O cancro tem latitude e longitude

António passou quatro semanas a fazer seis horas de viagem diárias até Évora para ir à radioterapia. São padeceu das mesmas dores, mas pelo menos teve direito a alojamento e refeições. Filomena é de Mirandela e, uma semana após ser operada a um cancro no pescoço, no Porto, teve de voltar para casa de autocarro. Gracinda, de Castelo Branco, anda sempre a correr para Coimbra de ambulância, mas garante não ter razões de queixa. E depois há casos como o de Ismael e como o de Ana, deslocam-se os médicos e não eles e isso faz toda a diferença. Um retrato da doença oncológica nas regiões periféricas.

António Lopes, 72 anos, natural de Alenquer, mas estabelecido em Santo André, no litoral alentejano, há mais de 40 anos, nunca foi homem de parar quieto nem de se queixar. Esteve uns quantos anos fora do país, foi soldador, trabalhou para a Petrogal. Depois, abriu uma empresa de distribuição de gás ao domicílio. E durante três décadas lá andou ele, homem acarinhado da terra, de casa em casa, as bilhas de gás invariavelmente montadas sobre as costas, a subir quantos lanços de escada fossem precisos. Durante uns tempos, nem o facto de ter adoecido o fez parar. “Mesmo algaliado, andava a subir três andares com a garrafa de gás às costas.” Mas quando regressa à memória daquele mês de radioterapia não contém o desalento. “Fui-me muito abaixo, foi um castigo”, desabafa, e o desânimo amplifica-se no rosto abatido e magro. Durante quatro longas semanas, de segunda a sexta, algures entre março e abril, lá arrancava ele de Santo André em plena madrugada, à boleia do serviço de transporte de doentes providenciado pela Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano (ULSLA), para regressar um sem-fim de horas depois, nunca antes das duas, três da tarde, uma imensidão de cansaço, dos tratamentos, dos quilómetros intermináveis, de tudo. Se fosse direto ao hospital de Évora (onde fez os tratamentos), seriam uns 150 quilómetros até lá, outros tantos para voltar, uma estafa daquelas. Mas pelo caminho ainda era preciso apanhar outros doentes da região. António ainda tem gravadas as curvas e contracurvas daquele trajeto de três horas. Para cada lado. “Íamos a Melides, a Grândola, a Alcácer, a Vendas Novas. Às vezes entrávamos monte dentro, por uma estrada cheia de buracos.”

Arrancavam às seis, António acordava uma hora antes, “ter que levantar às cinco para quem está doente é muito duro”. Só que na verdade não tinha outra opção. Porque não se sentia “em condições” para conduzir depois do tratamento, porque a esposa toma conta da mãe, idosa e muito debilitada, e não tinha como se ausentar durante horas. Depois, era a espera no hospital, nunca inferior a três horas. Sem direito a almoço sequer. “Só umas bolachas que os voluntários ofereciam.” Terminados os tratamentos, novo suplício, quilómetros e quilómetros, desvios e desvios, até por fim chegar a casa, invariavelmente derreado, ao fim de oito, nove, dez horas. O martírio foi-se intensificando . “Na primeira semana, pode dizer-se que correu tudo bem. Mas depois comecei a ter mais dores e apareceram-me montes de problemas.” E nisto perdeu uns sete quilos, a esposa, Iracema, diz que ficou mesmo muito magro, mas agora já recuperou um “bocadinho”, ele lembra que, à custa dos tratamentos, o simples cheiro da comida enjoava. “A única coisa que ia conseguindo comer era um bocadinho de pão com leite e café.” E o lamento sai-lhe natural, não é que haja dramatismo no discurso, mas a exaustão é indisfarçável. “Foi tudo para esquecer naquele mês.”

António Lopes, 72 anos, não esquece o “sofrimento grande” que foram as viagens para a radioterapia. Nem os dez meses de espera para ser operado

A história arranca mais lá atrás, era o verão de 2021 quando António começou a sentir dores e dificuldades em urinar. Dois meses antes, lembra-se bem, tinha feito um check-up completo, um monte de análises e exames, e tudo estava perfeito. Depois vieram aquelas dores, insuportáveis ao ponto de ter de ir para as urgências a meio da noite. “Lá, algaliaram-me e mandaram-me para casa.” Por isso, decidiu recorrer a uma consulta particular com um urologista, sabe exatamente quanto pagou (60 euros). Foi ele que o reencaminhou para o hospital, para dar seguimento ao processo. Exames para cá, mais exames para lá, um diagnóstico de cancro da próstata e uma espera interminável. “Estive dez meses algaliado, à espera da operação”, salienta. Pelo meio, o médico ainda lhe sugeriu que fosse operado no privado, lá conseguiria vaga rapidamente, mas eram para cima de cinco mil euros e “era difícil” ter essa quantia disponível. “Se soubesse que ia demorar tanto se calhar tinha feito de outra forma. Mas como me disseram que a minha situação era urgente, não pensei que fosse ser assim. E como descontei a vida toda para a Segurança Social, achei que tinha o direito de ser tratado no Serviço Nacional de Saúde [SNS].”

A dada altura, ainda o chamaram para ser operado, mas quando lá chegou disseram-lhe que não havia camas disponíveis. À segunda, testou positivo à covid. Entretanto, fizeram-lhe chegar vales para que pudesse ser operado com maior brevidade noutros hospitais, reconhece. “Mas já viu o que era ir para Braga sem ter lá ninguém e sem conhecer nada?”, questiona. E assim a espera foi-se prolongando. Acabaria por ser operado já em julho (de 2022). Meses depois, nova cirurgia, agora de urgência, para desfazer parte das pedras que tinha nos rins. A seguir, outra má notícia. O cancro tinha entretanto chegado à bexiga, daí a necessidade de radioterapia, o “sofrimento muito grande” que não há de esquecer.

As queixas, ao nível do transporte, sobretudo, são partilhadas por vários outros doentes oncológicos que são acompanhados na ULSLA e se encontram a fazer radioterapia no Hospital do Espírito Santo, em Évora. Em dezembro, com o apoio da associação Careca Power, fizeram até chegar ao conselho de administração desta unidade, uma carta em que expunham o seu desagrado face aos moldes em que o transporte de doentes tem decorrido atualmente. Na missiva, a que a “Notícias Magazine” teve acesso, recordavam que anteriormente “recebiam um apoio que contemplava transporte de ambulância para o local, alojamento e refeições (…), sendo transportados de ambulância à segunda-feira e regressando à sexta” e dispondo de “alojamento condigno e refeições equilibradas, custeadas pela entidade pública responsável pelo serviço”. Um cenário bem distinto do atual. “Atualmente, tais serviços passaram a ser assegurados por uma entidade privada e os doentes veem-se obrigados a percorrer cerca de 300 quilómetros diários, indo de manhã e regressando no mesmo dia, tendo de permanecer horas à espera”, explanavam na mesma carta. Sublinhavam ainda que neste universo de doentes estão idosos com comorbilidades associadas e pacientes com “inúmeras dificuldades económicas”. Assim, apelavam a que lhes fossem devolvidas “condições condignas” que lhes permitissem “atenuar o sofrimento” e conferir-lhes “alguma qualidade de vida”. A administração da unidade garantiu estar a estudar uma solução para o problema, mas até hoje não houve desenvolvimentos.

São Cerqueira Afonso, que se juntou à Careca Power há cinco anos, pouco depois de lhe ser diagnosticado um cancro da mama, foi uma das principais dinamizadoras desta reivindicação. Também ela travou uma luta feroz contra o cancro, tudo começou em 2017, quando, durante o banho, se apercebeu que tinha um nódulo no peito. Fez ecografia mamária, mamografia, era mesmo cancro da mama. Acabou por ser operada na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, já vivia no Alentejo mas tinha lá uma médica conhecida e achou melhor assim. Depois, ainda fez quatro sessões de quimioterapia no Hospital Santo António dos Capuchos, também em Lisboa. Mas quando chegou a hora da radioterapia aconselharam-na a pedir a transferência do processo para a ULSLA, de forma a poder ser tratada em Évora. Nessa altura, ainda teve direito a alojamento e a refeições. “E avisaram-me logo que ia fazer uma radioterapia muito agressiva, que não ia aguentar andar para trás e para a frente.” Assim foi. Eram os enjoos, o inchaço dos pés, uma fadiga atroz. “Muito cansativo. Acabava o tratamento, comia, ia para o hotel descansar. Só me levantava para ir jantar.”

São Cerqueira Afonso vive no litoral alentejano, foi operada e fez quimioterapia em Lisboa, a radioterapia já foi fazê-la a Évora. Na altura, teve direito a alojamento e refeições

Por isso, arrisca dizer que, se naquela altura, estivesse sujeita às condições com que António e tantos como ele se deparam atualmente, “provavelmente não aguentava”. Seis anos depois, ainda não se livrou da sombra do cancro de vez. “Logo no pós-operatório, apareceu-me um nódulo, os médicos ainda não conseguiram perceber exatamente o que é. Continuo a fazer ressonâncias de seis em seis meses.” Enquanto isso, dá graças pelavida que a doença a ensinou a levar. “Tento aproveitar tudo. Tenho viajado imenso, para Malta, para a Madeira, para Santorini [ilha grega], para as Maldivas, para Marrocos, para Moçambique. E até já saltei de parapente.” Mas a ânsia de viver tudo sofregamente não a faz esquecer dos tormentos que passou naqueles meses de tratamentos. Nem a agonia de quem os faz hoje, com condições incomparavalmente mais duras. “Isto é um massacre. Em vez de os estarmos a tratar, estamos a matá-los. Houve uma doente que, a meio dos tratamentos, teve de ser internada aqui em Santo André para poder ser reabilitada. A radioterapia não tem uma violência tão imediata como a quimioterapia, mas também é muito violenta”, alerta. E deixa um apelo sentido, de quem já deambulou pelos caminhos estreitos do cancro e não mais os esqueceu. “Para nós, que vemos a morte aqui ao pé, qualquer coisa que possam fazer para termos melhores condições é mesmo muito importante.”

A sina do Interior

Vítor Veloso, presidente do núcleo regional do norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro e uma das figuras que mais se tem destacado na defesa dos direitos dos doentes oncológicos, chama precisamente à atenção para as “desigualdades grandes” que resistem na luta contra a doença, nomeadamente a nível territorial. “Desde logo por causa da acessibilidade. No Interior, muitas vezes, é mais difícil aceder ao médico de família, há poucos e os que existem estão sempre superatarefados, muitas vezes o doente vai para lá às quatro ou cinco da manhã e não consegue consulta. E portanto acaba por haver mais dificuldade em diagnosticar, o próprio acesso aos meios complementares de diagnóstico não é tão fácil, tudo isso acaba por atrasar a caracterização da doença.” A este atraso preliminar, juntam-se as listas de espera para cirurgia. “Que podem ir dos três meses aos três anos, no caso do cancro da próstata.”

Defende, a propósito, que devia haver, no Interior do país, hospitais com diversas valências que permitissem dar resposta aos cancros mais comuns. E, apesar de ressalvar que “praticamente todos estão desfalcados”, frisa que há zonas “altamente desfavorecidas”. Como Trás-os-Montes, como o Alentejo profundo, como as Beiras profundas, como as ilhas. Sendo que uma boa parte dos doentes acaba por ser “altamente penalizada” por viver longe das grandes cidades, entende. A “Notícias Magazine” endereçou ao Ministério da Saúde várias questões sobre eventuais medidas tomadas para diminuir as desigualdades territorias na luta contra o cancro, mas o ministério remeteu para a direção executiva do SNS e esta para o coordenador das doenças oncológicas, acabando por não ser possível obter uma resposta em tempo útil. Vítor Veloso chama ainda a atenção para a questão das deslocações. “Muitos doentes não têm direito a transporte e, mesmo nos casos em que têm, muitas vezes, quando moram nas aldeias, têm de pagar do bolso deles um táxi até ao local onde vão apanhar a ambulância. É indiscutivelmente uma das grandes desigualdades que existem.”

Maria Filomena Vaz, 58 anos, residente em Mirandela, bem o pode dizer. Em 2020, apareceu-lhe um papo no pescoço, ela a princípio nem ligou, só que já o segundo confinamento tinha terminado e o papo lá persistia, teimosamente. Aí ela começou a inquietar-se. Fez uma ecografia ao pescoço, aconselharam-lhe logo a TAC, a seguir a biopsia. “Andou tudo muito rápido graças a um médico radiologista, meu amigo, que me ajudou”, admite. Os resultados confirmaram o cancro, a médica no hospital de Bragança reencaminhou-a de imediato para o IPO do Porto. “Disse-me que não tinha equipa para operar aquele tipo de tumor”, assegura Filomena. Passado uma semana, já lá estava numa consulta. “Aí ainda tive direito a ambulância, mas desde então nunca mais”, lamenta. Nem para ir às consultas, nem para fazer exames, nem mesmo para voltar a casa depois de uma cirurgia que a obrigou a passar uma semana internada. “Foi uma viagem horrível”, recorda, consternada. “Tive de vir de autocarro, cheia de dores, acabada de tirar os drenos, sozinha, com a mala.” Ora mudava a posição do pescoço , ora encostava a cabeça à mala, ora a punha do lado oposto, mil e uma estratégias para tentar encontrar o conforto que nunca chegou, um tormento interminável.

Sempre que vai ao IPO do Porto, Maria Filomena Vaz, de Mirandela, tem de fazer a viagem de autocarro

A propósito, os critérios para que um doente oncológico tenha direito a transporte estão estabelecidos na Portaria 142 B/2012 , que dita o seguinte: por um lado, é preciso que se comprove a situação clínica que justifique a necessidade de transporte , por outro, há que fazer prova da insuficiência económica. E ambos os critérios têm de ser cumpridos cumulativamente. Caso tal não aconteça, a isenção aplica-se apenas “aos doentes oncológicos que necessitem impreterivelmente da prestação de cuidados de saúde de forma prolongada e continuada, nomeadamente em tratamento de quimioterapia e radioterapia”. Não foi o caso de Filomena, que fez apenas um tratamento com iodo radioativo. Ainda tentou dirigir-se à assistente social para perceber se poderia ser contemplada, mas, garante, a resposta foi negativa. “E logo eu que, três semanas depois de ser operada, tive de voltar ao trabalho, porque não podia ficar só com 60 euros por mês [depois de pagar as despesas]”, indigna-se.

Filomena não disfarça o desagrado. E realça a “revolta” com um outro episódio ocorrido em junho último, numa das deslocações que fez ao Porto, para realizar exames. “Como há já bastante tempo que andava com uma ferida aqui na cara que não sarava e deitava um líquido misturado com sangue [aponta para o local, tapado com um penso branco], quis aproveitar que lá estava para me verem aquilo. Expliquei a situação à administrativa das ‘urgências’, ela foi falar com quem estava lá dentro e disse-me que não me poderiam atender. Acabei por ter de ir ver isto aqui [em Mirandela], num hospital particular.” E o feedback voltou a não ser bom. “Disseram-me que era um tumor, estou à espera do resultado dos exames para perceber de que natureza. Acabei por pagar uma fortunapara mo removerem.” Indignada, não se ficou. Jura que fez queixa no livro de reclamações e ainda endereçou uma carta à instituição. Também a “Notícias Magazine” confrontou o IPO com tal episódio, tendo sido esclarecido que “o Serviço de Atendimento Não Programado [SANP] não é um serviço de urgência”. A ideia é antes “dar um suporte aos doentes com complicações relacionadas com o tratamento ou evolução da doença oncológica”. “Antes de o doente recorrer ao SANP, tem de contactar previamente o IPO Porto para que a equipa clínica de serviço possa aferir as condições do doente e orientar da melhor forma”, alerta a instituição. Mas Filomena insiste que se sente “prejudicada por ser de longe”. “E devíamos ser todos iguais”, lamenta, a frustração bem estampada no rosto fechado.

Gracinda Maria Esteves, 59 anos, albicastrense de nascença e de sempre, tem tido uma experiência distinta, prefere ver o copo meio cheio. É certo que anda sempre a correr para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a cada tratamento, a cada consulta, a cada exame, é mais de hora e meia de viagem para a frente, outra hora e meia para trás, mas ainda assim assevera não ter razões de queixa, diz que foi sempre bem tratada no SNS, que o cancro foi descoberto “muito a tempo”, que “tudo andou relativamente rápido”. Ainda por cima, tem direito a transporte de ambulância. E está isenta do pagamento de todas as taxas moderadoras, o que não é de desvalorizar. “A dada altura, até perguntei ao meu ginecologista se achava que devia recorrer ao privado e ele disse que não, que estava muito bem em Coimbra. E tenho estado.”

Tem os papéis todos guardados, o que a ajuda a estabelecer a cronologia desta luta que lhe tomou os dias. Em julho do ano passado foi chamada para uma mamografia de rastreio na carrinha da Liga Portuguesa Contra o Cancro, em Castelo Branco, até lá tinha sido sempre saudável, tirando uma coisa em outra, ia descansada da vida. Só que não tardou a ser informada de que deveria dirigir-se às instalações da Liga em Coimbra, fez uma ecografia e logo a encaminharam para uma biopsia. O diagnóstico chegaria em setembro, tinha um carcinoma invasor, um dos gânglios também estava positivo, tinha de ser operada, não havia volta a dar. Pelo meio, ainda teve que ir a Coimbra pelo menos mais três vezes, as primeiras viagens ainda ficaram todas a seu cargo , mas assim que foi operada, a 10 de novembro, a médica passou-lhe o atestado ultiuso e nunca mais se chateou com o transporte. Vai de ambulância, os bombeiros levam-na logo de manhãzinha e esperam por ela em Coimbra, quando acaba só tem de lhes ligar a dizer que está pronta. “E vou sempre sozinha. Só uma vez é que fui com um casal e acabei por ter de estar umas horas à espera deles.”

Gracinda Maria Esteves, 59 anos, faz mais de 300 quilómetros de cada vez que tem de se submeter a tratamentos

Passou seis meses a fazer quimioterapia, primeiro de três em três semanas, depois, para reduzir as náuseas e os enjoos, a médica sugeriu que passasse a fazer tratamento semanalmente, é certo que isso implicaria muito mais viagens, mas Gracinda achou que compensava. Foram tempos duros, de um cansaço extremo, de dores de cabeça intensas, de seis e sete horas perdidas entre viagens e tratamentos, de regressos a casa feitos quase sem conseguir abrir os olhos, de dificuldades várias, desde o não conseguir andar, às mãos que ficaram em carne viva, às dores horríveis nas unhas e nos maxilares. A juntar ao cansaço intenso das viagens e às horas intermináveis de espera no hospital. “É a única razão de queixa que tenho, mas as coisas são como são”, observa. Agora, no final do mês, vai começar com a radioterapia, também em Coimbra, 15 minutos diários, todos os dias, segunda a sexta, são 30 sessões ao todo, promete ser outra epopeia extenuante. “Claro que se pudesse fazer os tratamentos cá em Castelo Branco era melhor, mas pronto, faço o que for preciso, quero é ficar curada”, vinca.

O longe que se faz perto

Mas a história do cancro nas regiões periféricas do país não se faz só de dificuldades acrescidas, de esperas angustiantes, de longas viagens, de quilómetros sem-fim. Casos há em que, para diminuir as deslocações dos doentes e lhes garantir o conforto, são os próprios médicos a deslocar-se. É o que acontece no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (que engloba as unidades hospitalares de Chaves, Lamego e Vila Real), onde a maior parte dos oncologistas da equipa viaja semanalmente até Macedo de Cavaleiros (hospital que faz parte da Unidade Local de Saúde do Nordeste) para dar consultas e fazer tratamentos de quimioterapia. Eugénia Madureira, diretora clínica desta unidade, recorda a génese da parceria. “O nosso hospital de dia de oncologia foi durante algum tempo assegurado por um colega em regime de prestação de serviços. Mas em 2014 ele rescindiu e pensámos neste acordo que, no fundo, ia beneficiar as três partes. Sobretudo o doente, porque assim evitamos que ele tenha que se deslocar. Mas também beneficia as instituições, que passam a ter um serviço mais abrangente.” Marta Sousa, diretora do serviço de oncologia do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes, explica como tudo se processa. “Temos cinco médicos a vir cá. Dois vêm às terças, um às quartas, dois às quintas. Vêm o dia inteiro, dão consultas e fazem tratamentos.” As vantagens são incontornáveis. “O doente oncológico é um doente muito debilitado. Fazer viagens longas, sobretudo quando os tratamentos muitas vezes provocam vómitos e náuseas, é muito penoso. Muitos deles, se tivessem de ir fazer tratamento a Vila Real, teriam de acordar às cinco, seis da manhã. É preciso não esquecer que o nosso centro hospitalar abrange uma área muito alargada, que inclui Bragança, Vila Real, o norte de Viseu e mesmo alguns concelhos limítrofes do Porto.”

No hospital de dia oncológico, os doentes com quem vamos falando parecem dar-lhe razão. Fernando Pires, 57 anos, residente no Baçal, em Bragança, começou com vómitos algures em 2020, foi a correr para o hospital mais próximo, daí encaminharam-no para o IPO do Porto, foi lá que soube que tinha cancro do pâncreas, que viu a morte à espreita. Mas nisto passaram-se uns três anos, tem de fazer tratamento todas as semanas, mas o cancro recuou, agora está “estável”. E dá graças por poder fazê-lo em Macedo, ali perto de casa, se tivesse de andar sempre a correr para Vila Real “não aguentava as viagens”. “Não conseguia, estou muito debilitado e os tratamentos são muito agressivos.” Isidoro Esteves, de Mirandela, com 82 anos e um diagnóstico de cancro do estômago a pesar, amplifica a gratidão. “Poder fazer o tratamento aqui é uma grande coisa. E sou muito bem tratado”, afiança, num sorriso. Nesta manhã de terça-feira, os cadeirões estão todos ocupados, os fármacos vão lentamente fazendo o seu caminho por entre o silêncio dolente que domina a sala. Ismael Lopes, 63 anos, é de Argozelo, concelho de Vimioso, está muito encostado no cadeirão, parece capaz de adormecer não tarda. Noutras vidas, já lá vai uma eternidade, chegou a trabalhar nas minas de volfrâmio, 80 metros debaixo de terra, mas há uma data de anos que era calceteiro. Só que às tantas começaram a doer-lhe muito os braços e as pernas, andava cansado, pálido, irreconhecível. Até que procurou ajuda no centro de saúde de Vimioso e logo seguiu direto para Bragança, a tensão estava baixa, baixa, baixa. Lá chegado, fez uma série de exames, duas transfusões de sangue, nessa mesma noite ainda seguiu para Mirandela, para fazer colonoscopia e endoscopia. O veredicto de cancro do estômago não tardou. Logo em dezembro, foi a Vila Real fazer três sessões de radioterapia. Depois, a partir de janeiro, começou com a quimioterapia, esta sim, feita em Macedo. Vem a cada 15 dias, já perdeu a conta aos ciclos, nem sabe exatamente quantos mais serão. Mas sabe que poder ser tratado em Macedo é uma boa notícia, que se tivesse de andar sempre a caminho de Vila Real “era mais complicado, carai, então não era”. Assim, está “mais pertinho de casa”, sobra-lhe mais tempo para poder tratar da horta, vai lá todos os dias pela fresquinha, não abre mão disso nem por nada, pára invariavelmente nas galinhas e nos porcos, é assim que expia os demónios do cancro que o aflige. “Se estivesse fechado em casa já tinha morrido”, vaticina, fatalista.

Ismael Lopes também agradece não ter de se deslocar a Vila Real. Assim sobra-lhe mais tempo para fazer aquilo de mais gosta: tratar da horta e dos animais

Ana Videira, 43 anos, sabe bem a diferença entre fazer tratamentos ao pé da porta ou a uns quantos quilómetros de casa. Em 2018, ao fazer a apalpação, notou que tinha um nódulo e foi fazer exames. Na altura, disseram-lhe que não era nada, mas que teria de estar atenta. “A verdade é que fui muito desleixada.” E no entanto o cancro já lhe tinha entrado pela vida adentro fazia tempo, o pai teve-o no intestino, acabou por morrer à mesa, em pleno dia de Natal, é um daqueles traumas impossíveis de apagar. Mas voltando a ela. Foi preciso começar a sentir “uma espécie de ferro em brasa debaixo da pele” para voltar a ir fazer exames. E aí o feedback já não foi tão leve, deram logo recomendação para biopsia, não tarda estava a receber um telefonema a dizer-lhe que fosse assim que possível para Vila Real, para “pôr os marcadores no peito”. Ficou logo apreensiva, tinha razões para isso, era cancro da mama, um dos mais agressivos, mais tarde saberia que, além do tumor em si, também lá estavam seis metástases.

Ana Videira, de Chaves, teve as duas experiências: primeiro andava sempre em viagens para Vila Real para fazer quimioterapia, depois “a quimioterapia foi até ela”

“Comecei logo a quimioterapia, foi tudo muito rápido.” Só que na altura ainda não se faziam tratamentos em Chaves, tinha de ir a Vila Real, o marido faltava sempre para a levar (com a concordância da empresa onde trabalhava, que foi sempre “impecável”, frisa Ana), o tempo de espera era imenso, e depois ainda a viagem de regresso, ela entorpecida por um cansaço imenso, o desgaste dele a juntar-se ao dela. Numa primeira fase, o nódulo do peito até regrediu de seis para dois centímetros, mas depois voltou a aumentar e aí chegou a ver o caso muito mal parado. “Os médicos não contavam que eu sobrevivesse.” Mas Ana não desistiu nunca, no hospital é conhecida pelo sorriso teimoso, haveria de ver a resiliência compensada com a melhor das notícias, foi a 7 de janeiro de 2020, tem aquele número da sorte tatuado no braço como lembrete permanente de um dos melhores dias que viveu, foi quando soube que o cancro tinha entrado em remissão, que já não tinha células cancerígenas no seu corpo.

É certo que continua a fazer quimioterapia, aquele cancro tem uma taxa de recidivas altíssima e os médicos não querem arriscar. Mas já há três anos que faz tratamentos em Chaves, nem de propósito mesmo ao pé de casa, uma melhoria substancial da qualidade de vida. “Foi muito bom. Porque deixei de fazer aquelas viagens todas e porque deixei de me sentir um peso. Aqui posso vir sozinha, não tenho de chatear ninguém.” Patrícia Gago, a oncologista que a acompanhou, uma das médicas que, todas as semanas, se desloca para dar consultas e fazer tratamentos (neste caso a Chaves), resume o princípio que subjaz a tudo isto. “A premissa é: o doente tem sempre de ter aqui o mesmo nível de cuidados que teria noutro local, não tem culpa de ter nascido em Chaves. E para um doente que está muito debilitado qualquer ganho de qualidade de vida é relevante. Daí a nossa preocupação com estes cuidados de proximidade, mais humanizados.”