Seiva Trupe, há meio século a descobrir palcos

Nasceu no despontar da democracia, naquela ânsia de liberdade, conquistou o seu espaço e o seu lugar, cresceu (com algumas dores), tornou-se uma instituição com salas cheias, êxitos, digressões. A companhia de teatro do Porto andou com a casa às costas, foi despejada do edifício que ajudou a construir ao centímetro, bateu a várias portas, reergueu-se. A sua história é feita de luta e de resistência (e agora mais um golpe, a exclusão dos apoios públicos às artes). O 50.º aniversário é celebrado com uma estreia.

Dia 11 de setembro de 1973. Uma profissional de seguros, um avaliador de ouro e um funcionário da Regisconta (aquelas máquinas de escritório) sobem as escadas de um edifício por cima do café “A Brasileira”, na baixa do Porto. Entram no escritório do conhecido notário da cidade Ponce de Leão, tratam das formalidades, assinam a papelada para a constituição da sociedade artística Seiva Trupe. Descem, bebem uns finos, havia razões para comemorar, depois de ano e meio de reuniões informais, tertúlias pela noite dentro. Estrela Novais, António Reis e Júlio Cardoso, todos com carteira profissional de ator, davam início a uma companhia de teatro. Seiva como sangue que alimenta, trupe pela vontade de itinerância e descentralização. Um ícone do Porto, uma instituição nacional, que amanhã celebra 50 anos de serviço público cultural.

António Reis, ator e fundador da Seiva, falecido no ano passado
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Júlio Cardoso, 85 anos de vida, 64 de carreira, um dos fundadores da companhia, lembra-se desse dia e de tantos outros que se seguiram. O telefone lá de casa que não parava de tocar a pedir espetáculos, casas cheias, atores a descarregar cenários de camiões, senhoras da Foz a ligar para perguntar se a peça continuava na primavera porque o frio do inverno obrigava a levar uma manta, o fabuloso guarda-roupa doado pela alta burguesia da Foz e que tanto jeito deu, a correspondência enviada pelo correio sobre as peças e com vantagens na bilheteira, o respeito das famílias do vinho do Porto daquela época, os sermões dos padres nas missas que tanto davam para um lado, como para o outro, sobre o que a Seiva Trupe mostrava em palco. “Com cinco anos, a seguir ao F. C. Porto, a Seiva Trupe era a instituição mais conhecida na cidade”, garante Júlio Cardoso.

”A peça “Bairro noite e dia”, de 2022
(Foto: DR)

Abre-se o baú de memórias e elas lá estão: sessões de poesia e de música, formações em teatro antes das escolas oficiais, novas fornadas de atores, encenadores e técnicos, o FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, os Prémios Seiva para distinguir vultos do Porto nas áreas da ciência, artes e letras. E os reconhecimentos atribuídos: membro-honorário da Ordem do Mérito pela presidência da República, boas práticas na promoção da igualdade remuneratória entre mulheres e homens pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, estatuto de entidade de utilidade pública desde 1993.

Estrela Novais, fundadora da Seiva Trupe, era uma miúda de 19 anos, atriz do Teatro Experimental do Porto. Acreditava nesse sonho de uma nova companhia teatral, a vontade era fácil de compreender. “Criar um ambiente cultural complementar no teatro”, explica. E assim foi. Tantas recordações e histórias dos espetáculos que andavam por todo o lado, por tantas terras. Em Alfândega da Fé, foram buscar cadeiras a casa, as que havia na plateia não chegavam para tanta gente. Em Alijó, não havia camarim, foram para o meio do milho tratar da caracterização. “Muitas histórias, muitas vivências, muitos aplausos, muito carinho”, lembra. Os cartazes que colou a anunciar as peças da Seiva Trupe à noite. “Ó menina, onde é que isto fica?”, perguntava-lhe quem passava. Aquela viagem a Fafe de comboio, sozinha, para vender as peças da companhia. Correu-lhe bem.

Júlio Cardoso não se esquece desses tempos, das tertúlias, de correr todas as capelinhas, da efusiva e enriquecedora troca de ideias pelos cafés da cidade, do estrondoso êxito da peça “Um cálice do Porto”, pensada durante dois anos, concretizada em dois meses. A base da companhia assentava na militância e itinerância cultural. “Se o público não vai ao teatro, vai o teatro ao público”, resume. Como uma missão. “O teatro, em si, é um fogo sagrado.” As gentes do Porto e a companhia nunca caminharam separadas. “O povo e os atores da Seiva são quase a mesma coisa”, diz o ator. E depois aquela memória boa, aquele momento em que António Reis, amigo, ator, encenador, fundador da companhia, que faleceu no ano passado, a receber a comenda da Ordem do Infante e ouvir-se bem alto, e com todo o orgulho, o nome Seiva Trupe.

O êxito “Um cálice do Porto”

Sobrinho Simões, patologista e médico, professor e investigador, foi homenageado com um Prémio Seiva e também homenageou várias personalidades da cidade. Com muito orgulho. Conhece o percurso da companhia de teatro. “É difícil pensar uma iniciativa tão excecional como a Seiva Trupe pela generosidade, consistência e qualidade ao longo de tantos anos e de tantas dificuldades”, constata. Pelas suas gentes, pela sua cidade. “Sinto uma coisa parecida com a Cooperativa Árvore, também crucial para a educação do público, primeiro, e a inteligência crítica das pessoas e da sociedade, depois”, acrescenta. Em seu entender, não há Inteligência Artificial (IA) que substitua a atividade da Seiva Trupe. “Hoje, mais do que nunca, é fundamental perceber que à IA falta a humanidade e a inteligência crítica (e inteligência criativa que só a arte pode dar). Estou com este discurso porque fui sempre muito sensível à importância que a Seiva Trupe deu à chancela de cidadania, à educação e à ciência”, explica. Sobrinho Simões sente-se grato. “Não deixo de sentir que sem o ensino das artes estamos a dar cabo da aprendizagem das crianças, e organizações como a Seiva Trupe são indispensáveis.”

Cooperativa do Povo Portuense, outrora palco temporário da Seiva Trupe
(Foto: Arquivo)

A companhia nasceu num quadro de luta pela liberdade e pela democracia, como sociedade artística, entretanto tornada cooperativa. Era uma época com sede de mudança. António Reis, Júlio Cardoso, Estrela Novais sabiam-no, sentiam-no, avançaram inspirados pelo teatro independente, um teatro novo para um novo público. Logo após a revolução, vários autores, várias peças, casas cheias em digressões pelo norte do país, do litoral ao interior. Depois, pelo país. “Nessa altura, andava-se em itinerância de segunda a domingo”, recorda Júlio Cardoso. Não se parava. Mesmo com dores. “Os primeiros 15 anos foram de crise de crescimento, não tínhamos capacidade humana”, revela. Com altos e baixos. “Houve sempre uma coordenação que, de vez em quando, junta o coletivo para altear a parte baixa.” E ali se fizeram atores de renome, José Pinto, Filomena Gigante, Carla Maciel, António Fonseca, Ana Bustorff.

Júlio Cardoso, ator e fundador da companhia
(Foto: Carlos Carneiro/Global Imagens)

Dois anos depois do nascimento, em 1975, a Seiva Trupe instalou-se num “velho barracão” que recuperou para o teatro, na Rua do Campo Alegre, e o público sempre a aumentar. “Um cálice do Porto” estreou em 1982, reavivou-se a tradição da revista à portuguesa, a história e os costumes do Porto, dois anos em cena, lotações esgotadas, um sucesso.

Teatro do Campo Alegre, a casa que ajudou a erguer e da qual foi despejada
(Foto J. Paulo Coutinho)

O “barracão” daria lugar ao novo Teatro do Campo Alegre para albergar a companhia que acompanhava e dava sugestões. A abertura do edifício aconteceu em 1997 com “O estranho caso do trapezista azul”, texto escrito propositadamente para a ocasião por Mário Cláudio, escritor do Porto, que abraçou o convite com muito gosto. Ainda hoje, conta, há quem o aborde sobre essa peça com afeto e admiração. “Foi um espetáculo inesquecível”, recorda. “A importância da Seiva Trupe é indiscutível, tanto a nível nacional como internacional, não é apenas uma companhia sediada no Porto”, refere o escritor, mesmo que, por vezes, admite, a conotação à cidade seja usada pela negativa. Só que a história fala por si. “A Seiva Trupe tem um desempenho extraordinário, não só pela qualidade das peças, como pela propagação de uma certa estética teatral, e iniciativas de relevo internacional, como o FITEI”, comenta Mário Cláudio.

Respeitar, renovar, rumar

A Seiva é uma história de resistência. Júlio Cardoso sabe bem. “Primeiro, é do Porto. Segundo, sempre se bateu pela chamada regionalização. Terceiro, a sua importância e grandeza. Tudo isso paga-se. Estamos a pagar agora”, confessa. Nas últimas semanas, o ator andou em ensaios para dar corpo e vida a um velho ator que é esquecido num camarim após o espetáculo, acorda trancado no teatro, e vagueia pelo palco em interrogações sobre o sentido da sua vida no teatro – quem sou eu, quem precisa de mim? “O canto do cisne”, clássico de Tchkhov, é uma produção do Teatro Nacional São João, que arranca a nova temporada 2023/2024 com esta peça que comemora o 50.º aniversário da Seiva Trupe. A estreia é amanhã, 11 de setembro, dia da fundação da companhia de teatro, na Sala Estúdio Perpétuo, onde estará em cena até domingo, dia 17, com sessões todos os dias às 19.30 horas. “É uma peça violenta para qualquer ator”, assegura Júlio Cardoso que a veste com imenso gosto e orgulho. “Se os deuses existem, eu tive essa bênção”, refere, a propósito desta interpretação. Um monólogo sobre a dignidade do ser humano e a passagem do tempo, encenado por Nuno Cardoso, diretor artístico do São João.

“O estranho caso do trapezista azul”, com António Reis e Paula Guedes, texto do escritor Mário Cláudio
(Foto: Arquivo)

A Seiva Trupe habituou-se a andar com a casa às costas, sem nunca faltar pouso, “descobríamos palcos”, conta Júlio Cardoso, até que se instalou, no fim de 2021, na Rua de Costa Cabral, na Sala Estúdio Perpétuo, num protocolo com o Centro de Caridade de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na Zona Alta do Porto, no limite entre as freguesias do Bonfim e de Paranhos. A nova morada fica no número 128, edifício de tijolo de barro, sala com paredes de tijolos em relevo, à vista.

Castro Guedes, encenador e diretor artístico da Seiva Trupe, acompanhou o nascimento da companhia, saiu, voltou no fim de 2018, implementou a “política dos 3R”: “Respeitar o passado, Renovar no presente, Rumar ao futuro.” A práxis da companhia que se tornou clara na produção, na captação de novos públicos, nas parcerias e acordos celebrados.

Castro Guedes, encenador e diretor artístico do grupo
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Anos e anos de espetáculos, salas cheias, opções estéticas, criações, novos públicos. Em 2013, a Seiva Trupe foi despejada da sua própria casa, do Teatro do Campo Alegre, o teatro que ajudou a construir alicerce a alicerce – “feito por nós ao centímetro”, recorda Júlio Cardoso. Rui Rio era o presidente da câmara. Essas memórias, dolorosas e cruéis, são públicas, fazem parte da história narrada no site. “A saída forçada da Seiva Trupe daquele Teatro tornou irrecuperável mais de metade do acervo de guarda-roupa, cenários e até documentação, tudo depositado num armazém da PSP, entre outros danos, morais e de perda de públicos. Estes, muitas vezes, não sabiam sequer onde ‘encontrar-se’ com a ‘sua’ Seiva Trupe.”

A companhia mudou-se para a Cooperativa do Povo Portuense, levantou-se do chão, recuperou, entrou na segunda década deste século novamente à procura de novas linguagens, adaptando-se à transformação do Porto e do país, ensaiando em várias salas da cidade, Cooperativa Árvore, Casa das Artes, Café Lusitano, Pinguim Café, à procura de um espaço físico até mudar-se para a Sala Estúdio Perpétuo. Começa um novo período com outro alento. E mais um golpe. A Seiva Trupe não consegue apoios públicos, da Direção-Geral das Artes. Houve manifestação no jardim do Marquês, foi feita uma petição dirigida ao ministro da Cultura, a alertar para a injustiça, com cerca de 5100 assinaturas. No dia em que dizem que podem entregar o texto em mãos ao ministro, o ministro vem ao Porto inaugurar o Batalha Centro de Cinema, recorda Soares Novais, jornalista, que conhece a companhia desde o seu início, desde os seus 18 anos, envolvido nestas iniciativas de defesa do nome e do trabalho do coletivo teatral. “A Seiva tem tido uma vida cheia de sobressaltos, andou muito anos com a casa às costas, agora que estava a caminhar bem, não foi apoiada pelo Governo, e volta a ter uma vida aflita. O futuro, tanto quanto sei, continua negro”, conta. Soares Novais não entende este tratamento, tal como o que está a acontecer com A Barraca. “Há um júri que percebe tanto da história das instituições, como eu percebo de agricultura”, atira.

Sala Estúdio Perpétuo, agora palco do coletivo do Porto
(Foto: Carlos Carneiro/Global Imagens)

Este ano, no Dia Mundial do Teatro de 2023, Castro Guedes escreveu uma carta aberta ao primeiro-ministro, lembrando nela o início antes do 25 de Abril, os 50 anos da fundação, os apoios de governos de diferentes cores, mesmo em tempos apertados do FMI e da troika. “Não quero crer que a Seiva Trupe tenha esperado meio século por um Governo de maioria absoluta socialista para ser morta por um garrote financeiro”, escreveu. Para logo acrescentar: “Acho-o tão absurdo, tão paradoxal e tão improvável, que prefiro acreditar que se tratou de um ato administrativo, sim, mas que, em política – como disse Mário Soares e muitos outros – tem de, em determinados casos, ser corrigido por novo ato administrativo.” Assim espera ele e tantos outros. Levantaram-se vozes a alertar para o injusto tratamento. Teimosia do ministro? “Prefiro imaginar que é o desconhecimento do que é, de facto, este ícone da cidade do Porto, projetado e reconhecido nacional e internacionalmente.” Castro Guedes não desarma e coloca mais linhas nessa carta. “Aceitemos que a decisão, precipitada ou mal avaliada, foi apenas uma falha. E não caiamos na tentação, de terríveis consequências no Mundo, de em nome de um igualitarismo primário esquecer o princípio de que o que é diferente diferentemente deve ser tratado.” A carta ainda não teve resposta.

A pouco mais de meia hora de mais um ensaio para a peça que amanhã estreia, Júlio Cardoso não se demora no assunto, mas dói-lhe, vê-se, sente-se. “Chamam a um concurso o que não é um concurso. Desafio qualquer dirigente a nível nacional a vir discutir comigo o que é um concurso de teatro profissional.”

Manifestação de protesto por causa da exclusão da histórica companhia dos apoios públicos às artes
(Foto: Amin Chaar/Global Imagens)

Estrela Novais também sente essas dores, não há distância que as cure. “Muita mágoa por saber que as coisas não estão a correr da melhor maneira. Dói-me imenso”, confessa. Apesar de tudo, a Seiva resiste. “O Júlio vai fazer um texto fantástico”, avisa. Será difícil não chorar.

Sobrinho Simões, confesso adepto entusiástico da Seiva Trupe, é agora também um “adepto furioso”, como descreve, devido ao que tem vindo a ser feito à companhia. “Penso que é um exemplo lastimável do poder e de variados pequenos poderes que têm primado pela falta de sentido do valor histórico e facial (leia-se real) da Seiva Trupe”, refere.

Mário Claúdio também não compreende. “É sempre lamentável que volte a aparecer uma notícia destas, que demonstra desprezo e indiferença por uma companhia como a Seiva Trupe”, observa o escritor. Soares Novais espera que “O canto do cisne”, interpretado por Júlio Cardoso, não seja “o canto do cisne” da Seiva Trupe. “Os criadores teatrais não podem estar sujeitos a este tipo de situação”, afirma.

“O canto do cisne”, com Júlio Cardoso, a peça que estreia amanhã, para celebrar 50 anos de uma vida cheia de histórias

Apesar de tudo, a Seiva Trupe continua o seu caminho, várias peças nos últimos anos, uma estreia nos seus 50 anos, um espetáculo em perspetiva “Uma noite de solidão no capim” a estrear pouco antes do 25 de Abril do próximo ano, nas comemorações do 50.º aniversário da Revolução. Mais 50 anos de Seiva Trupe, Júlio? “Eu diria que sim, eu diria que sim”, responde o ator. Homem recatado, assume que gosta de observar, ouvir, ler, e que confidencia que a maior fortuna que deixa aos filhos é que nunca tenham de mudar de passeio, cruzem com quem se cruzarem no caminho.