Fazer humor em tempo de guerra

Entre piadas, memes e sketches, há um mundo de comédia a acontecer em paralelo ao conflito na Ucrânia. Mas o trabalho de a criar não é tarefa fácil, funde-se com os medos dos próprios humoristas que encontram aí um escape momentâneo à ansiedade. Juntar gargalhadas e tragédia pode mesmo ser uma forma eficaz de manter a sanidade mental e de lidar com a desgraça. Rir no meio da catástrofe faz sentido? Faz e não há quem o negue. Nem mesmo quem lá está.

Uma noite mal dormida, num estômago às voltas embrulhado no medo e assombrado por imagens de uma guerra aqui tão perto, e um desabafo nas manhãs da Rádio Comercial. Nuno Markl confessava estar a ter dificuldade em fazer humor – mesmo aquele que não gira em torno do atual conflito na Ucrânia – enquanto a dor de um povo inteiro invade televisões, jornais, rádios, o Mundo. Nem os longos anos de experiência que o humorista e radialista carrega a fazer a já velhinha rubrica “O homem que mordeu o cão” o impediram de travar esta luta. Os ouvintes não o deixaram cair num poço de dúvidas. E pediram mais riso, mais comédia, para aliviar tempos como este, emissões para lavar a alma e rir da desgraça.

“Foi uma reação meio instintiva. Pensei ‘mas quem é que tem vontade ou disponibilidade para rir quando tudo isto está a acontecer?’”, conta Markl. No fundo, admite saber ser uma falsa questão, embora legítima. “Depois de se ler sobre um ataque a uma maternidade, não é a coisa mais natural do Mundo pensar ‘ok, bom, vamos lá então agora criar aqui umas piadas’.” Mas se há coisa que as redes sociais vieram trazer foi a proximidade, o instantâneo, e perceber quase no imediato “o que os ouvintes achavam do assunto foi maravilhoso e muito tocante”.

Num Mundo tantas vezes desconcertante, o humor pode bem ser uma forma de processar toda a loucura, de manter a sanidade mental. Por isso é que o humorista sempre adorou piadas sobre a morte – de as ouvir e de as fazer. Até porque quando nos rimos de algo que é suposto angustiar-nos e aterrorizar-nos, de certa maneira estamos a vencer. Palavras dele.

Afinal, faz sentido rir em tempo de guerra? “Quando as notícias são negras e sangrentas, é difícil ser o tipo que aparece pelo meio da tragédia a tentar ter piada. Mas de repente faz todo o sentido. A comédia é muitas vezes vista como um desrespeito e uma falta de educação, o que é um clichê tão errado mas tão forte que contamina e provoca um estranho sentimento de culpa a quem a faz durante um momento trágico.” A verdade, sabe-a melhor do que ninguém, é que “tem um lado terapêutico”, traz leveza aos dias e até pode ter uma palavra a dizer sobre o que está a acontecer. “Há curtas hilariantes dos Looney Tunes feitas durante a II Guerra. À sua maneira são uma forma de resistência. E o Dr. Strangelove, do Stanley Kubrick, é outro exemplo de como a comédia pode servir a denúncia da guerra nuclear com mais eficácia do que, se calhar, uma palestra séria sobre o assunto.”

Se a comédia andou sempre de mãos dadas com as grandes crises da Humanidade, a II Guerra Mundial, que valeu o epíteto do humor negro aos britânicos, é o espelho mais óbvio da história, um palco privilegiado de piadas. A sátira vestia a propaganda, os panfletos eram arma de oposição aos nazis, com Hitler como maior protagonista das graças que o ridicularizavam e que hoje se eternizam nas paredes de museus. Os soldados cantavam músicas para minimizar o inimigo, assim se encorajavam as tropas quando o sentimento de impotência se agigantava. Antes, como agora, a guerra alimenta o humor. Um humor que não se deixa fechar numa caixa de limites imaginários que, afinal, nunca existiram.

“Continuam as conversações entre Ucrânia e Rússia, mas sempre longe de um consenso. É como quando os casais tentam decidir onde vão jantar e um quer sushi e o outro quer uma guerra nuclear.” A piada de Susana Romana na rubrica “Partida, Largada, Fugida” da “Notícias Magazine” é só uma num rol que se desenha infinito. “Há obviamente um lado quase de sobrevivência, rires-te das coisas ajuda a saberes lidar com elas. Tenho visto imensos tiktoks de jovens na Ucrânia, alguns com muita graça. Eles próprios, que estão no meio daquele sofrimento, fazem-no.”

“Há obviamente um lado quase de sobrevivência, rires-te das coisas ajuda a saberes lidar com elas”., afiança Susana Romana, humorista e guionista
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

A humorista, autora da rubrica “Macaquinhos no sótão” nas manhãs da M80 e guionista do “Programa Cautelar” de Filomena Cautela na RTP (a caminho da 2.ª temporada), chama-lhe válvula de escape na nossa panela de pressão. “Se precisamos disso, devemos recorrer ao riso sem sentirmos culpa. Não quero fazer piadas sobre uma maternidade que foi bombardeada – e isso não quer dizer que não haja quem o faça bem -, mas acho que é importante fazer piadas sobre Putin.” Numa guerra onde há um vilão tão óbvio, escrever comédia fica mais fácil. Ainda por cima quando é, como ela diz, um tipo que se dá muita importância a si próprio, com um ego muito inflamado, que despreza a liberdade de expressão.

A paixão de Susana pela II Grande Guerra talvez ajude a explicar porque não consegue deixar de fazer rir nesta fase. Já visitou tantos museus, de Berlim aos países bálticos. “E é muito óbvio que todos precisaram de fazer piadas sobre o que se estava a passar numa das épocas mais horríveis da Humanidade. Há imagens disso. Não tenho dúvidas de que o humor é um mecanismo que nos ajuda.” Haverá quem não quer ver piadas sobre a Ucrânia agora, é certo, mas essa, defende, “é mais uma escolha de quem consome do que de quem produz, se a pessoa fica melindrada, deve evitar esse conteúdo”. E as críticas “não devem limitar quem produz”.

Descentrar, rir, aliviar a ansiedade

No caminho pantanoso de rir da desgraça, todas as abordagens podem chocar. Uma inevitabilidade contra a qual não vale a pena remar. “O humor tem sempre potencial de ofender e magoar, mas também ajuda as pessoas a esquecer esta ameaça por momentos e isso é muito positivo.” David Neto, psicólogo clínico e psicoterapeuta, sabe que já há percurso feito em investigação sobre o efeito da comédia em tempos de crise. E são vários os especialistas a estabelecer uma ligação entre o humor e a capacidade de superação, de reduzir a ansiedade. Ele corrobora. “O humor e o riso são muito importantes em todas as situações stressantes e obviamente a guerra não é uma exceção.” Não só o humor permite “descentrar daquilo que está a provocar ansiedade”, como o riso “tem uma função de alívio”. Não é por acaso que se fala em riso nervoso, “quando as pessoas se riem para tentar aliviar alguma ansiedade”.

O psicólogo vai mais longe e considera que, “no geral, as pessoas que têm mais capacidade de rir de situações trágicas e de si próprias são as que se conseguem adaptar melhor e mais facilmente lidar com situações adversas”. É o otimismo, a capacidade de ver o lado positivo a vir ao de cima. O humor até tem “um papel protetor ao nível de algumas questões de saúde mental”, desde que não seja “uma forma de evitamento e de negação da situação”.

Recuemos ao tempo de Gil Vicente, o primeiro grande dramaturgo português, para um raio-X rápido ao trabalho dos comediantes. “Desde esse tempo que existe uma latitude maior que se dá aos humoristas. Já o Gil Vicente se permitia, através do humor, dizer coisas ao rei que mais ninguém conseguia dizer. E o rei reconhecia-lhe essa latitude. Os humoristas sempre tiveram esse papel de dizer coisas desconfortáveis, de tocar com o dedo na ferida, de dizer o que mais ninguém quer dizer. E é, de facto, um papel importante”, comenta o psicólogo.

De Bruno Nogueira a Ricardo Araújo Pereira. Da rádio à televisão

No calendário é 14 de março, a rádio é a TSF. “Tenho recebido várias cartas, a maioria são da EDP. Mas recebi uma a dizer: ‘Ó Bruno Nogueira, achas bem fazer piadas com a guerra na Ucrânia?’ A resposta é sim, acho, se até o Solnado fazia. Mas compreendo que uma guerra não é motivo de riso, a não ser que usem gás hilariante.” O comentário do humorista (autor do programa “Tabu” a passar agora na antena da SIC) na rubrica “Tubo de ensaio” é reflexo óbvio de um humor que se faz desconfortável. Tanto que Guilherme Fonseca, guionista de “Tabu” e que trabalha com Ricardo Araújo Pereira no programa humorístico domingueiro “Isto é gozar com quem trabalha”, reconhece a dificuldade dos tempos.

“Acredito que por muito que um ucraniano se possa rir de uma piada ótima sobre o Putin, a ansiedade de estarem a cair bombas ao lado de casa não vai desaparecer”, afirma Guilherme Fonseca, humorista e guionista
(Foto: DR)

“É complicado criar humor quando as notícias são trágicas, quando afetam emocionalmente as pessoas ou as assustam.” A guerra tem sido o tema central no “Isto é gozar com quem trabalha”. E as gralhas da cobertura mediática ao conflito são o combustível maior. No último, Guilherme surge a desenhar, num mapa da Ucrânia, a organização da ofensiva russa, que inicialmente parecia ganhar uma forma fálica. “O que desenhei foi um coelhinho, que fique bem claro”, brinca.

A equipa do programa vai tentando encontrar ângulos que deixem espaço para o público rir sem sentir culpa num tema em que “é preciso uma sensibilidade grande”. Mas a temática nem sequer é opção, é “porque não há absolutamente mais nada para falar”. O país ainda sem novo Governo e um noticiário monotemático deixou-lhes a bota da guerra para descalçar. E uma questão por responder: “Nesta semana o que é que teve graça? O que é que nos fez rir? E isso pode ser um repórter de guerra que fez coisas engraçadas”. Dá muito mais trabalho, mas acaba a ser “gratificante”. Os comentários negativos fazem parte, Guilherme não é de ficar a remoer. E entrega-se a analogias a toda a hora. “Se fizer uma piada sobre uma cadeira e outra sobre a guerra, vai haver sempre alguém chateado com a piada sobre a cadeira e alguém ofendido com a piada sobre a guerra.”

É de um lugar de privilégio que diz, admite, estar à distância “a mandar bocas”. Mas, mesmo quando a tragédia lhe bate à porta, tem a capacidade de a transformar em humor. Como quando o pai morreu e Guilherme deu palco – literalmente – a piadas sobre isso. “A maneira que tive de lidar com essa má notícia foi escrever sobre o que estava a sentir. Acho que se fosse padeiro lhe fazia um pão muito bonito. Como sou humorista, tive necessidade de fazer humor. Se isso ajuda a lidar com a ansiedade? Não sei. Acredito que por muito que um ucraniano se possa rir de uma piada ótima sobre o Putin, a ansiedade de estarem a cair bombas ao lado de casa não vai desaparecer. Na melhor das hipóteses, a comédia é uma refeição que lhes sabe bem e depois a vida continua. A guerra continua.”

Sketches do Herman e piadas em redes sociais

Só que a ansiedade também mora em quem vê perplexo a ameaça ao longe, num assalto de notícias ao minuto, a temer que fique perto. Aí o riso é arma poderosa. O aumento da procura de ajuda ainda não se está a sentir, segundo o psicólogo David Neto, mas “a ansiedade da população certamente aumentou”. Aliás, nas consultas atuais a guerra é tema recorrente. “Estamos perante um momento histórico em que as coisas vão mudar em termos de ordem mundial estabelecida, de expectativa de crise económica. Já estávamos a sair de uma situação extraordinária e extrema e saltámos para outra. Não me estranharia nada que isto tivesse impacto a nível da saúde mental.”

E é do humor que Herman José se serve para combater as depressões e as tristezas – é ele quem diz. “Por isso o pratico, partindo do princípio de que muito do público que nos segue sente precisamente o mesmo.” Na RTP, no “Cá por casa”, os sketches onde têm entrado figuras históricas russas, desde Estaline a czares, a ridicularizar Vladimir Putin são a praia de Herman. Um trabalho que é tanto mais duro quanto mais generalista é o meio. “Num programa de televisão em canal aberto por exemplo, há que criar os guiões com uma dose de sensibilidade e de lucidez acrescida, para que a quantidade e a qualidade das gargalhadas não se revelem menores do que os estragos nas sensibilidades dos vários grupos que assistem.”

“Num programa de televisão em canal aberto, há que criar os guiões com uma dose de sensibilidade e de lucidez acrescida”, garante Herman José, humorista

Tudo o que vai para o ar é medido ao milímetro – “o programa é um ato de alegria, não um laboratório para agressões gratuitas” – e os quase 50 anos de carreira do gigante do humor nacional dão-lhe uma certa autoridade para assumir a tarefa, sem entraves do canal público. Como lhe dá outras coisas: há muito que pôs em prática a técnica de escrever para si e não em função do que outros iriam gostar. O Sr. Feliz do imaginário popular português não é insensível a críticas, só não são elas que o guiam. “O que seria se navegasse ao sabor dos quase 400 mil que contactam comigo diretamente no Instagram e no Facebook. Já me teria dedicado à agricultura, e deixava a tarefa de queimar as pestanas na duríssima escrita e representação do humor a outras almas.”

Da televisão generalista para o mundo virtual, pelas redes sociais multiplicam-se os memes sobre a Ucrânia, piadas feitas tantas vezes por ucranianos. A própria página oficial da Ucrânia no Twitter entra no espírito e adota um tom nem sempre belicista. Guilherme Duarte, comediante e autor da página “Por falar noutra coisa”, navega por aí. No Facebook: “Isto das sanções à Rússia é como se um homem matasse a mulher e tivesse a sanção de ficar sem Sport TV durante um mês. Mas em mês de dérbi, só para doer mesmo a sério”. Se há quem perceba as piadas, também há quem lhe diga, largado de pruridos, que devia morrer ou ir para a guerra combater. “Só não percebo se pelo lado dos russos ou dos ucranianos, não especificam.”

“Ao contrário do que as pessoas pensam, que o humor vem de um sítio de sociopatia e de falta de empatia, é quando o tema mais me sensibiliza que procuro fazer uma catarse sobre isso”, reitera Guilherme Duarte, humorista
(Foto: DR)

Fazer comédia com tragédia é quase inevitável para quem sempre pisou caminhos sensíveis. Por uma razão. “Ao contrário do que as pessoas pensam, que o humor vem de um sítio de sociopatia e de falta de empatia, é quando o tema mais me sensibiliza que também eu procuro fazer uma catarse sobre isso.” São os assuntos em que anda a remoer que dão lugar à piada. A morte e o medo que lhe tem é prova disso. Fala muito do fim nos espetáculos. “Vamos todos morrer e eu, à partida, também. Brincar com a morte também é brincar com os meus próprios medos.” E, espante-se, os humoristas têm os próprios limites. Há sempre, garante, uma autocensura prévia. Há piadas sobre a guerra que não faz. “Porque não têm graça suficiente para contrapor o fator choque. Eu próprio faço essa triagem.”

O autor do podcast “Sem barbas na língua” e do videocast “Consultório do Doutor G” só não tem dúvidas de que é nestas alturas que rir é mais preciso. Para ajudar o público a manter a sanidade mental? “Não penso nisso a criar. Quando o humorista se começa a levar muito a sério e a achar que está a ajudar e a fazer o bem é quando começa a perder a piada e o ego a insuflar. Tento criar pequenos momentos de escape. Mas, perante uma tragédia tão grande, não quero nunca ter a presunção de que posso estar a ajudar.”
Talvez o humorista não seja o curandeiro que leva o riso a pessoas refugiadas ou escondidas em bunkers, como diz, mas admite o outro lado. Para quem está a ver à distância, num misto de entretenimento mórbido e de alívio por não estar ali, rir um bocadinho disto ajuda.

Ser humorista na Ucrânia

Então e lá? No país que fez de um comediante presidente – para quem o Mundo hoje olha como um herói da resistência -, não é difícil imaginar um povo capaz de rir do inimaginável, do inferno que lhes bateu à porta, do infortúnio de uma vida massacrada. Entre os humoristas ucranianos homens, muitos são os que se juntaram à luta, sem tempo para entrevistas e outras coisas menores. Das mulheres sobra a sorte – que é sorte nenhuma – de não terem que vestir fardas nem agarrar em armas.

Quando a guerra começou, a ucraniana Lera Mandziuk, 25 anos, fugiu de Kiev (para onde se havia mudado há três anos para viver uma carreira televisiva como comediante) e voltou ao lugar onde nasceu, cidade no oeste da Ucrânia, na zona mais abeirada do Ocidente, ali a espreitar a paz. “Este é o único lugar seguro do país agora. Não há guerra aqui. Na verdade, estou só a ansiar que isto acabe. Sinto muito medo, não sei o que vai acontecer amanhã. Talvez tenha que fugir daqui”, assume a comediante à “Notícias Magazine”.

“Neste momento, ainda não consigo encontrar humor nisto. É difícil rir e fazer piadas quando temos que fugir de mísseis”, reconhece Lera Mandziuk, humorista ucraniana
(Foto: DR)

Por lá, à semelhança de Portugal e do resto do Mundo, as mulheres no humor ainda são minoria. Lera começou a fazer stand-up aos 19 anos, nunca mais parou. Até agora. “Neste momento, ainda não consigo encontrar humor nisto. Nem eu como comediante, nem qualquer outra pessoa. É difícil rir e fazer piadas quando temos que fugir de mísseis e de bombas.” Mas não perde a esperança, mesmo quando as lágrimas teimam em cair. E caem, tantas vezes. Há um grupo de humoristas na Ucrânia que todos os dias escreve piadas “e faz memes sobre as mais recentes notícias”. “Não sei onde é que eles vão buscar forças, são muito bons e têm animado as pessoas.”

Lera não escreveu absolutamente nada durante esta fase. Ainda não foi capaz. Precisa de tempo. “Mas não é preciso ser um especialista para saber que depois de rir tudo fica mais leve. No meio disto, o sentido de humor é o que resta. Nos momentos mais difíceis, nas tragédias, é o que torna a vida mais fácil.” Só que as piadas são impotentes contra as balas de metralhadoras e contra os tanques, e “agora o importante é salvar a vida das pessoas, para depois cuidar da saúde mental com todas as armas possíveis”. O humor é uma delas. Faz uma promessa: “Adoro os ucranianos e adoro fazer humor. E vou fazê-lo, quando tudo acabar.”