Os dias da guerra

Reportagem dos enviados à Ucrânia Pedro Cruz e André Luís Alves.

Lviv, Ucrânia

Cristo desce ao abrigo
Nos primeiros dias de guerra, em Lviv, uma cidade que já foi território da Polónia e onde reside a maior comunidade católica de um país de maioria cristã, mas ortodoxa, este Cristo de madeira é retirado do altar onde repousava há mais de seis séculos. Nem durante a Segunda Guerra Mundial a imagem desceu ao abrigo. Depois dele, dezenas de estátuas, imagens e monumentos, por toda a cidade, foram protegidos, cobertos, tapados ou levados para lugar mais seguro. A arte também se pode deslocar, refugiar ou esconder. Porque um povo só sobrevive se a sua cultura e arte também sobreviverem.


Kiev, Ucrânia

“Uma vida normal”

Vista assim, não parece uma imagem de um país em guerra. Mas é. Quando Kiev estava cercada pelas tropas russas, que tentavam estabelecer um círculo à volta da capital, lojas, cafés e restaurantes fecharam portas. Menos este. A palavra passou depressa. “Há um café aberto.” Até às cinco da tarde, mesmo de cortinas corridas, com o som das sirenes a ecoar nos altifalantes da rua, o café permaneceu aberto. Dois jovens, durante alguns minutos, parecem alheios a tudo o que acontece à volta, na cidade e no país. Estão, como todos os dias, “apenas” a tomar um café. Um pouco de “normalidade” dentro das rotinas pesadas dos dias de chumbo da guerra. A União Soviética e a cortina de ferro também lá estavam.


Arredores de Kiev, Ucrânia

Ninguém fica para trás

Os homens entre os 18 e os 60 estavam obrigados a ficar no país. Mulheres e crianças fugiram. E os mais idosos foram ficando. Em casa, quando podiam, ou nos lares onde viviam. Até ao dia em que os russos lhes bateram à porta e os forçaram a fugir. Nos arredores de Kiev, um terminal de autocarros tornou-se placa giratória de gente que chegava de aldeias e vilas das proximidades e procurava um lugar seguro. Carros particulares, carrinhas, autocarros, tudo o que tivesse rodas servia para transportar idosos para o mais longe possível da guerra. Os voluntários tratavam com carinho, cuidado, atenção e dignidade os mais fracos ou vulneráveis.


Odessa, Ucrânia

O êxodo

Nos primeiros dez dias de guerra, mais de um milhão de ucranianos deixaram o país, cruzando as diversas fronteiras com a Polónia, Hungria, Roménia ou Moldávia. Eram, sobretudo, mulheres, crianças e idosos que fugiam do conflito. Calcula-se que este tenha sido o êxodo mais rápido da História. Em pouco mais de uma semana, uma pessoa por segundo atravessava a fronteira. Mais de 10% da população ucraniana está refugiada ou deslocada. Os comboios nunca deixaram de funcionar. E neles viajaram milhões deste deslocados ou refugiados. À procura de um lugar mais seguro, com vidas inteiras dentro de pequenas malas. Muitas vezes com destino incerto.


Mykolaiv, Ucrânia

A arbitrariedade da guerra

Se tivesse caído uns metros adiante, este míssil teria atingido o prédio. A guerra (também) é isto – arbitrariedade, uma lotaria, uma incerteza permanente, uma questão de estar no lugar errado à hora errada. E nunca sabemos qual será o lugar certo ou a hora certa. Milhares de ucranianos, civis, desarmados, que tentavam sobreviver dentro da insanidade da guerra, foram mortos em bombardeamentos sem aviso, quando estavam apenas na rua, em casa ou no abrigo. Ou, pior, foram fuzilados, de olhos vendados e mãos atadas atrás das costas e, depois, deixados espalhados pelas ruas ou enterrados em valas comuns.


Kiev, Ucrânia

A vida já não mora aqui

A capital ucraniana já esteve cercada, foi “libertada” pelo Exército e, por estes dias, as informações dão conta da possibilidade de novo ataque. A cidade está praticamente vazia. A importância simbólica de Kiev leva a que seja uma das cidades mais protegidas, onde estão presidente e Governo, desde 24 de fevereiro. Zelensky ficou no país e garante que a capital nunca se renderá. Nos arredores da grande cidade, prédios inteiros, onde vivia gente comum, foram destruídos pelo armamento russo. Kiev pode resistir, não se vergar ou não ser tomada. Mas vai demorar muito tempo, depois do fim da guerra, até que a vida regresse em pleno à capital da Ucrânia.


Hospital de Mykolaiv, Ucrânia

Fintar a morte

Mortos, deslocados, refugiados e sobreviventes. Nunca saberemos, ao certo, quantas vidas humanas, ucranianas e russas, se perderam nesta guerra que parece estar longe do fim. Para lá da frieza dos números – que apenas nos darão um indicador do horror, da barbárie e da dimensão trágica do conflito – há as histórias dos sobreviventes. Como a desta mulher, que jamais conseguirá apagar do corpo as marcas de estilhaços da artilharia russa. Os sobreviventes, feridos ou não, viverão para sempre com a guerra dentro da cabeça.