Ser russo não é ser dono de uma guerra

Quando uma nacionalidade passa a ser sinónimo de “invasor”, abre-se a porta ao preconceito, aos insultos, ao bullying. E para quem já tinha fugido ao regime rumo à Europa, ao Ocidente, o rótulo é ainda mais duro. Isso e as sanções que afastam artistas, excluem atletas, roubam empregos perante um conflito que não pediram e que poucos dos que vivem em Portugal defendem.

Liza Koroleva chorou copiosamente no dia em que soube. Ainda agora chora. Parecia adivinhar uma dor que só ia caminhar cada vez mais forte no deserto que se avizinhava. Era 24 de fevereiro, a Rússia invadia a Ucrânia. Desde então, a milhares de quilómetros, no Porto, sentiu o preconceito bater-lhe à porta das redes sociais, perdeu o trabalho, as poupanças, não consegue receber o último salário, nem sequer ajudar a mãe. No passaporte, a nacionalidade é russa, apesar da vergonha. E, aos 29 anos, um tapete de direitos a ser puxado, qual malfeitora de uma guerra que não pediu, por um país do qual quis sair.

Chegou a Portugal há um ano, trabalhava na Polónia quando umas férias no Porto a fizeram mudar a vida. “Aqui, conheci tanta gente tolerante e calorosa, muitos amigos. Quis vir viver para o Porto.” E veio. Até há poucos dias, estava a trabalhar para uma empresa internacional de tecnologias de informação, era gestora de projetos. “Os clientes com que eu trabalhava eram da Rússia. Com o bloqueio do SWIFT (sistema global de comunicações bancárias e financeiras), deixou de ser possível pagarem-me. E as companhias europeias estão a cortar relações com a Rússia.” Não só não conseguiu receber o salário, como perdeu o emprego e deixou de poder ajudar a mãe, na Rússia, para quem enviava dinheiro. “Todos os cartões estão bloqueados, VISA, Mastercard, nada funciona.”

As redes sociais são só uma migalha num fardo maior, mas às quais não escapou. “Senti alguns ataques, logo no início. Nunca de portugueses. Era sobretudo de ucranianos em Portugal e na Polónia. Não era bullying, mas mandavam-me informação para me fazer sentir culpada.” Percebe que “as pessoas têm muita dor dentro”. “E nada do que me aconteceu se compara ao sofrimento dos ucranianos, a destruição, a morte. A minha melhor amiga é ucraniana, vive lá. Tem a vida destruída.” Agora, evita dizer que é russa, fala inglês na rua para se proteger, carrega uma culpa de que não é dona. Até já viu um cartaz à porta de um estabelecimento a proibir russos de entrar.

“A minha mãe vive perto da fronteira com a Ucrânia, ouve os barulhos. Não conheço uma única pessoa russa que apoie esta guerra. É uma tragédia, nunca distingui culturas, somos todos pessoas. E ninguém suporta isto.” Nem mesmo o irmão militar no Exército russo a que perdeu o rasto desde o início da guerra. Não sabe dele, se está vivo, morto, nada. No meio de tudo e de tanto, os amigos portugueses não a largaram, ajudaram-na a conseguir um trabalho temporário como gestora de projetos noutra empresa. Também começou, há uma semana, a dar aulas de ioga num estúdio do Porto para conseguir pagar a renda. E ainda é capaz de estender a mão a outros. Tem ajudado financeiramente associações que apoiam crianças vítimas da guerra. “Como não o fazer? Eu posso fazer-me à vida, elas não.”

Põe travão às emoções, que tenta reprimir num relato sereno. Aguenta-se. Mas faz um grito de revolta. “O que sinto agora é que estou a perder os meus direitos, nem sequer posso ajudar a minha família. Com todas estas sanções, será que vou ser obrigada a voltar à Rússia? Não quero voltar, mas também não sinto que os meus direitos estejam protegidos neste momento.”

A discriminação, a dupla penalização

Para lá das sanções que muitos estão a sentir na pele, os relatos de xenofobia, mensagens agressivas, de bullying nas redes sociais e em telefonemas anónimos a cidadãos russos a viver em Portugal começaram a emergir no início da guerra. A embaixada russa em Portugal pediu às vítimas de ameaças físicas e verbais que reportem os casos às autoridades nacionais. E num comunicado recente – em que defende a versão do Kremlin de que Moscovo tem apenas o objetivo de “desmilitarizar e desnazificar” a Ucrânia e que a “Rússia não começa as guerras”, apenas que “as acaba” – revela ter recebido “muitas queixas da comunidade russa residente em Portugal”, que tem sido alvo de “perseguição e discriminação” por “simplesmente serem russos”. E promete “responsabilizar, de acordo com a legislação portuguesa”, os culpados “desses atos de intimidação e agressão em relação aos russos”. De acordo com os mais recentes dados cedidos pelo SEF à “Notícias Magazine”, em 2021 havia 5156 residentes russos em Portugal.

Mas o fenómeno também invadiu as escolas e forçou uma carta aberta subscrita por pais e pelas associações Sempre, Espaço Vivo e MIR, que contava que “crianças que falam russo agora são recebidas com vergonha e ameaças de agressão de alguns dos seus colegas de escola ou da turma” e pedia ações de sensibilização às direções dos estabelecimentos escolares. É difícil às crianças fazer a distinção entre o que é a população russa e o Governo russo.

Se aumentarmos a escala, afinal, como é ser russo, por estes dias, na Europa? “Não é difícil imaginarmos que será muito, muito complexo. Muitos destes cidadãos estão fora da Rússia porque procuraram um país livre, em fuga de um determinado regime pelo qual até podem ser perseguidos. E na situação atual, muitas vezes bem integrados um pouco por toda a Europa, podem ver-se a braços com uma dupla penalização. Não só tiveram que sair do seu país, como podem agora estar a ser penalizados por serem russos quando a maioria em nada se identifica com o que está a acontecer”, refere Tiago Pereira, psicólogo nas áreas da educação e da psicologia comunitária. Numa Europa que ainda guarda os fantasmas da Guerra Fria e que viveu “um processo de reconstrução daquilo que é a imagem da população russa” nas últimas décadas, é simples adivinhar que “este tipo de situações recuperam alguns traumas pessoais”. “É muito fácil que se voltem a fazer discriminações relativamente a uma nacionalidade.”

E transferir culpas para todo e qualquer cidadão russo pela invasão da Ucrânia até tem uma explicação. “Diria que há alguns fatores do nosso funcionamento humano, na forma como nos comportamos, que incentivam a que o façamos”, sustenta o também membro da direção da Ordem dos Psicólogos, que se apressa a explicar. “Numa situação como a deste grave conflito, podemos tender a procurar o que é o lado bom e o lado mau. E a associar o lado mau não apenas ao regime russo, mas a toda a população russa. Mas temos, pelo menos os adultos, todas as condições para fazer uma racionalização e não fazer esta generalização abusiva.”

Não é preciso recuar muitos dias, todos nos lembramos do vídeo em que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, se dirigia em russo à população russa a viver no Reino Unido e dizia não acreditar que esta guerra estivesse a ser travada em nome deles. “Isto reforça uma ideia de suporte social e faz com que não haja complacência com atos violentos perante cidadãos russos. Deslegitima”, aponta o psicólogo. O caminho é esse, apelar à compaixão e empatia “não apenas com o povo ucraniano, mas também com pessoas russas que nada têm a ver com esta invasão”. Desde logo, “humanizando, contando as histórias destas pessoas”.

Como a de Natasha Pikoul, 55 anos, que há pouco mais de 15 dias acordou ao som de “mensagens abusivas”. Foi assim que ficou a saber que o país onde nasceu tinha acabado de invadir a Ucrânia. “Eram mensagens de amigos ingleses. Diziam que todas as pessoas como eu deviam ser extraditadas para a Rússia.” A pianista de Moscovo chegou a Portugal ainda antes dos anos 2000, em 1994. Mora em S. João da Madeira. E tenta perceber os dois lados do conflito.“Não estou em posição de condenar, esta situação é demasiado complexa. Mas sinto muita simpatia e pena pelo povo ucraniano.”

Ainda assim, de cada vez que tenta manifestar-se nas redes sociais, os comentários multiplicam-se. “É como se por ser russa não pudesse dizer nada. A verdade é que estamos a ver músicos famosos a serem despedidos, atletas afastados, até os gatos russos já são excluídos de competições. Isto é transcendente. É absolutamente ridículo. São sanções atrás de sanções e os russos começam a perceber que esta é uma guerra contra eles. Não é contra Putin, não é contra um regime, é contra uma nacionalidade. E isso não é aceitável.”

A mãe de Natasha está em Moscovo, mora lá. “Ninguém está tranquilo neste momento. Os russos também estão perturbados. Até porque consideramos os ucranianos um povo irmão. Antigamente, fomos do mesmo país.” Uma memória que ainda segue viva. Como outras, de outros tempos de violência. E são muitos os que se agarram a comparações históricas, os que dizem que ser russo na Europa, agora, é quase como ser fascista na Alemanha.

Sanções: dos atletas aos artistas

Jean-Martin Rabot compreende. O sociólogo e professor na Universidade do Minho reconhece que estamos a ser bombardeados “por imagens de guerra, de crianças, de civis assassinados, bairros e zonas habitacionais massacrados, isso tudo suscita um certo ódio, totalmente compreensível”. As imagens são transmitidas pelas televisões, espalham-se à velocidade da luz nas redes, “e comovem-nos, suscitam aversão, fazem-nos reagir de forma irrefletida”, num Mundo em que a “emoção domina sobre a razão”. A maioria dos russos que vive na Europa, defende, “é desfavorável a esta guerra, ao regime de Vladimir Putin e paga injustamente”.

Rabot põe os pés e a cabeça em Portugal. Diz saber “que houve alguns comportamentos xenófobos em relação aos russos”. “Mas creio que será algo totalmente marginal. O que mais preocupa os portugueses é o aumento do preço do gasóleo e de bens de primeira necessidade, o medo de um eventual conflito nuclear, a chegada de uma vaga de imigrantes.”

Só que a “russofobia”, como lhe chama, “não é nova na Europa”. “O maior era Karl Marx”, lembra. Contudo, se andarmos para a frente na linha do tempo, “atualmente, na Europa ocidental, não há propriamente um sentimento antirrusso, talvez só agora por causa da invasão da Ucrânia”. E, mesmo assim, não acredita que “por essa razão passemos a odiar os russos”. Até porque do mais extenso país do Mundo também nos chegam imagens de quem arrisca a liberdade e se sujeita à violência das autoridades para se manifestar contra uma guerra que não quis.

Por cá, em Portugal e na Europa, também se sofre na pele com as sanções do Ocidente. A começar pela exclusão de bancos russos do SWIFT, que tanto está a mexer com a vida de Liza. Não acaba aqui. Basta mergulharmos no mundo do desporto, com atletas russos e bielorrussos a serem excluídos dos Jogos Paralímpicos de Inverno em Pequim, na véspera da abertura da competição. O presidente do Comité Paralímpico Internacional, o brasileiro Andrew Parsons, quis justificar-se: “Lamentamos muito que sejam afetados pelas decisões que os vossos governos tomaram. São vítimas das ações dos vossos governos”. A Associação Internacional dos Jogos Mundiais seguiu-lhe as pisadas e excluiu atletas e oficiais russos e bielorrussos da próxima edição da competição.

Liza Koroleva perdeu o trabalho no Porto, não consegue transferir dinheiro para a mãe e sentiu o preconceito nas redes sociais

A bola de neve estende-se ao mundo artístico, onde a política de “cancelamento” a artistas russos, mesmo os que estão no Ocidente, chegou em força. São muitas as instituições a cortar relações com criadores russos pró-Putin ou que rejeitem condenar publicamente a invasão. Valery Gergiev, um dos grandes nomes da música erudita russa e próximo de Putin, viu concertos cancelados pelo Carnegie Hall em Nova Iorque e pelo Scala de Milão. A The Metropolitan Opera ou a Orquestra Filarmónica de Roterdão recusam-se a trabalhar com artistas que apoiem Vladimir Putin. E, dentro das portas do país dos czares, também há contestação cultural. Muitos diretores demitiram-se e os dois artistas que iam representar a Rússia na Bienal de Veneza decidiram não o fazer.

Duas violinistas, a mesma convicção

Tatiana Afanasieva, violinista na Orquestra Sinfónica Casa da Música, sabe a sorte que tem por estar em Portugal, “é um dos melhores países da Europa para estrangeiros”. E por já não ter família na Rússia e poder falar sem medos. Mas será justo exigir a todos os artistas a condenação pública ao conflito na Ucrânia? “É muito difícil exigir heroísmo às pessoas. Os artistas que não condenam publicamente Putin podem ter família lá. E a questão é muito complicada.” Está em terras lusas há 28 anos, contas feitas passou precisamente metade da vida cá. Isso não a impediu de ficar chocada. “É horrível, uma tragédia. Na primeira semana, ouvia notícias de manhã à noite incrédula. E sinto raiva, indignação.”

Não viveu na pele o preconceito. Ainda. Mas entende se vier a acontecer. “Percebo muito bem que as pessoas nos culpem. Eu própria, que estou contra tudo isto, estou a sentir culpa. Putin começou uma guerra em nome de todos os russos. E, infelizmente, vamos todos pagar. Somos invasores sem o sermos.” Tem receio de falar com amigos que ainda mantém em Moscovo, a cidade onde nasceu, “porque é perigoso”. Mas larga as amarras para gritar contra um regime que “até proíbe chamar guerra à guerra”. Juntou-se a uma manifestação no Porto contra a invasão da Ucrânia. Todos os amigos lhe conhecem a posição. Nunca a escondeu.

Entre o medo das represálias à família na Rússia (e são muitos os russos em Portugal a condenarem a guerra em surdina, embrulhados no temor da perseguição política, a negar-se a falar), ergue-se a coragem de Ianina Khmelik, também violinista na Orquestra Sinfónica Casa da Música e que, curiosamente, estudou na mesma escola artística de Tatiana, em Moscovo. Ianina, 38 anos, tem família na Rússia. “Mas não me vou calar.” A promessa vem do coração da miúda, ainda menor, que foi enviada pela mãe de Moscovo para Portugal. A memória ainda está bem fresca. “Estava a acontecer a guerra da Chechénia, explodiam-se bombas em todo o lado, as pessoas faziam turnos de vigília à noite nos prédios. Presenciei explosões num hotel ao pé da Praça Vermelha. Estava a passar na rua nesse momento. Vi portas a voar. E não saber se a tua casa vai explodir é muito traumático. Nessa altura, a assinatura da propaganda era a mesma.”

Estávamos em 1999 quando chegou a Espinho, onde um professor russo se tornou seu tutor até atingir a maioridade. Ianina agradece à mãe ter-lhe dado um futuro, a liberdade, num país sem “opressões e censuras”. Sabe melhor do que ninguém que “a segurança não tem preço” e conhece o “sofrimento dos ucranianos”. “Portugal é a minha casa. E graças a Deus que estou num país democrático. Não quero ter medo. Sei que as represálias são possíveis, tentam calar-nos de todas as maneiras possíveis. Mas o povo russo tem de se levantar. E sei bem que é muito difícil combater aquele regime.” Tem um projeto na música pop, chama-se IAN, concorreu ao Festival da Canção 2021. As músicas são o espelho do lugar onde nasceu, de uma adolescência – às vezes amarga – pelas ruas de Moscovo.

Para quem levanta a voz contra a guerra, numa dor difícil de explicar, os insultos chegam sobretudo de russos, “por ser uma traidora da pátria”. “Muitos estão cegos porque os obrigam a estar, não porque querem.” Junta-se a manifestações, doou bens para vítimas da guerra e tem apoiado “uma instituição russa de advogados independentes que ajuda presos políticos, depois das manifestações”. Só que por cá as consequências também se fazem sentir. E os artistas russos entram no lote. “Qualquer sanção que não passe por uma guerra em resposta à guerra é bem-vinda. Nós invadimos aquele país. As sanções não se comparam com aquilo que eles estão a viver. É inacreditável ver isto a acontecer no século XXI.”

A nacionalidade que traz inscrita no passaporte, tem noção, pode valer-lhe a discriminação. Muitos refugiados ucranianos estão a começar a chegar a Portugal. “É normal que só de ouvirem a palavra russo lhes venha o sentimento de ódio. Porque associam os russos ao facto de terem perdido a casa, o marido, o pai, o irmão. Não os posso censurar. Tenho vergonha, imensa vergonha de ser russa. E tanta pena por sentir vergonha.”

O nome do álbum que Ianina lançou em 2020, Raivera – neologismo composto que em russo significa “paraíso” (rai) e “fé” (vera) -, pode bem resumir-lhe a esperança: “Continuo a ter fé no Mundo”.