Mr. Ryanair: a estratégia, as polémicas e a conquista de Portugal

Construiu a fórmula de sucesso da maior low-cost europeia, rasgou as nuvens portuguesas até fazer da empresa irlandesa a companhia “número um” no nosso país e pelo caminho virou o maior inimigo público da TAP. Michael O’Leary, implacável e habilidoso, é uma figura que gravita à volta da controvérsia. Um maestro dos media que sabe ter um objetivo: superar a concorrência. E que não vê limites para os altos voos.

“Não quero saber se ninguém gosta de mim”, disse Michael O’Leary uma vez a um jornalista. A tradução – no original “I don’t give a shit if nobody likes me” – até pode ser aligeirada, mas veste na perfeição um homem, dono e senhor de um fenómeno de sucesso chamado Ryanair, que raramente está fora das manchetes à conta de declarações tão polémicas quanto a figura de um autêntico maestro dos media. O’Leary arrecada tanto de fascínios como de ódios. E é um gigante incontornável no mundo dos negócios, a conquistar também os céus portugueses. Não é preciso recuar muitos dias para o ouvir anunciar que a Ryanair se tornou na companhia “número um” em Portugal, ao registar mais de 13 milhões de passageiros e um recorde de tráfego pós-covid. A companhia irlandesa tem vindo a ganhar cada vez mais terreno num país com uma TAP a tentar manter-se à tona, e tem sabido aproveitar.

Mas o caminho até aqui não se conta em meia dúzia de linhas. Viajemos até Mullingar, na Irlanda. Foi aí que o atual CEO do grupo Ryanair, um de seis filhos, cresceu, numa quinta, no meio de uma família agrícola rica. Aliás é nessa pacatez e discrição que ainda hoje vive uma vida aparentemente modesta com a mulher e os quatro filhos (quer que os filhos saibam de onde vêm), opção de um homem de negócios que muitos dizem humilde, bem mais implacável e excêntrico na forma de gerir uma companhia aérea do que em tudo o resto – é adepto do Manchester City, fã de cavalos, criador de gado.

Estudou numa das melhores escolas particulares da Irlanda. E talvez já tivesse “negócio” escrito nos genes na hora de escolher um destino: seguiu Negócios e Economia no Trinity College, universidade em Dublin. Foi a trabalhar como consultor fiscal na KPMG que se familiarizou com Tony Ryan, fundador da Ryanair e cliente da empresa, a quem dava conselhos fiscais. E o forte impacto que deixa em todos com quem se cruza não é alheio ao facto de ter sido contratado por Ryan, no final da década de 1980. Poucos anos depois já era vice-presidente executivo da Ryanair.

A história de O’Leary, eloquente e habilidoso, que se confunde com a da low-cost irlandesa, começava a escrever-se aí. Do desastre de uma empresa deficitária, a perder constantemente dinheiro, construiu uma das mais valiosas companhias aéreas do Mundo e pelo caminho revolucionou a própria natureza da aviação comercial. Em 1985, a Ryanair empregava 51 pessoas e transportava 5 mil passageiros entre a Inglaterra e a Irlanda. Hoje, e se esquecermos a pandemia, transporta 149 milhões. Tem mais de 15 mil profissionais, faz mais de dois mil voos diários, opera em 37 países, conta 86 bases pela Europa (só em Portugal tem cinco). E o irlandês, de sangue quente, tem o nome cravado neste crescimento.

Tudo porque arregaçou as mangas, foi para os Estados Unidos estudar o modelo da Southwest Airlines, a maior companhia de baixo custo norte-americana, e voltou para a Irlanda para agitar os céus. Uma só premissa: os bilhetes mais baratos do mercado e cobrar todos os serviços extra, da bagagem à venda de comida a bordo, além de criar parcerias com empresas de aluguer de carros ou sites de reserva de hotéis. Uma fórmula vencedora que o levou a tornar-se CEO da companhia no início dos anos 1990.

Irónico é que o homem (hoje com 61 anos e uma fortuna estimada em mais de mil milhões de euros) que vive enérgico e odeia tirar férias, porque vê nelas uma perda de tempo, seja afinal o timoneiro do êxito esmagador de uma companhia aérea. Uma ironia reconhecida numa entrevista em 2010: “Sim, mas se estivesse sempre a tirar férias, talvez a Ryanair não fosse tão bem-sucedida como é”.

Michael O’Leary tem feito duras críticas sobre a ajuda estatal à TAP
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

E as polémicas atrás de polémicas não parecem abalar o CEO nem a empresa. Veja-se a famosa história do táxi que Michael O’Leary usava para viajar entre Mullingar e Dublin, onde fica a sede da Ryanair. É um homem com pressa e a impaciência é tal que pagou quase 5 mil euros por uma licença de táxi para o seu carro particular – um Mercedes – poder escapar ao trânsito. Perante o abuso da brecha na lei, a figura de camisa e jeans, que é tanto imagem de marca quanto a sua personalidade irascível, não se desculpou, como já é apanágio: “A última vez que verifiquei, a Irlanda era uma república democrática. Enquanto pagar os meus impostos, sou livre de fazer com o meu dinheiro o que quiser”.

Chegar e vencer em terras lusas

Portugal entra na equação em 2003, quando a Ryanair se estreou a sobrevoar os céus nacionais, com cerca de 15 mil passageiros transportados. Seis anos depois, em 2009, abria as bases do Porto e de Faro. Ainda demorou a chegar a Lisboa, só em abril de 2014 é que os aviões da companhia começaram a descolar e a aterrar a partir do aeroporto Humberto Delgado. E a demora foi graças às queixas de Michael O’Leary sobre os altos preços praticados pela ANA Aeroportos – as mesmas que já havia feito antes de se instalar no Porto, com pedidos de descontos nas taxas por passageiro em troca de uma série de contrapartidas (nomeadamente atrair milhões de turistas à Invicta e criar emprego), que nunca se chegou a confirmar se foram concedidas e que desde então têm merecido críticas de favorecimento. À “Notícias Magazine”, a gestora aeroportuária não respondeu.

Certo é que a empresa irlandesa continuou a desbravar caminho no país e a fazer-se ameaça a outras companhias. Seguiu-se os Açores, com Ponta Delgada, e só faltava um grande aeroporto, que já não falta: desde março que a maior low-cost europeia serve o Funchal, na Madeira, com dois aviões baseados no aeroporto Cristiano Ronaldo. Nos dados do último trimestre de 2021 da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), em termos de passageiros, a Ryanair estava à frente da TAP no Porto (onde tem uma quota de mercado de 37%) e em Faro (com uma quota de 32%). O’Leary há muito que prometia que a Ryanair haveria de se tornar na principal companhia aérea no país – “Seremos maiores do que a TAP com zero ajudas estatais”, dizia em 2021 – e viria a confirmar agora, com o anúncio de que é já a “número um”, a reboque de uma recuperação surpreendente no pós-covid. Desde que começou a operar em Portugal e até à data, segundo dados cedidos pela Ryanair, transportou mais de 79 milhões de passageiros. E continua a anunciar novas rotas.

O Porto, onde conseguiu conquistar mais terreno em relação à concorrência e onde a TAP tem desinvestido sob um manto de críticas, tem dedo nisso. Para o presidente do Turismo do Porto e Norte, Luís Pedro Martins, “a Ryanair tem sido absolutamente estratégica para o crescimento do turismo do Porto e Norte nos últimos anos”. “Nomeadamente pela ligação que faz a alguns dos nossos mercados principais, de proximidade, do continente europeu, mas essencialmente pelo volume de passageiros que consegue trazer para o aeroporto Francisco Sá Carneiro.”

O presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque, sublinhou o “dia muito importante para a Madeira”, após assistir à chegada ao aeroporto Cristiano Ronaldo do voo inaugural da Ryanair, em março. A entrada da companhia irlandesa na Madeira significa não só “a oferta de 22% dos lugares” nas viagens aéreas para a região, como “é uma ajuda muito importante para abarcar novos mercados”
(Foto: Homem de Gouveia/Lusa)

E embora faça questão de reconhecer a importância da TAP em ligações a mercados como os Estados Unidos, Brasil ou Canadá, Luís Pedro Martins aponta que “as companhias estrangeiras têm encontrado no aeroporto Sá Carneiro razões para investirem e encontram mercado e oportunidades”. A maior prova de rentabilidade, diz, é o forte investimento de companhias como a EasyJet, a Transavia, a British Airways ou a Lufthansa, além da Ryanair. E “claro que isto é crucial” para a região Norte se aproximar dos números de 2019, era pré-covid, a nível da ocupação.

Uma guerra com a TAP

Há uns bons anos, Michael O’Leary comentava que “enquanto Portugal oferecer condições para voos baratos, a Ryanair crescerá com Portugal”. E a verdade é que desde que chegou, a companhia irlandesa tem tido honras governamentais, atreladas obviamente à dimensão e ao peso que tem, o que também diz muito do salto da low-cost por cá. Não precisamos de ir muito atrás, em 2020, o Governo dos Açores promoveu contratos de dois milhões de euros com a Ryanair, para a promoção da região no Reino Unido e na Alemanha. Mas nem por isso O’Leary se inibe de comprar guerras e pressionar Governo, concorrentes, autoridades aeroportuárias, sindicatos, funcionários.

A guerra com a TAP, inimiga-mor no país, que tanta polémica tem rendido, é só um exemplo. A ajuda estatal de milhões à companhia aérea nacional motivou a ira de O’Leary, que há muito vaticinava a falência da TAP. O irlandês não só diz que “é dinheiro mandado pela sanita abaixo”, como garante que a Ryanair “traz mais benefícios à economia portuguesa do que a TAP”. Chegou a usar um “nariz de Pinóquio” numa fotografia do ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos; a oferecer viagens à CEO da TAP durante um ano se a gestora francesa conseguir explicar como é que tarifas altas e ajudas públicas de três mil milhões são melhores para Portugal; e à boleia da luta pelos 18 slots que a TAP tem de ceder no aeroporto de Lisboa, em troca da ajuda estatal, tem feito duras críticas e ultimatos ao Governo.

Se a Ryanair ficar com os slots, batendo a única concorrente EasyJet, promete O’Leary, poderá transportar mais 1,3 a 1,5 milhões de passageiros por ano, totalizando 6,5 milhões de passageiros anuais na capital. “O que nos tem empatado crescer mais em Lisboa nos últimos anos tem sido a falta de slots e a tentativa falhada de reabrir o aeroporto do Montijo”, afirmou em entrevista ao “ECO” em maio, altura em que também disse acreditar que a TAP será vendida à Iberia. “O Governo português quer resgatar a TAP e empacotá-la para a dar a alguém.” Pedro Nuno Santos já havia dito que há três companhias interessadas em comprar a TAP – e que o Governo considera que a empresa nacional deve integrar-se num grupo de aviação -, mas sem as revelar.

O palco mediático em acesas controvérsias

Há uma certeza inequívoca, o homem forte da Ryanair soma controvérsias que, apesar da chuva de críticas, têm um só resultado: cobertura mediática com a qual acaba por lucrar. E a lista é interminável. Uma das mais conhecidas foi quando a low-cost foi processada e obrigada a pagar uma multa de 60 mil euros por ter usado a imagem do então presidente francês Nicolas Sarkozy e Carla Bruni numa campanha de publicidade. Mas há mais. Desde o total desprezo, no ido ano de 2005, que O’Leary dava ao impacto da aviação nas alterações climáticas até descrever a Comissão Europeia como “idiotas”; também já disse que os homens muçulmanos deviam ser controlados com mais cautela nos aeroportos; gozou com passageiros obesos e até afirmou que no caso de virem a existir voos intercontinentais na Ryanair (chegou a querer vender voos entre os EUA e a Europa por 10 euros), os tripulantes de cabine ofereceriam “serviços extras”.

A relação difícil com o pessoal e com sindicatos revê-se ainda no mais recente comentário no Twitter, em que comparou os tripulantes da Ryanair a vendedores de Pringles. “Já estamos habituados ao contínuo desrespeito do CEO da Ryanair”, comenta Ricardo Penarroias, presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), que não poupa nas críticas. “É um disparate constante, é a imagem de marca dele. Aproveita-se do mito urbano que existe em Portugal de que a Ryanair é essencial ao país. Costumo dizer que o país é que é essencial à Ryanair. E além da sua postura arrogante, o CEO da Ryanair tem uma conivência inexplicável de instituições governamentais. Fala-se muito da ajuda do Estado à salvação da TAP, mas ninguém questiona quanto é que a Ryanair recebeu para instalar a base no Porto ou quanto é que recebe da Associação do Turismo do Algarve.” Associação essa que preferiu não reagir ao comentário.

O sindicato tem ganho todas as ações em tribunal frente à low-cost irlandesa. Ainda há pouco tempo, segundo Penarroias, a Justiça considerou ilegal o despedimento coletivo de 19 tripulantes da base do Porto e de seis da base de Lisboa, obrigando a Ryanair a readmiti-los. “E têm estado sujeitos a uma pressão tremenda, marcada por uma autêntica perseguição, sem horários fixos, sem qualquer previsibilidade e sem promoções de carreira. Já nada me espanta, até porque a Ryanair está desde 2009 em Portugal e só desde há pouco é que respeita a lei portuguesa, e mesmo assim não na totalidade. As condições de trabalho dos tripulantes de cabine hoje estão a ser balizadas por baixo por causa da Ryanair.”

Os braços de ferro com tripulantes e pilotos

Só em 2020, na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia que definiu que a low-cost irlandesa deve cumprir as leis laborais de cada país, é que os contratos dos tripulantes portugueses começaram a obedecer à legislação nacional. Antes, o que vigorava era a legislação irlandesa, o que significava, por exemplo, que não recebiam os subsídios de férias e de Natal. E o retrato fiel é o facto de a companhia aérea ter sido condenada, há semanas, a pagar quatro milhões de euros de Segurança Social em Itália, numa decisão que estipula que tem de cumprir a lei italiana.

Por cá, foi no início da pandemia que o Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes de Portugal (STTAMP) – as relações do SNPVAC com a Ryanair deixaram de existir – negociou um acordo de emergência que foi ao encontro das quebras e da transição para a lei nacional, e que resultou em perdas de rendimento para os trabalhadores. O valor anual que recebiam em vez de ser dividido por 12 meses passou a ser dividido por 14 meses, para incluir os subsídios de férias e de Natal. Também sentiram o vencimento mensal cair devido à Segurança Social e IRS, cujas percentagens de descontos são mais altas no nosso país. Além dos cortes salariais na ordem dos 20% uma vez que os aviões estavam no chão.

A ameaça de greve de tripulantes e pilotos a nível europeu – que estão em negociações por melhores condições laborais – poderá provocar o cancelamento de centenas de voos no verão. Ainda assim, e apesar das muitas polémicas, O’Leary, CEO da Ryanair há quase 30 anos, é dono de uma fórmula de sucesso e tem crescido a olhos vistos em Portugal, onde todos reconhecem que a companhia low-cost irlandesa é “estratégica”
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Do acordo de emergência para um acordo coletivo de trabalho já publicado, as previsões com a recuperação agora são boas. Pelo menos é o que diz Vítor Teixeira, porta-voz do STTAMP, que hoje representa 280 tripulantes Ryanair e que se sentou à mesa com a companhia irlandesa. “Coube-nos a nós, agora numa nova negociação, tentar repor o mais possível os cortes provocados pela pandemia. Estava previsto que se começasse a repor em 2023, mas com a recuperação do tráfego conseguiu-se antecipar um ano. Os salários vão começar a ser repostos já este ano e até 2023. Depois, há aumentos previstos em 2024 e em 2025.”

Ainda assim, há uma ameaça de greve europeia dos tripulantes a pairar, que exigem melhores condições laborais, à semelhança do que está a acontecer com os pilotos. O Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) não respondeu em tempo útil à “Notícias Magazine” sobre as negociações que estão a decorrer. Já em 2018, quando o SPAC apelou à substituição de O’Leary e denunciou “ações intimidantes”, numa “relação totalmente disfuncional” com a gestão da companhia, pilotos e tripulantes da Ryanair protagonizaram uma série de greves durante o verão que resultaram no cancelamento de centenas de voos. Um cenário que poderá repetir-se neste ano.

O’Leary, impiedoso no corte de custos e regalias, de humor sarcástico, gravita em torno de acusações e polémicas, que aproveita para uma máquina de marketing agressiva que vive da sua imagem e que, até então, não lhe tem custado passageiros. Apesar de tudo e de tanto, ninguém nega que a Ryanair é estratégica, que ajudou o país a crescer para fora, a dinamizar o turismo, a criar emprego, numa ambição desmedida de quem quer continuar a levantar voo em Portugal. E neste lado do Atlântico foi a low-cost irlandesa que tornou possível ampliar os horizontes de milhões, permitindo a pessoas de classes mais baixas viajar.

A receita do sucesso é de Michael O’Leary (justiça lhe seja feita) e continua a render. “Se sou frio e implacável? Em termos de negócios, sim, sou. Estou aqui para administrar uma empresa. Para ganhar dinheiro e para superar a concorrência.”