Amor no trabalho. Quando um manda mais do que outro

Se o casamento entra nas portas do emprego, com assimetrias de poder à mistura - um chefe, o outro subordinado -, os desafios são mais do que muitos. Leva-se a casa para o trabalho e o trabalho para casa, numa mescla de emoções difícil de esbater. Mas há casais que aguentam firmes e que provam que é possível separar as águas.

Ana Rio aventurou-se primeiro, sozinha, a vender casas. Seis meses a penar, sem uma única venda. Mas 2011, embrulhado nos anos da crise, tinha-a empurrado para o desemprego, estava na porta de saída de uma empresa em falência. E tinha que tentar. O sucesso nos caminhos do imobiliário haveria de chegar. De tal forma que, em meados de 2016, o marido, João Rio, se juntou a ela. Estão no Porto, são profissionais liberais, passam fatura à Remax Vantagem Invicta. Trabalham juntos, todos os dias, e é ela quem dirige a pequena equipa que criaram, quem dá o murro na mesa do trabalho. O resumo até poderia servir, mas a história, essa, já vem dos tempos da faculdade.

Engenheiros civis, os dois. Foi no curso que se conheceram e no final do primeiro ano já trocavam juras de amor. Aos 44 dos dois, levam mais de duas décadas ao lado um do outro, com uns bons anos a morar em Londres pelo meio. “A nossa primeira filha nasceu em Inglaterra. O João foi fazer doutoramento lá e acabei por ir ter com ele”, conta Ana. A filha, Catarina – têm outro, David -, mudou-lhes a perspetiva, afinaram as agulhas da vida, e voltaram a Portugal. Ainda trabalharam como engenheiros, cada um na sua empresa. Até ela ficar sem trabalho.

“Eu estava com um bom emprego, um bom salário, e era uma boa altura para a Ana explorar ideias.” Ela quis apalpar terreno no mundo imobiliário, até hoje. Para uma mulher tímida, de pouco palavreado de venda, ninguém diria, é João quem elogia: “Ela descobriu uma vocação enorme. Começou a ter muito sucesso”. Ana justifica, apressada. “Porque isto é um negócio de ajudar pessoas.” O marido começou por lhe dar a mão informalmente até se juntar a valer.

Nessa altura, já a marca “Ana Rio Remax” era forte. Trabalham num escritório alugado, no Porto. Ele dá apoio no marketing, ela faz visitas. “Quem marca os golos é a Ana, sinto que estou a apoiá-la nesta atividade, como ela me apoiou quando estávamos em Inglaterra. Só fazia sentido ser ela a líder. A decisão final é sempre dela”, esclarece João. Quando não concorda, diz, mas não faz finca pé. E não se sente diminuído. O tempo que passaram além-fronteiras, sem rede de apoio, ajudou-os a criar um companheirismo que não conseguem esconder.

João Rio juntou-se à mulher, Ana Rio, no negócio de vender casas. E é ela quem lidera a equipa
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

“E é engraçado que quando há um dia que passo mais sozinha, chego ao fim e tenho saudades dele”, confessa Ana. Têm estratégias para fugirem ao desgaste. Ele faz canoagem. Ela dança. Às terças, ainda se juntam no badminton com um grupo. A liberdade de horários dá-lhes margem. Há dias em que escolhem não ir juntos para o escritório. Outros há em que um deles vai almoçar com os filhos. E, na agenda, dois dias por semana estão reservados para jantarem só os dois. Os miúdos ficam nos avós. Se o trabalho entra na mesa e em casa? Sim, a barreira é muito permeável. “Mas sinto que o facto de ele trabalhar comigo lhe permite perceber melhor quando estou em baixo”, remata Ana.

Os preconceitos, os desafios, os riscos

Quando os trapinhos também se juntam no trabalho, os desafios são muitos. E se um é chefe do outro, adensam-se. Mais ainda sendo a mulher a líder. Isso é uma questão, ainda. “Se em alguns casos o homem ainda sente dificuldade em gerir a autoridade de uma mulher, o próprio sexo feminino sente dificuldades em encontrar o seu lugar e exercer a sua liderança de forma tranquila”, aponta Catarina Lucas, terapeuta de casal. A sociedade, mergulhada em estereótipos de género, está a aprender. Mas as mulheres no poder ainda são a exceção à regra e as dificuldades para os casais desenham-se em todos os pontos desta equação, independentemente do género.

Trabalhar no mesmo sítio já é desafio que baste. Segundo a psicóloga clínica Rute Agulhas, “se os casais passam demasiado tempo juntos, nomeadamente em contexto profissional, sentem muito frequentemente a falta do seu espaço individual”. E o emprego traz fatores de stress “que nem sempre se conseguem separar da vida amorosa”. Leva-se o trabalho para casa e a casa para o trabalho. “Os elementos do casal são pessoas e nem sempre conseguem regular o que sentem. Não há um botão ‘on’ e ‘off’ que ora se liga em casa, ora se desliga no trabalho. É muito mais complexo.” Os diferentes contextos da vida não são pequenas ilhas, estão interligados, misturam-se. O terapeuta familiar Pedro Frazão subscreve-o. “Quando há um contacto permanente, não há a capacidade de se compartimentar um conflito que surge por causa de uma questão de trabalho. Não é como se as pessoas saíssem, fechassem a porta e isso deixasse de estar presente na dimensão privada. E vice-versa.”

Não é impossível separar as águas, esse é ponto assente, mas o desafio é duro. E a assimetria de poder no emprego é a soma num longo rol de dificuldades. Corre-se o risco de a dinâmica de superioridade ser levada para a vida conjugal. “Ou até, muitas vezes, a hierarquia que é exigida no contexto de trabalho acabar por ser quebrada por existir uma relação pessoal. Se já é difícil gerir quando há uma relação de amizade, pior ainda quando há uma relação afetiva”, alerta Frazão. Por outro lado, a confiança que existe dá margem para expressar discordâncias de forma mais direta e uma crítica profissional pode ser levada para a dimensão pessoal.

Na ficha clínica, o terapeuta já conta alguns casais nessa situação. “Entre os que acompanhei, quando não estão num patamar de igualdade, muitas vezes, até preventivamente, optam por mudar de departamento mal surge essa oportunidade. Porque é muito exigente: no trabalho, estão a falar como chefe e subordinado ou como marido e mulher?”, questiona. Há mesmo quem prefira esconder a relação para não gerar falatório nem a ideia de favorecimento.

Dois jornalistas juntos num acaso

Não é o caso de Anabela Carvalho e José Carlos Costa. Que quiseram deixar tudo em pratos limpos desde a primeira página que escreveram no portal de comunicação “ViseuNow”. Foi num acaso que ela, 28 anos, foi parar à televisão online onde José Carlos, um ano mais velho, é hoje diretor e ela subdiretora. Para o entender é preciso rebobinarmos a cassete até 2012, quando começaram a namorar em palcos académicos, na Covilhã. Já lá vão dez anos. Estavam no curso de Ciências da Comunicação, ela de Famalicão, ele da Covilhã. Ainda estagiaram juntos na Rádio Renascença, na capital, até voltarem a casa, cada um à sua, numa relação que começou a desenhar uma distância que não haveria de durar muito.

Estão em Mangualde, na redação do “ViseuNow”. “Ele conseguiu emprego em Viseu e comecei a procurar trabalho nesta zona. Estava a enviar currículos para todo o lado e vi um anúncio que nem associei ao trabalho dele. Só quando fui chamada para entrevista é que percebi”, relata Anabela. José Carlos não quis interferir, deixou o processo de recrutamento correr. Só pôs as cartas na mesa quando Anabela foi selecionada. O sócio-gerente da empresa ficou em dúvida, tinha reticências. Mas Anabela foi contratada, abril de 2017. Não sem antes haver uma conversa para pôr os pontos nos is. Cinco anos depois, não há arrependimentos.

Feitas as contas, metade da relação foi construída a trabalharem juntos. Descomplicam. “Enquanto outros casais quando chegam a casa partilham o dia que tiveram, nós não sentimos essa necessidade. E conseguimos separar as águas”, diz José Carlos. Mas desligar a ficha, admite Anabela, e deixar o trabalho à porta é difícil. “Os problemas não deixam de existir a partir do momento em que entramos em casa.” Discutem ideias, é inevitável, até porque no mundo da informação a notícia não tem horas. Só não se deitam sobre um assunto mal resolvido, meio caminho andado para não levarem zangas para o trabalho.

Dentro das paredes da redação, são os primeiros a pensar diferente. “Temos de trabalhar em conjunto, mas a última decisão é dele, é ele o diretor, é ele quem manda. E aceito isso”, atira Anabela. José Carlos ri, gesticula com as mãos como quem diz que nem sempre assim é. Para logo se despachar a reconhecer que é mais rígido com Anabela do que com o resto da equipa. Mas tem as linhas vermelhas bem definidas: não mete o bedelho quando ela está a discutir com um colega.

José Carlos é diretor do portal “ViseuNow”, onde Anabela Carvalho também trabalha. Já lá vão dez anos de namoro
(Foto: Miguel Pereira da Silva/Global Imagens)

Se o terreno é a casa, é ela quem manda, brinca Anabela. Trabalhar num meio de comunicação pequeno traz outros desafios, na maioria das vezes as folgas não coincidem. O que lhes dá tempo para cada um, mas lhes rouba tempo de casal. Sabem disso.

Umas empresas aceitam, outras não

Em Portugal, há empresas que não aceitam o quadro em que um elemento de um casal é superior direto de outro. Outras deixam esse aspeto livre. Mas é preciso olhar para a realidade do país: o mundo empresarial português é fértil em negócios familiares. Nas pequenas empresas e até nos grandes grupos económicos, que saltam gerações. E no norte, lembra Artur Queirós, psicólogo do trabalho e das organizações, isso ainda é mais acentuado, “o que traz dificuldades organizacionais”. “É muito comum no meu trabalho como consultor em organizações ter relatos de trabalhadores que se queixam de haver injustiça na empresa, porque a progressão não é necessariamente meritocrática, mas sim consequência das relações pessoais.”

É o mundo privado a invadir a imparcialidade no trabalho. Porém, o inverso também é comum. “Não só nas relações conjugais, também nas familiares. Há muitos filhos de donos de empresas que sentem que têm que provar mais do que outros de que merecem a progressão. E nem sempre o mérito alcançado tem o reconhecimento da chefia. Ao mesmo tempo, os pares acham que têm a vida facilitada. O que põe a pessoa numa pressão elevada.” O exemplo também veste casais. Mas quando se entra na arena da conjugalidade, há uma chuva de fatores a pesar. É diferente entrar um casal numa empresa ou nascer um casal dentro da empresa. “Neste caso, não sendo entre pares, levantam-se outros problemas que é destrinça entre o normal desenvolvimento de uma relação e aquilo que pode ser considerado assédio por haver um cargo superior”, explica o psicólogo.

Cada caso é um caso. E nem sempre é fácil a quem vive esta situação falar publicamente sobre isso. “Percebo a dificuldade, mas é tão comum haver laços familiares nas empresas portuguesas que há uma aceitação tácita dessa realidade. E já estive em empresas em que há uma grande capacidade de separar as águas”, sublinha Artur Queirós, que sustenta que quanto mais madura for a organização, mais a gestão é funcional. E quanto menos madura, mais espaço há para tomar decisões fruto do estado emocional.

Ela é a chefe na carpintaria

No campo dos negócios familiares, é aí que Míria Guimarães e Fernando Oliveira entram. Conheceram-se já ele era carpinteiro numa empresa familiar e ela trabalhava numa escola. Distam dez anos na idade. Míria tem 40, Fernando 50. Ela decidiu largar o emprego e abrir uma serralharia, aproveitando a experiência dele, que a ajudou no arranque. E Fernando não levou muito tempo a juntar-se à empresa de Míria, que hoje é uma carpintaria com 40 funcionários e que exporta para vários pontos do Globo. Corria o ano de 2013. “Deixei a empresa familiar e juntei-me a ela a tempo inteiro”, recorda Fernando. O sotaque nortenho não deixa enganar, são de Guimarães. É lá, na Cidade Berço, que a “Carpinbelo Estilo” tem morada.

“Ele é meu funcionário”, comenta Míria, a rir para ele. Fernando é o carpinteiro, é quem visita os clientes, cá e no estrangeiro. Míria assume a administração, a parte logística da empresa, da produção, a vertente financeira. Os dois parecem peças de um puzzle a encaixar na perfeição. Não se largam. “Embora eu passe muito tempo nas obras, temos várias reuniões por dia. E não nos cansamos”, frisa Fernando. São mais duros um com o outro no trabalho. Ele é mais explosivo, ela é quem põe água na fervura. São companheiros numa viagem em que a decisão final é dela, mas em que tentam não misturar as águas. O trabalho na produção é a praia dele, a gestão é a dela. “Normalmente, consultamo-nos um ao outro para tomar decisões. Mas se decidir alguma coisa, ele tem que acatar”, diz Míria.

Mesmo quando ele faz as malas para visitar clientes, muitas vezes Míria acaba por ir também, em lazer. Só no ginásio se desencontram. Ela faz musculação à hora de almoço, ele treina ao fim do dia. Têm uma filha de 12 anos, evitam falar de trabalho em casa. “Quando isso acontece, digo logo que amanhã falamos”, avisa ela, que garante: “Em casa, mandamos os dois, equilibramos a coisa”. Querem tanto continuar juntos que já se preparam para abrir a Carpinbelo 2.

Míria Guimarães é a dona da carpintaria onde o marido, o carpinteiro Fernando Oliveira, dá cartas por todo o Mundo
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Se esta história de amor continua de vento em popa, nem sempre assim é. A pandemia veio mostrar que os casais acumulam tensões quando não há separação entre trabalho e espaço íntimo. “O contacto permanente traz um efeito de saturação e muitos adotam estratégias como não irem juntos para o trabalho, para manterem a individualidade”, assinala o terapeuta familiar Pedro Frazão. Não estarem juntos na pausa de almoço é outro truque, assim como terem passatempos, fazerem desporto, saírem com os amigos sem o outro. Tem que se reservar tempo para a vida de casal, mas “fazerem tudo juntos também não é bom, porque um já não consegue imaginar como ser autónomo do outro.”
Catarina Lucas, terapeuta de casal, concorda e defende que, quando há cargos de superioridade, os acordos que se fazem para “delimitar os assuntos profissionais ao contexto de trabalho” são uma boa solução. E as relações duradouras de quem trabalha junto são a prova de que é possível.

A má experiência, a aprendizagem

Como a de José Silvério e Laura Sequeira. Ele tem 48 anos, ela 50. Três décadas de amor que quase foram por água abaixo quando trabalharam juntos num restaurante e não conseguiram definir fronteiras, no meio dos ciúmes da juventude. Para salvarem o casamento, puseram fim ao negócio e os dois foram trabalhar para a mesma fábrica de peças de automóvel, em S. João da Madeira, com horários que mal os permitiam cruzarem-se. Mas o Mundo gira, dá voltas e quase duas décadas depois haveriam de voltar a juntar-se, ele patrão, ela funcionária – lá iremos.

Já lá vão sete anos desde que um dos três filhos do casal lançou o isco ao pai, que sempre teve a restauração a correr-lhe no sangue. O filho estava de saída do Exército, nos tempos da troika. José Silvério largou a fábrica e abriram os dois, pai e filho, a Taberna do Zé, no centro da cidade. Era um espaço de tapas e vinhos, que ao fim de um ano adaptaram ao que a clientela ia pedindo, com cada vez mais pratos. Num ápice se transformou num restaurante, em cozinha de fogão. Foi aí que Laura entrou. Por gostar tanto de cozinhar, só fazia sentido juntar-se. “Saí da fábrica e vim trabalhar com ele. Mas, por ele ser patrão e eu ser funcionária, exigi ter o meu ordenado direito na folha, um contrato. Não era como desse o mês. Queria uma coisa certa”, vinca Laura. O filho saiu do projeto, ficaram só os dois, além de outra funcionária.

“Não é fácil. Às vezes pegamo-nos aqui, ficamos de trombas, mas chateio-me na hora, digo umas asneiras e passa-me rápido. Daquela porta para fora não falamos disso. Foi o que combinámos. Há 20 anos correu mal, tivemos que aprender a separar. Casamento é casamento, trabalho é trabalho”, diz ela. A experiência ensinou-os, amadureceram pelo caminho, aprenderam as lições. Resolvem os problemas no restaurante, nem que seja no dia seguinte. Laura é bem resolvida. Ali, é ele o patrão. “O que disser para fazer, eu faço. E se não concordar também digo.” José ironiza: “Ela manda mais do que eu”. Em casa, não se deitam zangados, é regra no casamento. E têm levado o barco a bom porto.

Mesmo com uma pandemia que foi madrasta para quem vive de porta aberta ao público, aguentaram-se estoicos. “Muitos colegas de profissão separaram-se à conta disto”, realça José. Eles não. E vão conseguindo tempo individual. Laura vai ao cabeleireiro com a filha mais nova, vai jantar fora, sai mais cedo do trabalho para se dedicar aos afazeres domésticos, desanuvia com croché, ponto de cruz. E José? “É no quintal. Tenho mais de 200 vasos de orquídeas. E tenho suculentas. É o meu hobby.”

Numa taberna que é feita de clientes fiéis e num casamento que não treme mesmo trabalhando juntos com papéis de poder à mistura, os olhos apontam para a frente. “Agora? É mais 30 anos. Vamos acabar os dois de bengala, lado a lado”, conclui Laura.