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O olimpismo em forma de «E agora, o que é que eu faço»?

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Haverá poucas experiências na vida tão violentas como um parto. Violentas no sentido físico do termo mas, também, nas consequências psicológicas que daí advêm. Depois daquele momento em que a criança inspira pela primeira vez, em que as lágrimas nos rebentam o coração, em que a placenta é expulsa, em que a mãe tenta ir à casa de banho com os pontos de uma cicatriz a incomodar, em que o leite sobe (ou desce, as duas versões admitem-se), em que se chega a casa e repara­mos que não há botão para chamar a enfer­meira para ajudar. Sim, os primeiros dias de­pois do dia D são um festival de emoções. Pa­ra a mãe da criança, que passa por tudo isto. E para o pai da criança, que passa por tudo is­to também, mas de outra forma, talvez me­nos assustadora, mas mais confusa.

Poucos dias depois do nascimento da mi­nha filha mais velha (ela tem apenas 18 me­ses, mas pronto, é 17 meses mais velha que a irmã), dei por mim numa encruzilhada emo­cional tramada. «E agora, o que é que eu fa­ço?» A pergunta não foi esta, é capaz de ter envolvido um palavrão, mas vocês perce­bem a ideia. A verdade é que não soube mes­mo o que fazer naquele dia de agosto de 2012, quando entrei na sala e vi a minha mulher, com a criança nos braços e um rio de lágrimas pela cara abaixo. As lágrimas eram da mãe.A criança dormia descansada.

Consciente da hipersensibilidade carate­rística daqueles dias, e calculando que o episó­dio lacrimejante pudesse ser um cruzamento entre o baby blues, que ataca as mães nas semanas seguintes ao parto, e alguma dor resultante de um movimento brusco, pergun­tei se estava tudo bem. Nestes casos, é melhor não parecer alarmado. Podemos não con­seguir ajudar, mas devemos dar o ar de que, pelo menos, não vamos atrapalhar. Ela começou por acenar com a cabeça pa­ra, no segun­do seguinte, explodir em nova sequência de soluços. «Mas posso ajudar? Queres que faça alguma coisa? Fala comigo.» E ela, olhos lavados, queixo a tremer, lá conseguiu apontar para o televi­sor. Em esforço. Cada vez que olhava naque­la direção, vinha novo soluço. Uma reporta­gem sobre crianças maltratadas? Um docu­mentário sobre a fome em África? Um filme lamechas em que o herói morre no fim? Não. Era uma rapariga de vestido cor-de-rosa cur­to, com lantejoulas, a correr sobre um grande tapete quadrado enquanto atirava uma pe­quena bola ao ar que apanhava em movimen­tos elegantes alguns metros mais à frente. À volta, as bancadas grandes de um pavilhão cheio de gente que aplaudia – eu percebi pelos gestos, porque o som estava cortado para ga­rantir o sono da cria. Em vários pontos do pa­vilhão, as letras e números grandes: «London 2012». E os anéis olímpicos. Sim, a minha mu­lher estava a chorar enquanto via uma pro­va de ginástica rítmica dos Jogos Olímpicos de Londres. «Isto é tão bonito», conseguiu di­zer, quando olhei para ela com ar de «Mas por que carga de água estás tu a chorar a ver isto?»

Houve outros momentos parecidos. Nem todos envolveram competições desportivas ou  lágrimas. Mas em todos tive aquela per­gunta a latejar na cabeça: «E agora, o que é que eu faço?» Na verdade, não sei bem o que fiz. Fui fazendo. E ouvindo. E amparando. E rin­do com ela, depois – ela hoje ri-se muito disto.

Entretanto, terminam hoje os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi, na Rús­sia. A minha filha mais nova tem um mês e meio e já houve momentos em que fiz no­vamente a pergunta. É normal,faz par­te. Quer os eventos que originam a per­gunta, quer a pergunta em si. Não sou o primeiro. Mas, que eu saiba, a minha mulher ainda não chorou (que eu te­nha visto) ao assistir a competi­ções de patinagem no gelo. E eu começo a ficar preocupa­do. É que se isso ainda não aconteceu, algu­ma outra coisa está para acontecer.

[23-02-2014]