Guerra e paz: a longa odisseia de uma família de refugiadas ucranianas

Acordaram ao som de explosões, esperaram em filas intermináveis enquanto viam os rockets a sobrevoá-las, despediram-se de quem amam e fugiram só com o que tinham no corpo, aguentaram-se por entre quilómetros intermináveis e dias sem-fim, foi quase um mês de uma vida à deriva. Até que uma missão humanitária e a bondade de uma professora maiata lhes devolveram a esperança.

24/fevereiro
Kiev, Ucrânia

A guerra entrou-lhes pelo sono adentro, furiosa, implacável, desconcertante como o som das explosões que naquela madrugada doentia lhes esboroaram a vida como a conheciam. No oitavo andar de um prédio da Rua Honoré de Balzac, em Kiev, Anastasia Nesterova, 17 anos, acordou com o estrondo e entrou em pânico. Katerina, a avó de 72 anos, bem tentou acalmá-la, mas o pavor era mais forte, as sirenes berravam ensurdecedoras, a neta estava tão transtornada, tardou até conseguir ver nela um lampejo de serenidade.

(Foto: AFP Photo/Ukrainian Border Guard Committee)

A noite anterior já adormecera incerta, a hipótese da guerra ganhava força mas não havia certezas, Katerina não acreditava, resistiu a acreditar até àquele exato momento em que a guerra lhe destrambelhou o sono. Deixaram de se sentir seguras em casa, decidiram sair, procurar abrigo, sabiam que o salvo-conduto mais imediato era a estação de metro subterrânea lá bem longe, do outro lado do rio Dnipro. Fizeram-se ao caminho, com quase nada, só a roupa colada ao corpo, água, a crença de que haviam de voltar. Não voltariam.

Ainda passaram na farmácia, no supermercado, quiseram levar o básico, mas a demanda virou uma espera interminável e surreal. Três horas à espera na farmácia, duas no supermercado, e as prateleiras já quase todas varridas, com pouco para oferecer, as sirenes a ecoar o medo, os mísseis a sobrevoá-las ali mesmo, enquanto elas teimosamente se mantinham nas filas, como num filme. De terror, pois. Katerina ainda traz aquelas imagens aterradoras cravadas na memória.

A guerra começou com explosões em várias cidades. Milhares de pessoas refugiaram-se nas estações de metro
(Foto: Roman Pilipey/EPA)

E ela que ainda andava a recompor-se de outras dores, a filha (mãe de Anastasia) que lhe morreu em julho com covid, o marido em setembro com uma pneumonia, o irmão logo a seguir – “Ainda nem tinha tido tempo de enterrar o meu marido”, lamenta -, a vida também pode ser uma guerra. E depois veio a guerra a sério, a que ela não entende por mais que tente, o falecido marido bem lhe dizia que Putin tinha uma vontade indomável de recuperar a União Soviética, mas ela nem ligava, não quis nunca levá-lo a sério, continua sem conceber um tal “ato animalesco”.

Lá chegaram à estação de metro, milhares de pessoas ali enfiadas, confusas e sem saber para onde ir, o pânico a pairar, elas que não tinham nem cobertores nem nada que pudessem fingir de cama, só uma cadeira que Katerina fez questão que ficasse para a neta. Ela dormiu de pé, dormiu como quem diz, não há sono que venha quando a alma está feita em frangalhos.

15/março
Varsóvia, Polónia

Encontramos Anastasia e Katerina no parque de estacionamento do Centro Expo para Refugiados, em Varsóvia, um imenso pavilhão habilmente reconvertido para acudir a quem se viu forçado a escapar à pressa. Olexandra, 44 anos, filha de Katerina, tia de Anastasia, também cá está, lá chegaremos ao ponto em que ela se juntou à mãe e à sobrinha. Lá dentro, há centenas, talvez milhares, de pessoas como elas, distribuídas por camas improvisadas muito juntinhas umas às outras, as trouxas todas amontoadas em redor, um mar de gente que na falta de chão, pelo menos encontra ali teto, ponto de passagem para outros destinos Europa fora.

Para a família Nesterova, havia duas opções: Alemanha ou Portugal. “Mas os alemães não são tão calorosos, toda a gente sabe, são pessoas frias, parecem não ter um verdadeiro coração. Os portugueses são o contrário, amáveis e com coração, pelo menos é o que nos dizem os amigos ucranianos que lá temos”, vai explicando Olexandra. “Na Alemanha haverá mais oportunidades e dinheiro para a ajuda social, mas já temos Portugal no coração. Além disso, queríamos ficar o mais longe possível da Rússia e da guerra e nesse caso Portugal é o país ideal, não há outro, depois é só o mar.”

Anastasia, Katerina e Olexandra não se largam, são inseparáveis, estão neste momento a ultimar os preparativos para embarcar no autocarro que a Câmara da Maia disponibilizou para ir à Polónia em missão humanitária, com o nobre propósito de trazer mais de 50 refugiados para o conforto que só o nosso país sabe prometer.

(Foto: José Miguel Gaspar)

Mas avó e neta já estão em trânsito há quase três semanas. Primeiro, foi aquela noite interminável na estação de metro do outro lado do Dnipro, depois mudaram-se para a casa de uma irmã do padrasto de Anastasia, ainda em Kiev, num local supostamente mais seguro. Mas tudo ali lhes continuava a saber a insegurança. Katerina vai puxando a fita atrás, está pálida, tensa, nervosa, tem um ar exausto, deixa escapar uma lágrima aqui e ali, a neta também, mas procuram ambas manter a compostura enquanto falam.

“Estava tudo mal, à volta de Kiev só ouvíamos os rockets a rebentar, o aeródromo tinha sido bombardeado, a casa de um amigo que tinha acabado de ser remodelada foi destruída por um obus [peça de artilharia que dispara projéteis explosivos em trajetórias curvas].” O pão sumiu-se num ápice, os civis começaram a fazê-lo em casa, os voluntários a distribuí-lo, mas era uma baguete por pessoa, não mais do que isso. E depois eram as sirenes, a soar constantemente.

(Foto: DR)

Primeiro, quando aquele som agoniante rasgava o ar, era tudo a correr para os abrigos, uma aflição sem igual. Depois, a sensação de desespero foi-se desvanecendo. E a população foi-se mobilizando para se defender. Anastasia relata esses momentos de união heroica. “Toda a gente começou a carregar a areia dos parques infantis para encher os sacos e fazer barricadas, os parques ficaram sem areia nenhuma, toda a gente estava unida naquele momento, até as crianças ajudavam.”

Mas os dias eram vividos de coração nas mãos, o medo sempre a rondar. Até que perceberam que, se queriam viver com uma réstia de tranquilidade não havia alternativa, teriam de fugir. “Chegámos a ouvir um rocket cair uns prédios atrás de nós, de certeza que morreu muita gente, mas não sabemos porque fugimos.” E então, nos primeiros dias de março, foram para a Polónia, o padrasto de Anastasia, que é como pai, teve de ficar, o rosto delas fecha-se de cada vez que falam dele, de Volodomyr, a angústia de o saber por lá em plena guerra é mais forte do que elas.

Enquanto as Nesterova viajavam para Portugal, os homens da família continuavam em guerra, incluindo Volodymyr, o padrasto de Anastasia que é como pai
(Foto: DR)

Ainda estiveram uns dias numa família de acolhimento, depois vieram para aqui, para o centro de refugiados de Varsóvia, com a intenção de rumar a Portugal. Foi já na Polónia que Olexandra, filha de Katerina, tia de Anastasia, se lhes juntou. É ucraniana, mas vive há muitos anos em Israel, tem lá o marido e duas filhas, trabalhava numa clínica de massagens terapêuticas e medicinais.

Assim que ouviu as notícias da guerra, foi logo um aperto, por Katerina, pois, também pela sobrinha, que ainda por cima tinha perdido a mãe, começou logo a ver como as podia levar para junto dela. “Mas não me davam informações concretas, ninguém me garantia que pudessem ficar juntas e que a Anastasia pudesse continua a estudar, ainda por cima não é judia.”

Junto ao Centro Expo para Refugiados, em Varsóvia, Katerina, Olexandra e Anastasia preparam-se para embarcar no autocarro que as trará para Portugal (Foto: José Miguel Gaspar)

E então começou à procura de outras soluções, a bater a outras portas. Foi assim que chegou até Liudmila Mironova, ucraniana que trabalhou com a Câmara da Maia na tal missão humanitária. “Mas tive sempre medo que não fosse uma coisa séria, por isso fiz questão de vir com elas, para garantir que ficavam em segurança.” Mesmo que isso implique estar longe das filhas e do marido durante uns tempos.

“O mais importante é estarmos em segurança, adaptarmo-nos bem, ficar bem psicologicamente, estarmos sempre as três. Não conhecemos nada de Portugal, mas sabemos que é um país bonito e com sol. Chegámos a pensar ir lá de férias e agora vamos mesmo, mas é por causa da guerra.”

18/março
Maia (Moreira), Portugal

A cave do hotel Aeroporto, em Moreira (Maia), está feita um corrupio. De um lado, uma equipa de enfermeiros testa intensivamente todos os refugiados que chegaram na véspera, era já noite cerrada. Do outro, em várias mesas distribuídas pelo espaço, técnicos da Câmara vão ajudando as famílias com o pedido de proteção temporária, através da página online que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) disponibilizou para o efeito.

(Foto: José Miguel Gaspar)

Há um burburinho de fundo e um bebé muito loiro, olhos muito claros, vai choramingando. Katerina, Anastasia e Olexandra continuam juntas, sempre juntas, Olexandra tem um sorriso persistente, avó e neta parecem agora menos tensas, tiveram por fim uma noite de descanso, numa cama a sério e sem o ensurdecedor ruído dos rockets para lhes ensombrar o sono. O discurso resvala para um insistente agradecimento. “Custa a crer que nos estejam a receber assim, só acredito porque estou a ver com os meus próprios olhos. Apesar de ser um momento tão mau para nós, estamos muito agradecidas por nos ajudarem tanto.”

Katerina refere-se também às pessoas que, ao longo da viagem, as acolheram de braços abertos. Em Nuremberga, na Alemanha, os responsáveis da empresa de elevador Schmitt disponibilizaram-lhes refeições e banhos, em Lyon (França), um clube de futebol fez questão de lhes servir comida quente, em San Sebastian (Espanha) tiveram até direito a um pequeno-almoço com pratos tipicamente ucranianos. E elas gratas, tão gratas, sempre a agradecer educadamente tudo o que estavam a fazer para as mimar.

(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Só o rosto insiste em denunciar-lhes o cansaço de quase um mês de voltas e mais voltas. E os fantasmas que vieram com elas lá da triste Kiev. Katerina, a avó, não o esconde. “Ainda estamos muito transtornadas, não conseguimos acreditar, é difícil processar tudo o que vimos. Mas finalmente tivemos oportunidade de descansar um bocadinho, até aqui temos estado sempre em sítios diferentes.”

(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Enquanto Katerina fala, num tom invariavelmente educado e paciente, a neta, Anastasia, encosta a cabeça no ombro da tia, o olhar é triste, parece a mais abalada das três. Mesmo que finalmente se sinta a salvo. “Aqui sinto-me protegida, assusta-me o facto de ter de aprender uma nova língua do zero, mas sinto-me segura. Definitivamente não quero voltar a Ucrânia.”

Para a avó é diferente. “Eu vim para tomar conta da minha neta, para garantir que ela fica bem. Se não fosse por ela não tinha vindo, porque a minha terra é lá. E um dia gostava de voltar para lá.” Olexandra, a filha, larga o sorriso teimoso por instantes e não contém mais as lágrimas.

(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

E nisto os testes covid já estão despachados, deram todas negativo, têm de agora de tratar dos papéis, um processo minucioso e demorado. Lá fora, em pleno fim de tarde, Clara Pinto, professora de Educação Especial, 42 anos, já as espera, ansiosa. Há anos que é voluntária, vai fazendo coisas aqui e ali, quando começou a guerra logo se dedicou a recolher e a organizar bens para enviar para a Ucrânia, enquanto crescia a vontade de acolher em sua casa uma família ucraniana.

Primeiro inscreveu-se num site, depois soube que a Câmara da Maia estava a criar uma bolsa de famílias para acolhimento. E logo deu o nome dela. O telefonema não tardou, o sim também não, Inês, a filha de Clara, de nove anos, não só aprovou, como ficou radiante.

Na primeira noite, ficaram instaladas num hotel, onde fizeram teste covid e trataram dos papéis. Foi lá que se encontraram com Clara, a professora maiata que lhes abriu as portas de casa
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Clara veio vestida a rigor, com as cores da bandeira da Ucrânia, até as unhas estão cuidadosamente pintadas de amarelo e azul. Está um pouco nervosa, conta que já se fartou de chorar com as imagens que foi vendo na televisão, não podia ficar indiferente, tinha de fazer algo, isso ajuda-a a sentir-se mais traquila, nos últimos dias andou até atenta a tudo o que era reportagem para ver se ia descodificando uma ou outra palavra.

(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Já com o céu enegrecido, as Nesterova livram-se por fim das papeladas, Clara dirige-se a elas, Olexandra vai para a cumprimentar com um passou-bem, Clara não se contém, abraça-a e depois abraça também Katerina, e depois Anastasia, e elas devolvem o afeto de imediato, a língua até pode ser um entrave, mas o amor, bom, o amor é universal e não há guerra que o apague do mapa.

21/março
Maia (Milheirós), Portugal

Elas já estão confortavelmente instaladas na casa de Clara, ampla, acolhedora, decorada a preceito. Têm um ar mais sereno, roupa mais confortável, chinelos, Katerina e Olexandra sorriem, Anastasia está ligeiramente adoentada, queixa-se da garganta. Vêm as três receber-nos à porta, sempre amáveis, Clara e Inês também.

Há pequenos cartazes e desenhos espalhados pela casa, foi Inês que os fez e pendurou nas paredes, para que quando as novas hóspedes chegassem se sentissem logo acolhidas. Também há um monte de post-its cor-de-rosa, em que além do nome dos diferentes aparelhos em português, está a forma como se pronunciam e o respetivo nome em ucraniano. “É para elas se irem habituando”, explica Clara, a alma bondosa que lhes estendeu a mão.

Três dias depois, Katerina, Olexandra e Anastasia já parecem adaptadas
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Desde que chegaram, quiseram sobretudo descansar, saíram para dar uma volta no jardim do condomínio fechado em que estão alojadas, foram dar um passeio mais alargado pelas redondezas para ver a escola para onde Anastasia irá. E foram ao supermercado, o que acabou por ser uma aventura caricata. “Foi muito giro porque, claro, demoraram a encontrar as coisas que procuravam.”

Katerina ainda tenta encontrar a melhor forma de exprimir a gratidão que lhe enche o peito. “Não tenho palavras, dizer que foi maravilhoso é não dizer nada, a casa é maravilhosa, não estávamos à espera de vir encontrar melhores condições do que tínhamos lá. Mesmo que as condições não fossem estas, a Clara acolheu-nos como se fôssemos da família e isso faz toda a diferença, é o que é realmente importante.”

Avó e neta têm cadernos onde apontam as palavras que vão aprendendo
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Por momentos, Katerina parece tão longe da dor, do sofrimento, da guerra que lhes tolheu os dias. Mas a angústia persiste. Conta que têm conseguido manter contacto com o padrasto de Anastasia, Volodymyr, fala da heroica resistência ucraniana, lamenta tudo o que se está a passar. “As mulheres e as crianças já saíram, estão todas noutros países, como nós. Vamos falando com ele [Volodymyr], a cidade está a resistir, os russos já viram que não a vão tomar rapidamente e então estão a mandar mísseis. É muito complicado e angustiante para quem lá está.”

E o sorriso doce que teima em tomar-lhe rosto dá, por segundos, lugar a um ar grave e soturno. Depois, lembra a vida que tinha lá, estava reformada, há três anos que o marido já não podia sair de casa por estar doente, ela só dedicada a cuidar dele, como não podiam sair divertiam-se a ver programas de reformados que viajam pelo Mundo inteiro. Olexandra desfaz-se num sorriso terno.

Há post-its espalhados pela casa
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Mas depois vieram os tempos difíceis. A morte da filha, do marido, do irmão, a guerra. E Katerina desaba por instantes. A filha, que tinha passado o tempo todo a fazer festinhas a Anastasia, vai para trás dela, põe-lhe as mãos nos ombros, abraça-a por trás.

E ela lá volta à pose estoica, ganha força para prosseguir. Em tão pouco tempo, já aprendeu umas quantas palavras. “Roupa, roupeiro, candeeiro, espelho”, repete, orgulhosa. Anda com um caderninho só dela onde faz questão de anotar todas as palavras que vai aprendendo. Quanto a Anastasia, até já teve direito a uma aula particular de português com Clara e tem um grande caderno, impecavelmente organizado. Para que, quando voltar à escola, o caminho já esteja pelo menos entreaberto.

A cumplicidade entre todas é evidente. Há carinhos, brincadeiras, gargalhadas síncronas
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Tímida, de poucas falas, rosto fechado e enigmático, Anastasia é a mais introspetiva, como se os horrores de Kiev se agigantassem mais na sua pequenez. Mas sabe o que quer: ser designer gráfica ou programadora. E acima de tudo “trabalhar para agradecer a Portugal tudo o que estão a fazer por mim”. E nisto Clara já está de mão dada com Katerina, a outra mão a acariciar-lhe as costas, quase como uma filha que cuida de uma mãe.

E depois Katerina abraça muito Inês, estão as duas a rir-se, tão cúmplices, parece até que foi sempre assim. A memória da guerra a entrar-lhes pelo sono adentro há de ficar-lhes para a vida, mas há uma paz que começa a instalar-se de mansinho.
* com José Miguel Gaspar, na Polónia