Ortorexia: já ouviu falar? Se calhar até sofre disto, mas não lhe conhecia o nome. Trata-se de um transtorno de comportamento alimentar caraterizado pela obsessão de comer apenas o que é adequado à saúde. Quando o exagero dá lugar ao bom senso, é preciso um pouco de moderação e equilíbrio. De vez em quando, aquele bolo de chocolate não traz mal ao mundo.
Além dos vários benefícios, a alimentação saudável passou a ser moda. Mais: nalguns casos passou a ser uma obsessão. Perante a enchente de informação na comunicação social, tornou-se difícil saber o que é isso de comer saudavelmente. Proliferam receitas, blogues dedicados ao tema, informações aqui e ali sobre os alimentos melhores, piores e mais ou menos para a nossa dieta. Como distinguir o correto do exagero?
Há muitos anos que ouvimos falar em anorexia, mas podemos agora juntar um outro termo ao vocabulário associado aos distúrbios alimentares: a ortorexia é “uma perturbação, um transtorno, que surge quando a pessoa se torna obsessiva quanto aos padrões daquilo que come”, diz Júlia Machado, psicóloga do Hospital Lusíadas Porto. O termo foi divulgado pela primeira vez pelo médico norte-americano e especialista em medicina alternativa, Steven Bratman, em 1997, no Yoga Journal, e deriva das palavras gregas orthos (correto) e orexia (apetite).
As consequências negativas deste comportamento podem mesmo ditar a necessidade de apoio médico para tratar o transtorno. “Podemos encontrar quadros de carência nutricional graves, como anemia, carências vitamínicas e grande perda de peso, não acarretando apenas danos físicos como também repercussões a nível social, provocando na maioria das vezes isolamento social e psicológico”, acrescenta a especialista.
O excesso de informação na área de nutrição à distância de um clique e vulgarmente ampliado nas redes sociais, associado a uma enorme pressão relacionada com o culto do corpo, pode também pessoas com grande exposição mediática, profissionais de ginásio, frequentadores e até mesmo os nutricionistas. “Tendencialmente, são pessoas que têm de ter, à partida, um maior cuidado relativamente à alimentação”, diz a nutricionista Ana Rita Lopes.
Não é fácil assumir que se está a passar por este problema. A alimentação deverá ser um ato ligado ao prazer e ao bem-estar e não à tristeza, isolamento, ansiedade e diminuição da qualidade de vida. “É frequente serem os pais, amigos ou companheiros a identificar mais precocemente estes sinais”, diz a coordenadora da unidade de nutrição clínica do Hospital Lusíadas Lisboa. Também não é incomum serem eles a marcar consulta antes da pessoa que sofre deste transtorno.
Danos físicos e psicológicos. Foi o caso de Rita (nome fictício) de 21 anos. Foi a uma consulta com Ana Rita Lopes por insistência da mãe, que detetou a obsessão da filha pela alimentação saudável, apesar de ter um peso normal. Vai ao ginásio todos os dias da semana e ao sábado. “Faz uma alimentação muito rigorosa e restritiva. Não se permite fazer refeições fora de casa e em festas de aniversário leva as suas próprias refeições, para não quebrar a dieta. Contabiliza todas as calorias daquilo que consome, tendo estipulado como ingestão máxima diária 1500 kcal”, revela a nutricionista.
E este não é um problema tipicamente feminino. Também João (nome fictício) é acompanhado na mesma consulta. Tem 30 anos, pratica musculação todos os dias e, ao fim de semana, duas vezes ao dia. Foi obeso na infância e na adolescência “tendo sofrido de bullying. Atualmente tem peso normal. Ingere diariamente vários suplementos alimentares para aumentar a produção de massa muscular”. Foi a namorada que o incentivou a procurar ajuda por considerar que a preocupação com a alimentação saudável é excessiva. Evita sair com os amigos para não ter de fugir ao planeamento alimentar e sente-se “irritado sempre que alguém o tenta incentivar a ser mais flexível na dieta”. Dois exemplos, anónimos, de quem sente este problema no dia-a-dia mas não tem coragem de dar o seu testemunho na primeira pessoa.
A rigidez é a marca deste comportamento. “Geralmente, as pessoas que o manifestam são de tal forma restritivas, que se sentem culpadas quando não o cumprem, punindo-se com uma alimentação ainda mais rígida quando cometem um deslize (que varia entre jejuns, restrição alimentar ou excesso de exercício físico), o que aponta para um caráter obsessivo-compulsivo no comportamento”, explica Júlia Machado. Não se permitem – em circunstância alguma – desviar do seu programa de alimentos autorizados. “Em Portugal, ainda não existem dados sobre a prevalência da ortorexia, mas alguns especialistas consideram que a tendência está a aumentar”, defende a psicóloga.
Uma das dificuldades na identificação deste transtorno prende-se com o autorreconhecimento: admitir que há, de facto, um problema que deve ser resolvido e que o estilo de vida praticado é nocivo. É estranho pensar-se que uma coisa que pode ser benéfica para a saúde se pode transformar num transtorno. Steven Bratman explica que a “ortorexia não é a mesma coisa que escolher conscientemente ter uma alimentação saudável. Quando a mesma envolve fatores emocionais pode tornar-se física e psicologicamente nociva”.
Falar com quem percebe
Torna-se útil discutir com um psicólogo, ou psiquiatra, o que originou este problema e que questões emocionais poderão ter levado a esta obsessão, sendo também essencial a intervenção de um nutricionista para ajudara utilizar a alimentação de forma equilibrada. “As pessoas estão cada vez mais conscientes e preocupadas com este tema. No entanto, apesar da imensa informação disponível, um terço dos portugueses continuam a fazer apenas três refeições por dia e o fator que rouba mais anos de vida aos portugueses continua a ser a alimentação incorreta”, dia Ana Rita Lopes.
O facto de se comer ocasionalmente sem ficar demasiado preocupado com a qualidade dos alimentos que se ingere é um dos primeiros passos para reverter a situação. Da mesma forma, recomenda-se que a pessoa “gaste mais tempo” em atividades que lhe dêem prazer e menos com a preocupação com a alimentação. “Não permitir que a vida seja controlada só por aquilo que come, ou seja, apenas pelos alimentos saudáveis, e dedicar mais tempo ao trabalho, amor, diversão, aos amigos e à família, etc.” são formas de reverter a obsessão aconselhadas pela psicóloga Júlia Machado. “A chave é a moderação, pois comer mais saudavelmente tem efeitos positivos na saúde, exceto se deixar de desfrutar da vida ou se o seu relacionamento com os outros ficar afetado.”