Testes genéticos. A escolha de fintar doenças antes do tempo

Fazer testes genéticos para avaliar o risco de se vir a desenvolver cancro, doença cardíaca ou degenerativa é um mundo a evoluir, numa dicotomia entre a utilidade e os riscos. A procura está a aumentar. E há já um negócio de vendas diretas, recheado de promessas vazias, apesar de não ser legal. Num jogo de ética, afinal, como se desenha o futuro?

Foi em 2013 que Angelina Jolie surpreendeu o Mundo ao anunciar que fez uma dupla mastectomia preventiva depois de saber que tinha 87% de probabilidades de vir a desenvolver cancro da mama. A estrela de Hollywood, tão famosa pelos filmes que protagonizou como pelo casamento com Brad Pitt ou pelas causas humanitárias, alertava aí, há quase uma década, tinha ela 37 anos, outras mulheres para a possibilidade de fazerem testes genéticos, que preveem o risco acrescido de se vir a desenvolver uma doença, no caso de terem antecedentes familiares. A mãe da mediática atriz perdeu a luta contra o cancro aos 57 anos. Angelina não quis o mesmo destino, até porque uma parte dos cancros da mama resulta da herança de uma mutação genética. Dois anos depois, ainda fez uma cirurgia para retirar os ovários e as trompas de Falópio, para desafiar as probabilidades de desenvolver cancro do ovário – a doença que lhe levou a avó e a tia.

Desde então, o universo destes exames cresceu, e muito. Os testes genéticos pré-sintomáticos (em pessoas saudáveis, mas com histórico familiar de uma determinada patologia) e preditivos (em pessoas saudáveis sem qualquer histórico familiar) são hoje bem mais comuns. Os últimos chegam mesmo a ser moda. Ainda assim, e apesar de a lei para a regulamentação dos testes genéticos em Portugal existir desde 2005, não há um levantamento do número de exames feitos no país. No início de 2019, um artigo da revista MIT Technology Review estimava que as vendas de kits de testes genéticos teriam atingido os 26 milhões em todo o mundo e que a tendência seria aumentar. Por cá há regras bem definidas, que nem sempre são cumpridas: só podem ser realizados com prescrição de um médico geneticista, tem de haver aconselhamento genético, acompanhamento psicológico e de se assinar um documento de consentimento informado. Os resultados são sigilosos, só são dados ao próprio pelo geneticista. E é uma opção do utente incluir essa informação no processo clínico ou mantê-la num processo à margem e confidencial.

“Imagine-se que tenho sinais de doença neurológica, o meu pai e a minha mãe também a tiveram. Aí, o pedido de estudo genético já pode ser feito por qualquer médico. Porque não é preditivo, é a confirmação de um diagnóstico. O estudo preditivo é feito quando as pessoas são saudáveis”, explica Sérgio Castedo, médico geneticista no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), no Hospital de São João, na Fundação Champalimaud e na CUF. O especialista, que dá consultas de aconselhamento genético – “que servem apenas para informar sobre os prós e os contras de se fazer um teste genético, não devem influenciar a pessoa para o ‘sim’ ou para o ‘não’” -, admite ter convicções nesta matéria, embora tudo dependa de cada caso.

“Se pertenço a uma família com alta incidência de cancro, descobrir se tenho a mesma alteração genética vai-me permitir duas coisas. Primeiro, iniciar uma vigilância adequada muito mais cedo ou, em casos limite, fazer uma cirurgia para diminuir o risco. Depois, outra utilidade importantíssima é o facto de me permitir não passar a mutação genética para a geração seguinte.” Como? Recorrendo à seleção de embriões, obtidos por fertilização in vitro, que não têm essa alteração. É o chamado diagnóstico genético pré-implantação. “É muito usado. Faço parte do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e todos os meses apreciamos pedidos destes.”

Abdicar de parte do corpo para evitar o cancro

A seleção de embriões vai permitir ao filho de Maria (nome fictício) não passar a mutação genética à descendência. A história de uma escolha radical como a de Angelina é bem familiar a esta profissional de saúde. Aos 55 anos, sabe que carrega o fardo dos genes. Já perdeu mais de seis familiares diretos devido a uma neoplasia. “Dada a minha carga genética, o médico de oncologia sugeriu um teste pré-sintomático.” O resultado, esse, foi o esperado, tendo em conta que um ano antes havia sido diagnosticada com cancro da mama. Mas comecemos pelo princípio. “Somos encaminhados para uma consulta de genética onde se explica que tipo de mutações se vão estudar, temos uma consulta de psicologia para avaliação e depois consultas de seguimento. Temos que assinar um consentimento informado. O teste é uma colheita simples de sangue. O resultado é que é mais moroso, entre dois a três meses”, relata. A pesquisa de mutações é orientada tendo em conta os tipos de tumores na família. E há uma razão para Maria ter decidido avançar com o teste (como ela, também os irmãos e os filhos): “Achei melhor, sobretudo porque tenho filhos”.

Angelina Jolie anunciou, em 2013, ter feito uma mastectomia bilateral preventiva na sequência de um teste genético
(Foto: DR)

O resultado foi claro, tem dois tipos de mutações e restaram-lhe poucas dúvidas. “Percebi que tinha risco acrescido de reativar o cancro da mama. E como a percentagem de neoplasia era muito elevada, no ovário perto de 90%, era quase uma certeza que ia ter cancro do ovário. Decidi fazer uma mastectomia bilateral e retirar os ovários.” Abdicar de parte do corpo foi uma decisão dura num caminho de prevenção onde não entram respostas certas. “No caso de retirar os ovários, foi fácil, porque é um cancro silencioso e não dá para vigiar. Em relação às mamas, ponderei, poderia ter ficado em vigilância.” Avançou com a cirurgia, ainda que saiba que não fica isenta de riscos, só os reduziu.

A somar a tudo, um dos filhos também testou positivo para a mutação. E ela ainda descobriu o risco acrescido para cancro do pâncreas, melanoma cutâneo e melanoma ocular. Vai sendo vigiada. Não se deixa perseguir pela ideia, mesmo trabalhando na área da oncologia, onde lida com casos idênticos a toda a hora. Treinou-se para não se deixar consumir pela ansiedade. “Hoje, os testes genéticos são muito mais usados. Todos os dias se pedem na oncologia. Mas é preciso avaliar bem a decisão emocionalmente. O facto de se saber que se tem a mutação pode dar-nos algumas armas, até para estarmos mais vigilantes. Mas tem que se ponderar bem o risco-benefício de se saber algo deste género.”

Prever o futuro, novas escolhas: útil ou não?

Nesta ponderação, o geneticista Sérgio Castedo defende que há casos em que fazer testes genéticos preditivos pode não ser útil. “Não me interessa saber se tenho risco acrescido de ter doença de Alzheimer se não há nada que possa fazer para a prevenir, só vou viver com essa ansiedade. Ainda assim, há pessoas que querem saber, porque isso vai mudar a forma como vão viver, nomeadamente para não adiarem sonhos. E não tenho argumentos para dizer que não a essas pessoas.” Então e quando não há histórico familiar? Quando apenas o medo aterrorizador de vir a ter uma certa doença leva tantos a pedir o teste? É principalmente aí que a balança tem que ser muito bem pesada. “Num hospital público, a minha resposta seria não, não fazemos testes à la carte, temos que ter critérios. No privado, admito. Já me aconteceu uma pessoa insistir num teste genético para saber se tem uma determinada mutação, mesmo não tendo indicação. A probabilidade de encontrar alguma coisa é baixíssima, mas se a pessoa insiste, na verdade não lhe estou a tirar nenhum órgão, é só um bocadinho de sangue. E não estou a prejudicar o erário público, é a pessoa que paga. Qual é a minha objeção ética?”

Sérgio Castedo, médico geneticista, avisa que não existem testes para saber todas as doenças que se podem vir a ter
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Com a área da genética cada vez mais avançada, em escolhas que hoje podemos fazer e que os nossos avós não faziam, os testes preditivos já permitem saber o risco de virmos a desenvolver cancros, doenças cardíacas, degenerativas, diabetes ou até obesidade. No privado, os custos dependem dos painéis de genes estudados, mas podem ultrapassar os mil euros. Com uma amostra de sangue, é possível estudar um só gene como cem ou mil. Mas “testes para saber tudo o que se pode vir a ter não são feitos”. “Lá chegaremos. O problema de fazer estudos não dirigidos é que ter uma alteração genética não é uma sentença de que se venha a ter uma doença. É apenas um risco aumentado em relação à média da população.” E o contrário também é verdade: um teste negativo determina um risco menor, mas nunca é nulo e pode gerar uma despreocupação perigosa.

De Rita Lee a Sharon Osbourne

O caso de Angelina Jolie criou, à época, um fenómeno de procura por estes testes, incluindo em Portugal, atracado à fama de uma artista à escala global. Mas não é único, longe disso. No Brasil, a cantora Rita Lee assumiu, em 2011, ter retirado as duas mamas, depois de ter feito um teste genético. A mãe morreu de cancro. Apesar da prevenção, em 2021, foi-lhe diagnosticado um cancro no pulmão esquerdo. À partida, curado.

Também Sharon Osbourne, mulher do cantor de heavy metal Ozzy Osbourne, fez uma mastectomia bilateral dez anos depois de saber que carregava uma mutação que lhe aumentava o risco de vir a desenvolver cancro da mama. Tinha 60 anos na altura. E a atriz norte-americana Christina Applegate, estrela da sitcom “Samantha Who?”, removeu os ovários e as trompas de Falópio, revelação que fez no programa “The Today Show”. “A minha prima morreu de cancro nos ovários em 2008 e eu podia prevenir isso. Tomei o controlo da situação.”

A coordenadora do Departamento de Genética Humana do INSA, Glória Isidro, frisa os benefícios dos testes genéticos, mas alerta que neste laboratório só se fazem com prescrição médica
(Foto: DR)

Em Portugal, no maior laboratório público a fazer testes genéticos acreditados, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), Glória Isidro, coordenadora do Departamento de Genética Humana, estima que se façam mil testes preditivos por ano, entre Lisboa e Porto. O número tem vindo a aumentar, “porque as pessoas têm cada vez mais informação e a ciência vai evoluindo”.

Mas João Gonçalves, responsável pela Unidade de Genética Molecular no mesmo departamento, sublinha que são testes que se fazem sobretudo num contexto de histórico familiar. Nesse campo, Glória nem hesita: “São extremamente úteis. Posso dizer enquanto pessoa que tem uma doença genética hereditária e que fez um teste pré-sintomático. Porque temos um acompanhamento completamente diferente”. É portadora de duas alterações genéticas para hemocromatose e “até saber, não tinha os mesmos cuidados nem era vigiada da mesma forma”. O tratamento é tirar sangue, “porque se acumula muito ferro no organismo” e ao primeiro sinal de alerta, avança. “Se não soubesse, podia já ter causado um dano irreversível noutros órgãos.”

João Gonçalves, responsável pela Unidade de Genética Molecular no INSA, explica que o aconselhamento genético, face à história familiar, é que determina as análises que devem ser feitas
(Foto: Pedro Rocha/Global Imagens)

Para quem está dentro do laboratório todos os dias, os testes genéticos, dizem, não são simples análises. Enquanto nas análises clínicas muitos processos são automatizados, aqui ainda é tudo muito manual. Por isso, os resultados podem levar meses. E não faltam pedidos absurdos. “Acontece baterem-nos à porta. Quando a Angelina removeu os ovários e fez a mastectomia muitas mulheres vieram pedir-nos o teste. Se se descobre um tratamento para o cancro da próstata, há logo pedidos. Encaminhamos sempre para consultas de genética médica”, diz Glória. Até já receberam pedidos para testes que preveem a probabilidade de se vir a engordar – que são possíveis, mas que o INSA não faz.

Vendas online e o debate no SNS

As dúvidas ainda são muitas na hora de falar em testes genéticos preditivos. E os riscos caminham a par. No nosso país, apesar de a lei proibir a venda direta ao público, sem consulta de aconselhamento genético, ela acontece, quanto mais não seja através da Internet. Há múltiplas ofertas, a preços baixos – há até packs família a cerca de 300 euros – em sites escritos em português, qual take-away. Muitas das empresas a atuar online são dos Estados Unidos e vendem testes orientados para a diabetes ou para doenças cardíacas. A Deco já alertou para o perigo do fenómeno. “Numa pesquisa rápida, conseguimos com facilidade adquirir estes testes”, avisa Susana Santos, responsável pela área da saúde da Deco. São kits com uma zaragatoa que se esfrega no interior da bochecha. “A amostra é enviada para o laboratório, que será em princípio fora de Portugal. Depois, recebe-se a informação. Todo o processo é muito simples.”

Mas uma vez recebido o resultado, esbarra-se num labirinto sem saída. “Imaginemos que há predisposição para o desenvolvimento de um cancro. Sem acompanhamento médico, o que é que se faz com isso? Trata-se de informação extremamente sensível e não sabemos se os laboratórios são certificados”, aponta Susana.

Lina Cardoso Ramos, médica geneticista e presidente do Colégio de Especialidade de Genética Médica da Ordem dos Médicos, lembra um caso que lhe passou pelo consultório, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Um casal tinha enviado para os Estados Unidos uma amostra de saliva e o resultado da mulher indicava um risco significativo de vir a desenvolver um cancro. “Achei muito estranho, porque não havia história familiar e tratava-se de uma mutação habitualmente herdada. Era importante realizar estudo genético, porque a senhora estava extremamente ansiosa e isso ia impactar também a vida de familiares.” O desfecho é sintomático: o resultado “veio normal”.

A presidente da Sociedade Portuguesa de Genética Médica, Lina Cardoso Ramos, alerta para os perigos da venda direta sem acompanhamento médico
(Foto: Fernando Fontes/Global Imagens)

Para lá de um mundo online sem rei nem roque, há laboratórios no país a vender testes genéticos preditivos como fórmula milagrosa para antecipar uma doença que pode vir a manifestar-se. “Dizem que é possível tratar preventivamente, quando essa é uma realidade que não está ao dispor da larguíssima maioria das patologias conhecidas. Além de não ser legal, é uma publicidade enganosa e eticamente reprovável”, aponta a também presidente da Sociedade Portuguesa de Genética Humana.

Da experiência que tem, Lina Cardoso Ramos diz haver uma tendência clara: as pessoas querem sobretudo fazer o teste se houver tratamento precoce ou alguma coisa a vigiar ou a prevenir. “Quando se trata de uma doença em que não há nada a fazer, depois de explicarmos os riscos, a maioria não quer avançar, porque cai em si sobre o que é viver com a informação. Vão ficar a vida toda à espera que apareça a doença e a probabilidade de acontecer, muitas vezes, é diminuta. É pior o estrago emocional. Isto mostra bem a importância da informação prévia e de um acompanhamento sério.”

Só que há um debate que se impõe e a médica reconhece isso. No SNS não há nada previsto para os testes preditivos. “E isso deve ser discutido. Quais é que devemos oferecer à população?” Há países que já o fazem para determinadas doenças genéticas com grande prevalência, a nível pré-concecional, antes mesmo de os casais terem uma gravidez em curso. O Reino Unido está a começar a fazê-lo para a fibrose quística. Há quem acredite que é vantajoso e há quem levante questões éticas, o casal pode não saber digerir o resultado. “Isto não é tudo preto no branco. Há muitos cinzentos. Temos de pensar se devemos instituir como país um rastreio deste género na população, para doenças muito bem selecionadas, em que conhecer o resultado é importante em termos de prevenção.”

A ética, os riscos e o que se segue

Num tema de fraturas, a ética entra pela porta grande e é um trapézio sem rede, a balançar ao sabor do vento do bom senso. Mayana Zatz sabe-o bem. É bióloga molecular, geneticista e professora doutorada no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, Brasil. Em 2018, lançou em Portugal o livro “GenÉTICA”. Basta recuar uns anos a uma aula de ética para traduzir a complexidade da questão. “Perguntei aos meus alunos de Medicina se gostariam de saber se têm risco aumentado de vir a desenvolver Alzheimer. Metade da turma disse que sim. E respondi que isso era ótimo, porque estávamos a testar no nosso laboratório e que esperava por eles. Sabe o que aconteceu? Nenhum apareceu”, relata à “Notícias Magazine”.

No currículo, não lhe faltam dilemas com os quais se debateu. É o caso de duas gémeas idênticas, em que um dos pais tinha uma mutação. Uma queria ser testada, a outra não. “O que se faz numa situação destas? Não testámos enquanto não entraram num acordo. Mas não há regras aqui.”

Prestes a chegar aos 75 anos, Mayana Zatz, bióloga molecular e geneticista brasileira, acredita que a genética é a ciência deste século
(Foto: DR)

Dentro dos casos mais emocionantes de aconselhamento genético que guarda está a história de três irmãs, cuja mãe sofria de uma doença degenerativa. “As três queriam ser testadas, mas não conseguimos descobrir a mutação da mãe. Então não conseguíamos perceber se também elas tinham a mutação”, conta. O material genético das três foi guardado, na esperança de surgirem testes mais avançados, e dez anos depois as irmãs voltaram. Duas delas já estavam afetadas pela doença e a mais nova, com 30 anos, não tinha ainda sintomas. Mas já não tinha coragem de ser testada. “Estava em lista de espera para doação de óvulos, ia deixar o sonho de ser mãe biológica. E tinha assinado o consentimento informado dez anos antes para podermos ir testando. E se testássemos e ela não tivesse a mutação? Discutimos muito, decidimos testar e ela não tinha. Não dá para imaginar o impacto que teve quando lhe contámos.”

No planeta da genética, onde se joga com probabilidades, há um mar a perder de vista de incertezas, sobretudo nos testes preditivos sem histórico familiar, “e é preciso ter muito cuidado com as previsões”. Se há casos em que “herdar um gene é uma certeza de que a pessoa vai desenvolver a doença”, outros há que são multifatoriais, ou seja, mesmo havendo terreno genético, os fatores ambientais também vão influenciar o eventual desenvolvimento da patologia.

O problema é que já há um negócio brutal de comercialização, com laboratórios pelo Mundo a oferecer o impensável “e o interesse comercial é sempre maior do que a ética”. Estamos a evoluir tanto que “daqui a pouco as clínicas de fertilização vão oferecer seleções de embriões mais bonitos ou mais inteligentes, um monte de promessas que sabemos que não podem cumprir”. Aliás, “em Israel já é possível fazer seleção de embrião pelo sexo ao quinto filho, no caso de um casal que tem quatro meninos ou quatro meninas”. Algo possível, mas ilegal no Brasil e em Portugal.

O futuro abre também a janela da privacidade. Com riscos óbvios. Primeiro, no que toca aos bancos que estão a acumular cada vez mais material genético. Não há certezas de que não venha a ser usado para outros fins. Depois, no que respeita aos resultados. Em Portugal, a lei não permite o uso desta informação para discriminação em seguros de saúde. E os dados são confidenciais. “Mas não sabemos quanto é que é realmente sigiloso. As seguradoras adorariam saber se um cliente tem risco aumentado de vir a ter uma doença tardia. E atualmente há muitos hackers, pode vazar tudo”, comenta Mayana Zatz.

Apesar de tudo e de tanto, as próximas décadas podem desenhar-se risonhas. Segundo Lina Cardoso Ramos, “o futuro será conseguirmos evoluir em termos de tratamentos precoces e preventivos”. Ainda não estamos nessa fase, mas há uma certeza para Mayana Zatz: a genética é a ciência deste século, a que nos vai permitir viver mais anos e com saúde. Pode até vir a ser possível editar genes para aumentar a esperança de vida. Tudo vai depender do uso que se fizer dela.

Testar o feto na gravidez: a ciência a evoluir

Os testes pré-natais que se fazem durante a gravidez também estão a crescer. Estão disponíveis para casais em risco, ou seja, quando há doença grave do pai ou da mãe, porque há a hipótese de interromper a gravidez. Por exemplo, um casal que sabe que é portador de uma fibrose quística pode fazer um teste pré-natal para saber se o feto é afetado. A evolução da ciência já permite testar doenças genéticas que antes não era possível. O INSA até está a implementar um teste não invasivo de procura de DNA fetal em circulação no sangue da mãe, para fazer a análise às trissomias mais comuns, como a trissomia 21. Ainda assim, este é, segundo o geneticista Sérgio Castedo, um campo mais apertado, de maiores constrangimentos legais. “Não posso, teoricamente, interromper uma gravidez de um bebé porque ele tem uma mutação de uma doença de aparecimento tardio. Só há motivos para interromper se o nascido vier a sofrer de forma incurável de grave doença. E na maior parte das doenças põem-se muitas questões. Os casos são analisados por uma comissão técnica.”

Os vários tipos de testes de genética médica

Pré-sintomáticos. Permitem saber se uma pessoa ainda assintomática, ou seja, saudável, é portadora de uma mutação genética responsável por uma dada doença que tem histórico na família. Normalmente, são testados vários elementos da mesma família.

Preditivos. Permitem saber se uma pessoa tem risco acrescido ou predisposição genética de vir a desenvolver uma determinada doença, com início habitualmente na vida adulta, mesmo não tendo histórico familiar dessa patologia.

Farmacogenética. Servem para melhorar e adequar o tratamento em caso de doença. Permitem detetar a predisposição para responder a um dado medicamento ou a suscetibilidade para reações adversas. Simplificando: ajudam a descobrir a terapia e a dose mais eficaz para uma doença em curso.

Pré-natais. São todos aqueles feitos antes ou durante uma gravidez, com a finalidade de obter informação genética sobre o embrião ou o feto, para perceber se herdou uma mutação genética. São realizados em casais em risco, ou seja, quando há doença grave do pai ou da mãe.

De rastreio. São todos os testes diagnósticos, de heterozigotia, pré-sintomáticos, preditivos ou pré-natais que são aplicados a toda a população ou grupos populacionais de risco aumentado, nomeadamente por género, idade, origem étnica. É o caso do Teste do Pezinho, o rastreio neonatal que permite identificar mais de 25 doenças nos recém-nascidos, que podem beneficiar de tratamento precoce.