Há qualquer coisa de subliminarmente irritante e ostensivamente agressiva nas reações à candidatura de Maria de Belém à corrida presidencial de 2016. Nas que se ouvem nos cafés e nas que se expressam em letra impressa. Não quero falar já de sexismo, no primeiro parágrafo desta crónica… mas a verdade é que não há volta a dar. Porque é disso que se trata, por exemplo, no ataque que lhe foi feito pelo também candidato a Belém Henrique Neto no jornal i. Não tenho nada contra palavras duras – “não fez nada na vida” – sobretudo em política. Elas são bem-vindas quando avivam as ideias e acordam as mentes dormentes. Mas não são assim tão vulgares em Portugal e na política nacional, que prefere normalmente os pezinhos de lã, punhos de renda e floreados que rodeiam as situações sem nunca as referirem com frontalidade.
Por isso cheira-me que o que há aqui é uma mudança de paradigma. E essa mudança tem que ver com o facto de se terem alterado os dados a jogo, ou seja: entrou nele uma mulher. Quando Henrique Neto continua por aí fora dizendo que a candidata “não faz ideia nenhuma de como é que se resolvem os problemas financeiros e económicos do país” apetece perguntar‑lhe se algum dos outros candidatos preenche esse requisito e se isso fará alguma diferença num cargo tão pouco operativo como uma presidência portuguesa. Ou, até, se os últimos anos não provaram precisamente o contrário, que esse conhecimento de pouco ou nada nos vale naquele cargo. E se é esse o caso, então porque é que o candidato escolhe este tema para o seu ataque?
Mais tarde, na mesma entrevista, Henrique Neto acaba por reconhecer que “até faria sentido haver uma mulher na corrida presidencial, porque “as mulheres têm cada vez mais peso na sociedade e estão na universidade, na investigação e na gestão”. Aqui expressamos todos um certo alívio pela clarividência demonstrada por alguém que pretende ser candidato ao mais alto cargo da nação. Mas eis que Neto estraga tudo sugerindo que poderia ser “alguém que tivesse feito alguma coisa na política e na vida”. Como, por exemplo, Helena Roseta.
O que é mais preocupante neste pensamento é que ele é tão distorcido como subterrâneo. Há aqui um sexismo basilar que faz que alguém equipare uma mulher a todas as mulheres, ou seja, em qualquer coisa Helena Roseta e Maria de Belém são intercambiáveis. Não compara Maria de Belém com qualquer outro político, não. Compara-a com outra mulher. E fá-lo com a naturalidade de quem nem sequer refletiu sobre o que está a dizer.
Não representa este texto uma defesa da candidatura de Maria de Belém à Presidência. Diz muito sobre o país que somos o estado lamentável em que estamos no que à igualdade diz respeito em mais de quarenta anos de democracia. É, até, um pouco uma oportunidade falhada que a candidatura – finalmente! – de uma mulher à Presidência esteja à partida envolta em polémica, por estar a dividir o seu partido, e não ter uma vaga de fundo óbvia que a pudesse fazer esquecer essas questões mais comezinhas dos apoios, trocos e partidos, e fazer da sua campanha uma em que se pudessem levar algumas questões fundamentais, nomeadamente para as mulheres, para a ordem do dia. Do que Portugal precisava mesmo era de uma candidatura forte e capaz de, sem esqueletos no armário, olhar de frente para as outras e afimar-se como diferente. Porque o caminho que teria sempre pela frente, uma mulher candidata a presidente, como percebemos do exemplo Henrique Neto e ouvimos nas conversas de café, será sempre duro e espinhoso.
[Publicado originalmente na edição de 23 de agosto de 2015]