já era profissional há uns dois ou três anos. Aí percebi que ia ser opção de vida. Mas nunca foi algo que dissesse “quero fazer”.

Não era uma inclinação de criança?
Não. Na altura dizia que queria ser engenheiro. Era a profissão do meu pai.

Como era em criança?
Tive uma infância normal, introspetivo, muito sozinho. O meu irmão era nove anos mais velho. Aprendi a me virar sozinho. Talvez venha daí o meu gosto por leitura, gosto que me ajuda na carreira de ator. Comecei a mexer com teatro muito cedo, com 12, 13 anos.

A sua grande amiga Marília Gabriela diz que tem vocação para ser feliz…
A felicidade não existe, é algo inventado pela sociedade. Talvez ela queira dizer que sou bem resolvido. Que consigo lidar com os problemas de forma tranquila.

É sabido que lê muito. E música, o que ouve?
Não ouço música. Ou seja, não ouço com regularidade. É uma falha minha.

Aos 69 anos, o afastamento dos palcos assombra-o?
Não penso nisso. Tenho saúde, acho que vou representar até aos 90.

Como lida com a finitude?
Quando eu estou a morte não está e quando a morte está eu não estou. Uma frase de Epicuro, julgo.

É um agnóstico.
Sou. Dizem que um agnóstico é um ateu covarde.

Onde pensa estar daqui a cinco anos?
Em Portugal, com outro espetáculo.