Os 80 anos de Aniki-Bóbó. O filme singular e poético de Manoel de Oliveira

Estreou no Cinema Éden, em Lisboa, a 18 de dezembro de 1942, há exatamente 80 anos. Uma história simples com camadas complexas. Crianças que brincam na rua. O amor, o ciúme, a culpa, a amizade. A vida e a morte. Num Porto pobre e sofrido pela guerra, toldado pela ditadura. A primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira marca uma época. Mal recebido no início, cresceu com o tempo, voltou ao seu lugar. Continua a ser visto em salas de cinema pelos miúdos das escolas.

“Aniki-bébé. Aniki-bóbó. Passarinho. Totó. Berimbau. Cavaquinho. Salomão. Sacristão. Tu és polícia. Tu és ladrão. Eu não quero ser ladrão. Berimbau. Totó. Tenho medo da prisão. Aniki bébé. Aniki bóbó.” A lengalenga de Aniki Bóbó, do filme de Manoel de Oliveira, começou a ser cantarolada pelos miúdos do Porto nas brincadeiras pelas ruas, logo após a estreia a norte. Germano Silva, jornalista, escritor, historiador, cronista do JN, lembra-se bem oito décadas depois. Aos 91 anos, repete a cantilena com a cadência certa. Há coisas que não se esquecem.

Tinha 11 anos quando viu Aniki-Bóbó pela primeira vez numa das sessões do então São João Cine, agora Teatro Nacional São João, no Porto. Era janeiro de 1943, a estreia tinha sido dia 11. Primeiro, o deslumbre pelo bonito e imponente espaço do Porto, depois, de luzes apagadas, a sensação de pertença ao que via passar diante dos olhos. Aquela história também podia ser a sua. “Vi a vida traquina do dia a dia, revia-me naqueles miúdos, as mesmas brincadeiras, os polícias e os ladrões. Foi uma grande euforia, eu também podia fazer aquilo”, recorda.

Livro Aniki-Bóbó de Manuel de Oliveira
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

O pai tinha arranjado duas entradas. Guarda-freios dos elétricos, fazia a linha 9, Porto-Ermesinde, o último transporte da noite, um senhor que trabalhava no São João fazia regularmente a viagem, sempre com pouca gente. O pai tinha ouvido falar do filme, tentou a sorte, não conseguiria o senhor arranjar-lhe dois bilhetes, gostava de levar o seu rapaz ao cinema, seria um prémio pela conclusão da Instrução Primária. Conseguiu. Depois do filme, no regresso a casa, Germano lembra-se de um pequeno livro na mão do pai, não ligou muito, na altura. Era o programa da sessão no São João com a assinatura de Manoel de Oliveira, 36 páginas com ficha técnica, referências aos protagonistas, publicidade à mistura. Não se lembra de ter visto o cineasta na sala, era demasiado miúdo, talvez estivesse, talvez não. A vida encarregou-se de os juntar várias vezes, Germano e Oliveira, sobretudo em apresentações de livros. Nunca falaram sobre o filme, não calhou. Germano conserva esse programa do filme como uma bela recordação.

Livro Aniki-Bóbó de Manuel de Oliveira
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Hélder Pacheco, escritor, historiador, professor, cronista do JN, guarda Aniki-Bóbó como, nas suas palavras, “uma relíquia”. O filme, enquanto objeto físico. O filme enquanto obra documental e artística. “Revi-o várias vezes ao longo dos anos até que o comprei em DVD.” A primeira terá sido pouco tempo depois da estreia no São João, com o avô. “Na altura, ficámos impressionados pela proximidade que tínhamos com aqueles miúdos, parece que fazíamos parte da história”, conta. Brincava-se muito nas ruas, as ruas eram locais seguros, por onde andava com o seu pequeno automóvel de pedais, ali pela rua do Correio, agora rua do Conde de Vizela, onde tinha nascido. “Havia muito mais autonomia e havia o conceito de bairro que estava muito entranhado.” Aquelas ruas, aquela miudagem, aquelas brincadeiras, aqueles lugares e cenários. “Faziam parte do nosso imaginário.” Tudo tão perto e tão familiar. “Era um Porto encantador, mas era um Porto pobre”, sublinha.

Germano Silva viveu e conheceu esse Porto, vivia a dois passos do centro, junto à praça da Galiza. O pai, quando iam à Sé, à Baixa, ou à Ribeira, dizia que iam ao Porto, mesmo que só bastasse descer poucas ruas. “Era um Porto sujo e pobre, no tempo da guerra.” Era o que era e o filme não esconde a cidade, mostra-a a preto e branco, junto ao Douro. “O filme mostra uma parte da realidade do povo que trabalha, é um quadro real da vida daquela época, uma parte da cidade mais pobre, das ruas da Ribeira, as casas miseráveis, os telhados das casas antigas, aquela vivência das pessoas”, rebobina no tempo. “É uma história da vida real, foi uma ideia muito interessante do Manoel de Oliveira. As escolas eram separadas, não eram mistas, todos aqueles sentimentos eram próprios dos miúdos”, acrescenta Germano Silva. Muitos, os mais pobres, reviam-se ali. Germano lembra-se da ânsia de ver o filme. “Muita gente foi ver, havia quase excursões.”

A 18 de dezembro de 1942, Manoel de Oliveira, 34 anos feitos uma semana antes, estreava a sua primeira longa-metragem no Cinema Éden, em Lisboa. Aniki-Bóbó, uma hora e oito minutos, filmado com película Kodak, inspirado no conto “Os meninos milionários”, do escritor Rodrigues de Freitas, amigo do realizador. António Lopes Ribeiro como produtor, 750 contos de orçamento divulgado. Uma temporada de ensaios numa sala do São João com crianças atores não profissionais, três meses de filmagens, interiores gravados nos estúdios da Tóbis, em Lisboa.

(Foto: Arquivo)

Uma história de miúdos de rua num Porto estreito dos anos 1940. Carlitos é sensível, delicado, sonhador. Eduardito atrevido e destemido, salta para o Douro do alto de uma grua. Disputam o amor de Teresinha, a menina de caracóis e olhar doce. As brincadeiras na rua, a escola das orelhas de burro, um grupo de amigos, o roubo de uma boneca, um acidente. O amor, o ciúme, o bem e o mal, a culpa, a vida e a morte. Os desejos inocentes e os complexos mecanismos do amor. Como insistia o próprio realizador, Aniki-Bóbó não é filme sobre e para crianças, é uma obra sobre “adultos no estado ainda de criança”.

A crítica não gostou, achou-o subversivo, sentimentos de adultos em corpos de crianças, planos que esbarravam com as ideias da ditadura ao mostrar a pobreza, a miséria. Não havia artistas conhecidos, atores de renome, apenas Nascimento Fernandes, o lojista da “Loja das Tentações”, era profissional. “O Pátio das Cantigas” tinha estreado no início desse ano, em janeiro de 1942, com Vasco Santana, António Silva, Laura Alves, Francisco Ribeiro.

Nascimento Fernandes, o lojista da “Loja das Tentações”, o único ator profissional, deu a cara nos cartazes do filme gravado em película Kodak, com um orçamento de 750 contos. As crianças ensaiaram numa sala do São João no Porto, seguindo-se três meses de filmagens. Depois da estreia da obra, Manoel de Oliveira esteve 14 anos sem filmar com projetos censurados
(Foto: Arquivo)

Depois de Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira esteve 14 anos sem filmar com projetos recusados ou censurados. Doze anos depois da estreia, em 1954, numa declaração ao Cine-Clube do Porto, o cineasta partilhou os seus propósitos. “Intenções em Aniki-Bóbó? Sim, certamente. E até ambiciosas, talvez. Ao tentar contar uma história tão simples como esta, pretendeu-se espelhar nas crianças os problemas do homem, problemas ainda em estado embrionário; pôr em posição conceções do bem e do mal, o ódio e o amor, a amizade e a ingratidão. Pretendeu-se sugerir o medo da noite e do desconhecido, a atração pela vida que palpita em todas as coisas à nossa volta, contrastando com a monotonia do que é fechado, limitado por paredes, pela força ou pelas convenções”, contou. Hoje, 80 anos depois, o filme é exibido no auditório da Casa do Cinema de Manoel Oliveira, em Serralves, no Porto, às 17 horas.

Um quadro da época, um documento histórico

Manoel de Oliveira e Hélder Pacheco são padrinhos da Fnac de Santa Catarina, no Porto. Cruzaram-se várias vezes, Aniki-Bóbó nunca veio à conversa. O escritor portuense viu várias influências na primeira longa-metragem de Oliveira. “Foi muito beber ao realismo quer americano, quer italiano.” O Porto, a sua cidade, ali exposto a preto e branco sem destoar das cores negras daquele tempo de guerra, de miséria, em que se morria de fome. E, apesar de tudo, poético. “É um Porto simpático, mas, por baixo de um Porto pitoresco, há um Porto profundo, muito pobre. Era uma época de pobreza absoluta e o filme tem uma visão poética da realidade que nos faz esquecer isso. É um certo Porto humanizado e pitoresco”, refere.

E o encanto está aí. “Em tempo de angústias e renúncias, como diria um poeta catalão, manteve uma certa visão poética da realidade. É um filme de um período negro da História da Europa e do país, um tempo angustiante, e o que é notável é fazer um filme tão poético e tão popular, no sentido profundo da palavra.” Uma sensação de conforto em tempos opressivos, as dores da guerra, a ditadura. “É neste ambiente que o Manoel de Oliveira faz um filme tão poético e, no fundo, de gente feliz”, diz Hélder Pacheco.

(Foto: Sebastiano di Bari/EPA)

Para Joel Cleto, arqueólogo, historiador, professor, divulgador da História e do Património, Aniki-Bóbó é um documento histórico por várias razões, anuncia, de certa forma, o neorrealismo que se verá no cinema italiano no pós-guerra, é pioneiro também. “É uma obra artística que não deixa de ter a sua componente de documentário e de documento histórico, desse viver das zonas ribeirinhas. Os sonhos, o andar descalço pelas ruas, o mundo escolar com as orelhas de burro, os castigos.” Um documento histórico, um quadro da época, um filme marcante para a história do cinema português, uma história ternurenta de crianças que denuncia a pobreza da vida. “Um quadro muito interessante do que é o Porto naquele tempo. Manoel de Oliveira é um mestre a enganar-nos, no bom sentido, com muitas cenas gravadas do lado de Gaia para mostrar o Porto”, comenta.

Carlos Natálio, crítico de cinema, investigador, professor, coordenou um caderno pedagógico em torno do filme, no âmbito do Programa Europeu de Educação para o Cinema destinado a crianças e jovens, no qual disseca a obra que deixa marcas. Há portas que Manoel de Oliveira abre com Aniki-Bóbó, em seu entender. É a primeira longa-metragem do cineasta, um início e, só por si, um objeto de curiosidade. Um registo popular e, de certa forma, ligeiro. A evidente relação com a sua cidade, o Porto, e a porta que se abre para “um universo iminentemente misterioso e infantil”, o realismo que se mistura com a efabulação, as influências ao redor. “É como uma antena, no bom sentido, que vai captando as radiações das linguagens de referência da época.” Capta, sim, mas não copia.

Manoel Oliveira andou pela Sé, pela Ribeira, pela Baixa, à procura de miúdos para o seu filme. Crianças, não atores profissionais, daqueles lugares, dali, precisamente dali. Fernanda Matos, a Teresinha, a única menina da história, despertou-lhe a atenção. Joel Cleto conversou com ela no seu programa “Gente com História” do Porto Canal, exibido em dezembro de 2018. Fernanda, a Teresinha, conta como tudo aconteceu. A professora primária pediu-lhe para ler, cantar, recitar. Seguiu-se uma sessão fotográfica no Palácio de Cristal, Manoel de Oliveira sempre presente. Foi escolhida, o seu pai torceu o nariz, a mãe convenceu-o. Os ensaios começaram na primavera numa sala do São João. “Manoel de Oliveira era sempre uma pessoa bem-disposta, muito paciente, muito compreensivo”, recordou. Ainda houve uma tensão por causa do cabelo. O realizador levou-a ao salão de cabeleireiro, falou-lhe de tranças, Fernanda não gostava, falou-lhe de caracóis, podia ser, experimentou, nunca tinha usado o cabelo assim. No fim, respondeu com um “mais ou menos” quando Manoel de Oliveira lhe perguntou se tinha gostado. “E os caracóis lá ficaram todos, umas vezes mais penteados, outras vezes mais despenteados”, disse no programa. Fernanda tinha 11 anos e ficou sempre Teresinha, o seu único papel no cinema. Tornou-se enfermeira já depois de casar. Tem quatro filhos, sete netos, duas bisnetas.

Fernanda Matos, a Teresinha, para sempre a Teresinha, a única menina do grupo de rapazes. Aniki-Bóbó foi o seu único papel no cinema, acompanhou Manoel de Oliveira em várias homenagens, guarda boas recordações do mestre
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Joel Cleto não esquece essa conversa. “Contou que o filme não foi bem recebido, compreendido e aceite na altura.” No cinema, queriam-se ver grandes estrelas, atores e atrizes famosos do teatro, nomes que andavam na ponta da língua. Aniki-Bóbó saía fora desse formato.

“Não há propriamente uma imagem, uma ideia de Portugalidade, de dar uma visão glamorosa do país”, salienta Carlos Natálio. O universo também não ajudou. “O universo infantil não era algo muito apetecível.” O crítico e investigador de cinema fala em desencontro e em desalinhamento com a mecânica do cinema do Estado Novo. É um filme que demorou a voltar ao seu lugar, a encontrar o seu espaço. Cresceu com o tempo. “O bom cinema vai rejuvenescendo com o tempo e com Aniki-Bóbó isso acontece”, realça. Em certo sentido, é um início singular de Oliveira, como uma obra à parte do que tinha vindo a fazer e do que viria a fazer depois. E, como se sabe, o realizador teve uma segunda vida criativa. “Foi um cineasta que mesmo nas últimas obras nunca se notou as marcas do seu envelhecimento, quer intelectual, quer físico”, observa Carlos Natálio.

A efabulação, a parábola do amor infantil

Aniki-Bóbó não é um filme esquecido, circula por escolas portuguesas e de mais 13 países num projeto europeu que Teresa Garcia, realizadora, fundadora de Os Filhos de Lumière, associação vocacionada para a sensibilização ao cinema enquanto vocação artística, acompanha. E vê coisas maravilhosas a acontecer diante dos olhos. Crianças e jovens numa sala de cinema a sério que veem um filme a preto e branco, que de outra forma não veriam. As conversas e os debates sobre o que viram já com as luzes ligadas. O que viram e o que sentiram, questões e dúvidas. E, de repente, estão também a aprender cinema.

Aquela história não é assim tão estranha, embora o universo dos miúdos de rua seja longínquo, há a amizade e o amor, o ciúme e a culpa, as brincadeiras e o crescimento. “Manoel de Oliveira constrói uma história extremamente poética”, diz Teresa Garcia. Uma história que conta sentimentos profundos, que toca em assuntos que ontem, hoje e amanhã despertam curiosidade. “É um filme que toca imenso as crianças e os jovens.” Tem temas que lhes dizem respeito. Esse trabalho feito com as escolas inclui formação para professores, com bastante material pedagógico à disposição, e os alunos em salas de cinema, não na escola, não em casa, não no sofá. O filme vai até onde haja gente e professores interessados.

Para Teresa Garcia, é um filme para toda e qualquer idade. “O Aniki-Bóbó é um filme que marcou um tempo e mostra como Manoel de Oliveira, que já tinha feito algumas curtas-metragens, era um verdadeiro realizador.” Trocou algumas palavras com o realizador sobre a obra que já era um filme um pouco distante. “Ele tinha uma ternura por este filme”, lembra. Filme que não foi muito bem recebido. “Vivia-se o tempo do fascismo e o fascismo não gostava muito quando se mostrava a pobreza e a escola com as orelhas de burro.”

Manoel de Oliveira filma o seu Porto, mostra a sua cidade nos anos 1940, de ruas estreitas com o brilho do Douro. É evidente a relação do realizador com o lugar e com a vida na zona ribeirinha
(Foto: Arquivo)

Com este filme, Manoel de Oliveira dizia-se anterior ao neorrealismo e crê, de alguma maneira, que inicia essa corrente no cinema. Para Carlos Natálio, “há um apelo neorrealista, ao intuir as condições de vida das pessoas.” “A construção cinematográfica não é documental”, aponta. Por exemplo, quase não há barcos no Douro, apesar da neutralidade de Portugal na II Guerra Mundial, os submarinos alemães impediam a normal movimentação de embarcações no cais do Porto. Carlos Natálio relembra-o no caderno pedagógico. “Essa circunstância é bem visível em muitos planos apontados ao Douro, onde se vê um rio deserto, sem barcos. Oliveira conta como, durante a filmagem, se esforçou por aproveitar os poucos que por lá passavam.” A efabulação, o mistério, a imaterialidade. O filme tem muita coisa. Para Carlos Natálio, é “uma parábola da culpa, do amor infantil, do crescimento”.

Manoel de Oliveira, na declaração ao Cine-Clube do Porto em 1954, descasca camadas, desmancha entrelinhas. “Se se entrevê ou se sente, no decorrer do filme, qualquer aspeto do caráter social ou económico, o certo é que isso nunca foi ponto fundamental da estrutura ou construção. Como já não o era em ‘Douro, faina fluvial’.” Também aqui, nessa curta-metragem muda de 1931, o seu Porto, o povo, a faina no Douro. E acrescenta o realizador. “Quando muito em Aniki-Bóbó, intencionalmente, mas muito ao de leve, pretendi sugerir uma mensagem de amor e compreensão ao semelhante, como advertência a uma sociedade que luta e se desespera em injustiças.” Uma mensagem poderosa em tempos de ditadura, em vidas vergadas pela guerra.