
Referência do jazz em Portugal, lançou talentos como Dany Silva, Jorge Palma ou Bernardo Sassetti. Gualdino Barros correu mundo, viveu aventuras e, aos 72 anos, voltou a tocar bateria, depois de um AVC que quase o incapacitou. O documentário A Sétima Vida de Gualdino é sobre ele.
Era uma vez um baterista que aprendeu a tocar sozinho quando era adolescente. Considerado uma «lenda do jazz», ao longo de mais de cinquenta anos de carreira lançou três gerações de músicos portugueses. Bernardo Sassetti, Jorge Palma, Dany Silva, Maria Viana, Filipe Melo ou Bernardo Moreira são alguns deles. Gualdino Barros teve uma vida cheia. Que podia ter acabado em 2011, aos 72 anos, quando um acidente vascular cerebral (AVC) o impediu de continuar a fazer o que mais gostava: tocar bateria e descobrir e lançar novos talentos nos palcos.
Para quem não frequenta o restrito e um pouco elitista mundo do jazz, porém, Gualdino é um desconhecido. Diz quem o conhece que a sua vida dava um filme, mas ninguém sobre ele compôs uma música, escreveu um livro ou rodou um filme. Até agora. A Sétima Vida de Gualdino estreou recentemente na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa.
O documentário, produzido para a RTP, é assinado por Filipe Araújo. Hoje com 37 anos, o realizador tinha 27 quando ouviu falar de Gualdino pela primeira vez. Viu-se diante de um homem magro, de aspecto franzino e frágil, que contrastava com a personalidade forte, lucidez desconcertante e memória de elefante. «Quando ele começa a contar o que viveu nos sítios por onde passou, não para e não há quem consiga pará-lo», diz Filipe. «As pessoas ficam como que hipnotizadas a ouvi-lo.»
É que na longa vida de Gualdino, hoje com 75 anos, não faltam histórias rocambolescas e aventuras que muitos juram ser verdadeiras e de que outros duvidam, de tão mirabolantes. Uma dessas histórias coloca-o a nadar num canal cheio de jacarés, em Miami. Outra, a dormir debaixo de uma ponte, em Paris, durante semanas. Há quem diga que voou num circo feito homem bala e que foi amarrado à linha do comboio na estação de Entrecampos, em Lisboa. Histórias que Gualdino alimenta e quem as ouve vai espalhando, acrescentando-lhes talvez um ponto.
O universo do jazz era relativamente estranho para o realizador, até ver a irmã, a pianista Ana Araújo, a tocar. «Ela é pianista de jazz e, tal como muitos outros músicos, começou a tocar com ele. Um dia fui ao bar onde ela tocava. Gostei do ambiente e comecei a aparecer mais. No final dos espetáculos, ia ouvindo histórias e proezas sobre aquele senhor. E a minha curiosidade sobre ele foi crescendo.»
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Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Gualdino lançou no palco músicos de referência, como a cantora Maria Viana.
Possivelmente muito do que se dizia até podia ser exagerado, mas alguma verdade sustentava essas histórias. Movido pela curiosidade, o então jornalista decidiu investigar. «Queria ver onde acabava a realidade e começava o mito». Dessa procura resultou a reportagem «O swing de Gualdino», publicado em 2005 na revista Grande Reportagem. Filipe pensava que com isso mataria o tema, mas aconteceu o contrário. As histórias sucediam-se. O problema era achar um gancho para «voltar a agarrar no Gualdino» — afinal, a parte mais excitante e rica da vida do músico acontecera no passado e, desses anos, praticamente nada sobrara para arquivo.
O pretexto surgiu cinco anos depois. Em 2011, a lenda do jazz sofreu um AVC. «O momento não era o mais feliz, mas permitia-me abordar a história dele a partir do presente, agora num registo audiovisual. Ele colaborou comigo o mais possível, apesar da sua saúde, na altura ainda muito debilitada.»
O documentário foi rodado entre Lisboa, Porto e Paris – onde estiveram apenas uma dúzia de dias, mas tempo suficiente para o baterista reviver o passado ao percorrer as ruas e os bares que lhe eram familiares nos anos 1960, quando ali viveu e partilhou o palco com músicos como Johnny Griffin, Bud Powell ou Nina Simone.
Apesar do sucesso conquistado, as primeiras semanas de Gualdino em Paris foram difíceis. Sem dinheiro para dormir em pensões, chegou a dormir debaixo da Pont Neuf. A história é confirmada pelo músico. «Acho porreiro que um puto como o Filipe tenha interesse por um gajo como eu. Sou um velho que só sabe tocar bateria. Não é para me gabar, mas tenho um trabalho imenso nesta área. A única preocupação que tive e continuo a ter é lançar jovens. Vou buscá-los às escolas de música e à rua. A Joana Espadinha descobria-a no metro do Cais do Sodré, em Lisboa. Agora estou a lançar duas cantoras de jazz, a Josina, uma miúda de Évora, e a Cristina, uma senhora formada noutra área.»
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André Carrilho assina algumas ilustrações do documentário, alusivas aos «anos loucos» de Gualdino Barros.
O regresso a Paris, a propósito do documentário, foi marcante para o músico. «Senti-me muito emocionado. Eu já não ia lá há 47 anos. Aí vivi os melhores anos da minha vida. Conheci muitas pessoas importantes que me deram valor. Mas não foi chegar lá e tocar. Primeiro, metia conversa com os porteiros dos bares e das casas de jazz, tornava-me amigo deles e deixavam-me entrar. De mansinho, fui-me aproximando dos músicos e pouco depois já estava no palco com eles.»
Mas, por muito importante que fosse regressar a Paris, onde Gualdino viveu a sua «época de ouro», Filipe Araújo não queria apenas que a lenda do jazz reencontrasse o passado. «Eu gostaria que o Gualdino tivesse também um encontro com o presente. O presente depois do AVC. Talvez surgisse um contrato para voltar a tocar em Paris, ou a oportunidade de internacionalizar algum dos seus talentos. Não arranjou nenhum agente, mas no regresso vinha tão entusiasmado que um mês depois voltou ao palco para apresentar a sua nova descoberta vocal.»
Tirando uma ou outra recriação, a que se juntam as ilustrações de André Carrilho alusivas aos «anos loucos» do baterista em Lisboa, tudo é real: desde a saída de Gualdino do hospital, onde esteve internado, passando pela lenta recuperação, até ao espetáculo ao vivo no bar Tribeca, no Porto, onde a lenda do jazz mostra que reaprendeu a tocar bateria.
Não se sabe se Gualdino já gastou as sete vidas, mas, para já, boa parte do que viveu foi visto a 13 de março, na Cinemateca Portuguesa. O documentário foi exibido no dia seguinte no Festival de Cinema de Salónica, na Grécia, e emitido na RTP2 no dia 5 de abril.
FILIPE ARAÚJO: O JORNALISTA QUE SE TORNOU REALIZADOR
Nasceu em Lisboa há 37 anos e vive entre a capital portuguesa e Madrid. Licenciado em comunicação social, Filipe Araújo foi jornalista durante dez anos, correspondente d’A Capital em Roma e estagiário na televisão italiana, mas perdeu-se de amores pelo cinema. Realizou a primeira curta-metragem documental, C-mail, em 2005, com a qual recebeu a Primeira Menção Honrosa do IV Festival de Curtas de Oeiras, percorrendo inúmeros festivais europeus. Depois fez várias curtas e duas longas (African Parade e A Setima Vida de Gualdino), sempre sob a chancela da produtora Blabla Media (www.blablablamedia.com), que criou em 2005 com o jornalista e escritor João Lopes Marques. Os seus filmes já passaram em salas e eventos prestigiados como o Circulo de Bellas Artes e a Filmoteca Espanola, em Madrid, a Casa del Cinema, em Roma, ou o Forum Universal das Culturas, da UNESCO, em Monterrey, no México.
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