Guiné-Bissau: um país ainda à espera do futuro

É nas ilhas que está o futuro radioso da Guiné-Bissau, mas o futuro demora a vir. Portugal está a ajudar e vai ter que continuar. Este é o país de dois milhões de habitantes que continua a ser lanhado pelos golpes de Estado e essa é a imagem que a nação africana está apostada em mudar.

A guerra está na cabeça de toda a gente e também na cabeça dela. Mas a guerra de Aua Sanha, 45 anos, mãe de quatro filhos, é diferente, ela equilibra-a numa canastra, a cesta é larga e baixa, entretecida de verga e gasta, e é nela que balanceia limões, legumes, malaguetas e cebolas que irá tentar vender em Cabacera, o mercado de rua que serve o seu pobre Bairro de Plulobá. Fez ontem exatos 40 dias que o marido lhe morreu e ela, que é muçulmana como a maioria da população guineense, está a cumprir o estrito luto branco sagrado sem trabalhar: reza a Cora com quatro mulheres mais velhas, elas vão lá a casa os sete dias, ela toma banho, purifica-se, lavam a roupa, tornam a rezar. No dia a seguir, fazem o murmúrio repetir.

Mora em Plulobá, bairro habitacional de Bissau, grande metrópole do país que congrega meio milhão de pessoas, 1/4 da população total do país, e move-se entre casinhas gémeas como a sua. Parecem todas uma colmeia horizontal puída de uma só cor carecente, são casinhas feitas de água e lama, despojadas, sem vidros nas janelas, sem portas interiores, cobertas com uma chapa de zinco quente. A cozinha é na rua, é coletiva, social, são todas assim, os tachos ardem em carvão no chão e as ruas são de pó, incertas e escalavradas, abundam restos de comidas, espinhas, peles de fruta, plásticos e lixos domésticos que ficam ali eternos a revoar. Correm na rua as crianças, passa a fuçar um porquinho preto pestanudo, muito bocudo, galinhas descoradas e magras a ziguezaguear, corvos grandes muito pretos gralham das árvores graúdos, das mangueiras verdes, das ceibas de raízes seculares, sem parar.

Aua Sanha (à direita) na sua casa, no bairro Plulobá. Perdeu o marido, Amadu Djaló, no golpe de Estado de 1 de fevereiro

É de tarde, estão 31 graus e Aua está sentada, toda de branco, encostada e acalorada à parede num colchão no chão. Estão ali outras pessoas, dois dos seus quatros filhos (um está em Portugal, outro está na escola em Bissau, voltará à hora do jantar), duas primas, outras vizinhas, são muitas mulheres, todas muito silentes, mais a irmã do seu marido falecido. Tem rendimentos, Aua? Não tem. Tem perspetivas? Não tem. Como vai fazer? “Tem que desenrascar”, diz a mulher em kriol (crioulo), a sua língua franca cujo léxico deriva do português e que é falada, muito rápida, contraída, gutural, pela maioria da população da ex-colónia portuguesa do Ultramar. O seu ponto de vista é só um: subsistir – e ela sobrevive com menos de um dólar de rendimento por dia, como 1/3 da população que está, na sua imensa maioria, desempregada, desenrascada em trabalho informal. Era o marido, há 16 anos motorista governamental, quem trazia rendimentos, sossego e comida. Mas agora o marido morreu.

Morto num golpe que falhou

Era Amadu Djaló, tinha 50 anos, e foi metralhado. Ficou cravejado de balas na barriga a tentar defender-se e ao país. Esvaiu-se em sangue enquanto era levado, desvalido, aflito e a sangrar, do Hospital Militar para o Hospital Nacional Simão Mendes. Quando ali chegou, já tinha morrido.

Foi na tarde tórrida de 1 de fevereiro, o dia da última tentativa de golpe de Estado que sobressaltou a Guiné-Bissau antes de falhar. O golpe, que deixou oito mortos entre militares e civis e um só insurgente, caiu após cinco horas de rebelião e cerco restrito, entre a hora do almoço e até antes da hora do jantar, cinco horas seguidas, ao Palácio do Governo, enquanto decorria o Conselho de Ministros liderado pelo presidente, Umaro Sissoco Embaló. O gabinete todo, incluindo o primeiro-ministro, Nuno Gomes, ministros da Justiça, da Defesa, do Interior, mais dignitários e funcionários, fugiu todo pelas traseiras do edifício, saltaram um muro, correram pela vida por um descampado. O presidente ficou, preferiu ocultar-se, usou a tática da dissimulação, escondeu-se debaixo de uma secretária numa sala logo ao lado do plenário governamental, um esconderijo à vista de todos, deixou a porta propositadamente aberta enquanto se ouviam tiros e entravam dois ou três obuses que pariram vidros e buracos irreais. A golpada, que será a vigésima desde que o instável país se tornou independente de Portugal, em setembro de 1974, é atribuída a um naipe de narcotraficantes, mais militares e paramilitares, outros polícias e ainda insurgentes das montanhas de Casamansa que operam no fronteiriço Senegal. Os alegados cabecilhas, que são reincidentes e já estão presos, disse o presidente, repetiu o Governo, são figurões da droga, e já foram revelados: Bubo Na Tchuto, ex-chefe da Marinha, Papis Djemé, segundo-tenente, e Tchamy Yala, ex-oficial da Armada. Presos preventivamente num quartel de Bissau, aguardam investigação, que corre pela Procuradoria-Geral da República, e também pelo Exército, e subsequente julgamento, mas tudo isso ainda está para demorar.

Agora Amadu Djaló, o mártir esvaído, repousa no cemitério de Antula e a sua mulher, Aua, acaba de vir de lá, não teve flores para lhe deixar. “Não tem rendimento”, repete ela a apontar os cinco sacos de arroz e três caixas de óleo que recebeu do Governo como compensação, mais uma soma não revelada de dinheiro que é para as despesas lutuosas e não chegará para comer.

Mercado de peixe em Bissau, capital da Guiné

Por estes dias, Aua estará a sofrer de adinamia, a falta de energia que só lhe dá cansaços e fraqueza, uma fadiga enjoativa, uma prostração mental que parece que nunca há de passar. O seu corpo é contraditório: tem dificuldade em adormecer e, no entanto, acorda muito cedo – e antes de o sol nascer já está a caminho do mercado onde tentará sobreviver.

Um Estado muito frágil

A Guiné-Bissau, país republicano da África Ocidental que tem a dívida pública “mais alta do Mundo” (FMI), é um dos mais pobres e mais vulneráveis do Globo. A nação de dois milhões de habitantes ocupa o 16.º lugar no Índice de Estados Frágeis (Fundo para a Paz, 2018) e é o 177.º no Índice de Desenvolvimento Humano, o que o posiciona na categoria de baixo desenvolvimento humano (PNUD, 2018), ocupando posições insignificantes em todos os indicadores de prosperidade e globalização: 52.ª economia do continente africano e 174.ª do Mundo; 180.º exportador de bens e 192.º importador e 188.º país recetor e 165.º emissor de investimento estrangeiro em termos de stock total, em 2020.

A economia guineense mantém-se frágil e fortemente dependente da agricultura de subsistência, da exportação de caju, que representa 1/3 do Produto Interno Bruto (PIB) do país, e da permanente ajuda externa. É dos mais desnutridos do Mundo, com 69% de guineenses a viver com um dólar por dia (88 cêntimos), segundo a ONU. Mas é a instabilidade política que mais atrasa o país: de golpe em golpe, como um triste desporto nacional, desde os anos 1990 já teve sete presidentes eleitos, e outros tantos interinos, mas só um conseguiu cumprir o mandato de cinco anos até ao fim, foi José Mário Vaz (2014-2019), o antecessor de Umaro Sissoco Embaló. Nem Nino Vieira, duas vezes presidente, o primeiro eleito em democracia (1994), logrou concluir um mandato inteiro: da primeira vez porque estalou a guerra civil (1998); da segunda foi reeleito em 2005 mas morreu assassinado em 2009.

Os ovos de ouro por explorar

Irmão de José Mário Vaz, Fernando Vaz, 66 anos, é das figuras mais notáveis do Governo, de que é porta-voz, cargo que acumula com o Ministério do Turismo, e faz parte da vistosa elite nacional. Ela aponta o óbvio: o turismo é a maior indústria mundial e a Guiné-Bissau tem 88 ilhas no arquipélago dos Bijagós, muitas delas muito belas e crepusculares, areias virgens, uma maioria ainda por explorar – só 22 são hoje plenamente habitadas. Tem zonas, sobretudo a sul, onde há elefantes, crocodilos e chimpanzés, uma frondosa fauna, uma incrível diversidade de espécies, tantos pássaros, colibris, corvos, garças-reais, rios amenos, um mar Atlântico de tranquilidade transcendental, muitos mariscos, além de zonas montanhosas frondejantes, mais para o norte, com grutas que permanecem por explorar.

Arquipélago dos Bijagós possui 88 ilhas, 22 das quais habitadas, que são o futuro da Guiné-Bissau

“Não fazia sentido, perante um potencial que se diria indescritível de tão paradisíaco, que a Guiné-Bissau não apostasse no turismo”, diz o ministro, vivamente. “Infelizmente, digo-o com certa pena, não aconteceu ainda.” E aqui aponta o dedo a Portugal, num exemplo que gosta de repetir: “Depois de 500 anos de colonização [Portugal chegou à Guiné no século XVI], não tivemos a sorte de herdar um país com boas infraestruturas. Nesse tempo todo, imagine, Portugal construiu pouco mais de 200 quilómetros de estrada em alcatrão. Mas nós, em apenas 40 anos de independência, já lançámos mais de 700 quilómetros, está a ver?”.

É preciso infraestruturar porque para fazer turismo são necessárias infraestruturas. “Isso faz parte do nosso programa, temos planos para lançar um aeroporto nas ilhas e começar a receber aviões internacionais que irão mudar a face do país.” Não está a falar de turismo de massas, Fernando Vaz: “Queremos fazer como Cabo Verde, vamos optar pelo ecoturismo, como já se faz na Ilha de Rubane ou na Ilha de Keré, um turismo responsável e sustentado, com políticas de plástico zero, com empregos para a população local. Temos coisas únicas, como os únicos hipopótamos no Mundo que vivem plenamente entre águas salgadas e águas doces. Cabo Verde, que faz parte da nossa sub-região, já passou há muito a fase das infraestruturas básicas. Hoje, o turismo contribui em Cabo Verde com 25% de receitas para o PIB. E a Guiné-Bissau, com todo este potencial, poderá contribuir com muito mais”, prevê o ministro de olhos muito vivos, a radiar.

Fernando Vaz recebeu estes dias uma boa notícia: Portugal vai oferecer ao seu país um navio que fará a ligação fluvial entre a capital Bissau e as ilhas Bijagós – as ligações que existem hoje, por lanchas caras e botes de saídas incertas, não servem a maioria da população. É o navio Eborense, que fazia as ligações Lisboa-Barreiro e está agora a ser restaurado, numa oferta de 1,5 milhões de euros para servir a Guiné. Deverá estar operacional no final de 2023.

Uma luta para limpar a imagem internacional

O país do futuro vai apostar estes dias na Feira do Turismo de Lisboa, a BTL, que decorre de 16 a 20 de março no Parque das Nações. “Vamos lá montar uma ilha e mostrar as maravilhas do país”, revelou esta semana o entusiástico Ben Cunha, diretor-geral da Promoção do Investimento Turístico e Hoteleiro da Guiné-Bissau.

Nas aldeias da Guiné, os animais domésticos circulam pelas casas e as comidas são cozinhadas no chão

“O objetivo é atrair investimentos, vamos tentar mostrar as vantagens de apostar na Guiné-Bissau, incentivos fiscais e muito mais”, disse Ben Cunha. E sacou de um exemplo daquilo que está a mudar: “A CNN dos Estados Unidos considera que o arquipélago dos Bijagós é um dos destinos de topo a visitar este ano. Sabemos que a Guiné-Bissau tem uma má imagem internacional, de muita instabilidade política, e a nossa luta é limpar essa imagem, porque não corresponde inteiramente à verdade”. E acrescentou: “A Guiné-Bissau é um país bastante seguro, as pessoas podem andar à vontade sem risco de serem assaltadas ou incomodadas, o próprio povo é afável, muito hospitaleiro, o país tem muitas maravilhas”.

O consolo de Graciete

O futuro é florescente, só que ainda está por chegar. Agora estamos na casa da viúva Graciete Duarte, 59 anos, num bairro bom de Bissau, com casinhas de cimento, alpendres e jardinzinhos enflorados de roseiras e catos carnudos. Graciete é diretora do serviço de enfermagem do Hospital Simão Mendes e foi atravessada pela tragédia: a tentativa de golpe de Estado de 1 de fevereiro levou-lhe o filho mais novo, Decker Filipe Imbaná, 29 anos, motorista e segurança do presidente Embaló. “Era o meu carinho, era muito meigo, muito educado, era o meu bebé”, diz a mãe que está embutida por não ter conseguido despedir-se do corpo do filho finado, atingido em cheio pelo relâmpago de uma bazuca, morto em carne viva na estrada do golpe insurgente. “Nunca vi o corpo, não tive despedida, só pude tocar no seu caixão”, soluça a mãe que tem os outros três filhos imigrados em Portugal e fala em perfeito português.

A casa estava cheia de gente naquele fim de tarde, gente que circulava ali como se flutuasse, a mover-se entre a penumbra e a radiação do calor, são amigos, família que veio de longe, vizinhos solidários que andam pela sacada da casa e ali ficam, dormem em esteiras ao relento quente, solidários, irmanados na sua dor.

Na Guiné-Bissau falta quase tudo, desde instalações e materiais escolar, equipamentos médicos nos hospitais para tratamento dos doentes e conforto familiar. As mulheres garantem o sustento familiar e assumem as tarefas do agregado

Depois do seu filho Decker ter sido enterrado, o presidente Sissoco Embaló foi visitar Graciete a casa dela. Levou uma pequena comitiva, levou dinheiro, consolo e comida, disse-lhe “tem esperança, Graciete, tem coragem, nós vamos descobrir quem fez isto”. Mas Graciete emudece e depois fala muito baixinho: “Mas como vou eu ter coragem se me mataram o meu filho?”.

Cheia de melancolia, Graciete já retomou as suas rotinas no hospital, onde entra às sete da manhã e de onde só sai depois do sol se pôr. Ela conversa agora com Isidoro Nunes Pereira, o médico que é o diretor hospitalar dos serviços para a covid. Ele baixa uma radiografia que estava a espiolhar – “É uma broncopneumonia, não é bom”. Mas os dois partilham as boas notícias, a Guiné-Bissau continua a saber superar a pandemia do coronavírus: em dois anos, desde 2020 para cá, morreram apenas 166 pessoas da doença respiratória aguda que fechou o Mundo todo. E apesar de a vacinação estar a avançar com lentidão – até ao final de fevereiro, 514 mil guineenses tinham tomado a 1.ª dose, 337 mil a 2.ª; ainda não houve doses de reforço; e nos menores de 18 anos ainda ninguém foi vacinado -, o país é um oásis no grande deserto pandémico. Explicações? O clima quente e seco, a população muito jovem (18,8 anos é hoje a média de idades nacional da Guiné-Bissau) e resistente derivado de atravessar há décadas todos os germes possíveis e imaginados.

Hospital Simão Mendes, em Bissau, onde trabalha a enfermeira-chefe Graciete Duarte

Fruto inesperado da crise sanitária do coronavírus, hoje o hospital central de Bissau está mais bem equipado do que nunca, com reforço de equipamentos e capacitação de técnicos. “Portugal deu, e continua a dar, uma boa ajuda”, diz o médico Nunes Pereira, que circula com uma máscara cirúrgica como toda a gente ali, ao contrário das ruas de Bissau, onde as máscaras são uma raridade social. “Mas ainda precisamos de muita coisa, mais ventiladores, oxigénio, equipamentos de proteção, vacinas, vacinas, material tomográfico, máquinas de radiografia móvel, ecógrafos, medicamentos, medicamentos, medicamentos para debelar todas as nossas outras doenças, muito mais graves do que a covid, HIV, malárias, tuberculose, febre tifoide, broncopneumonia, tantas doenças que aqui continuam a matar.”

O grande hospital verde e branco de Bissau está posto em sossego noturno e Isidro Nunes segue com Graciete, ela está quase a sair, o médico ainda ficará de plantão. Os dois lentos e muito serenos, caminham pelos corredores desalumiados e pelos quartos quentes sem ar condicionado, onde as camas não têm lençóis e os relógios na parede continuam ininterruptamente parados.