A vida (e a nova vida) de Merkel 

De investigadora a chanceler, estruturou um percurso político que alterou o rumo da Alemanha e do Velho Continente. Aproveitando as crises para promover mudanças, mostrou que é possível governar mantendo-se fiel às convicções pessoais. O retrato da mulher mais poderosa do Mundo pela biógrafa Kati Marton, que esteve em Portugal e conversou com a “Notícias Magazine”.

“A mulher mais conhecida do Mundo conseguiu afirmar-se sem necessidade de recorrer a grandes discursos. Usou apenas uma grande capacidade de observação e o seu sentido de liderança para atingir os objetivos a que se propunha”, reflete Kati Marton, autora da biografia “A chanceler: A notável odisseia de Angela Merkel”, em entrevista à “Notícias Magazine”. Na ex-chanceler, a escritora norte-americana de origem húngara observa um enorme sentido de rigor crítico, excelente memória fotográfica, inteligência emocional e estratégia política. Elementos que, na visão da antiga jornalista, estão em falta na Europa dos dias de hoje, e que poderiam ser fundamentais na resolução de problemas atuais – como é o caso da crise na Ucrânia, o primeiro teste “pós-Merkel” que Vladimir Putin está a executar.

Foi na então República Democrática Alemã que Angela Merkel deu os primeiros passos. No seio de uma família religiosa e conservadora, manteve sempre uma relação fria com o pai, pastor da Igreja Luterana, que não priorizava os laços familiares. Mal sabia que a rigidez e a racionalidade que observava no progenitor – socialista convicto que nunca votara no partido da filha – viriam a ser a base da mulher em que se tornou. “Estes traços de personalidade foram fundamentais para que mais tarde tivesse capacidade para enfrentar diversos líderes com quem teve de negociar”, diz Kati Marton, que em conversas com a antiga líder conseguiu captar um lado mais divertido e prático.

O pensamento crítico sempre foi a sua maior arma e foi assim que triunfou ao longo da vida. Ao entrar na universidade, optou por ingressar em Física. Contudo, anos depois de trabalhar como investigadora em Berlim, percebeu que, afinal, nem tudo o que parece é. Merkel idealizou uma vida passada dentro de um laboratório, mas acabou na bancada do Bundestag, o Parlamento alemão. A entrada no Mundo da política não foi, porém, tão fácil como esperava. “Num universo de homens teve dificuldade em afirmar-se, mas a preparação que demonstrou ter foi essencial”, recorda a biógrafa, que exalta o facto de a ex-chanceler ter feito história “a triplicar” quando foi eleita. “Além de ser a primeira mulher a assumir o cargo, tinha sido cientista e a sua infância e juventude tinham sido passadas na Alemanha de leste.”

Um vazio difícil de preencher

Quando, em 2005, foi eleita como oitava chanceler da Alemanha, Merkel contou com a presença dos pais e dos dois irmãos na cerimónia de tomada de posse. Sentados a observar a nova líder, os quatro não mostraram qualquer tipo de emoção – algo a que Angela já estava habituada e que de certa forma não a magoava. O ambiente pouco sentimental no seio familiar não lhe tirava o sono e os verdadeiros desafios, esses, ainda estavam por vir. Dentro e fora da Alemanha, Merkel tornou-se num peão político de peso no núcleo da comunidade internacional, e só com uma mão de ferro conseguiu negociar com alguns dos líderes mais exigentes do Mundo.

Num universo de homens, Merkel teve dificuldade em afirmar-se, mas acabou por vingar e ser respeitada
(Foto: Dmitry Astakhov/EPA)

Foi com Putin que manteve a mais longa relação política, mas também a mais desafiante. Ambos tinham formas muito diferentes de ver o Mundo. Porém, Merkel sempre teve o dom da palavra. E foi assim que, em situações mais sensíveis, conseguiu que o líder do Kremlin lhe desse ouvidos. “A Angela tinha uma técnica muito especial para lidar com ele, e essa forma de se fazer ouvir acabou por ser fundamental em 2014, altura em que a Rússia começou a atacar a Ucrânia”, destaca Kati Marton. A capacidade de persuasão de Merkel foi fundamental nesse contexto. Mas não só.

Aos 15 anos, venceu as Olimpíadas da língua russa, conquistando a oportunidade de viajar pela primeira vez para fora do país. O destino, Moscovo, parecia um prenúncio do que o futuro lhe reservava. Desde muito cedo que dominava o idioma e, durante a sua liderança, foi um trunfo que usou para atingir algumas metas políticas. As conversas com Putin eram iniciadas em russo e só depois passavam para alemão – o presidente da Rússia domina perfeitamente a língua germânica, já que no passado teve de a aprender para ser agente da KGB -, o que criava um ambiente bem mais familiar entre ambos e geralmente chegavam a bom porto.

Perante a crise entre a Rússia e a Ucrânia, Merkel assumiu, nos últimos anos, um papel mediador na região leste da Europa. No ano passado, a sua missão chegou ao fim, mas os desafios continuam e a ameaça de um ataque militar nunca esteve tão presente. Num momento em que o Ocidente teme uma invasão russa a Kiev, a presença conciliadora da antiga chanceler já se faz sentir? “Sim”, responde convictamente Kati Marton. “A sua ausência vai ser difícil de colmatar. Merkel era vista como uma pessoa com capacidade de unir as diferenças e Putin respeitava a sua visão. Nos dias de hoje, o líder de Moscovo está a testar a Europa e os EUA. Se Merkel ainda estivesse no campo político, talvez a tensão entre os dois países não tivesse chegado a este ponto de fricção.” Kati Marton frisa que o caminho da negociação sempre foi prioritário para Merkel. E que o facto de ter “um conhecimento profundo sobre os problemas” a ajudou a interpelar os rivais através de uma “maneira muito eficaz de comunicar”. Capacidades que, segundo a escritora, não se encontram nos atuais líderes europeus e que poderão dificultar a concretização de um entendimento.

A “mãe” da Alemanha

O segredo do sucesso, no fundo, é simples de desmistificar. A autora, que também já foi correspondente da ABC News, explica que a palavra de ordem que acompanhou o percurso da líder foi “preparação”. Antes de discutir qualquer assunto com outros políticos, aquela que já havia sido uma metódica cientista privilegiava saber mais sobre os temas, para estar “um passo frente”. Foi essa máxima que também adotou na altura de enfrentar Donald Trump. Antes do primeiro encontro com o então recém-eleito presidente dos EUA, “captou alguns dos seus traços de personalidade através da visualização de programas de televisão” nos quais o magnata era presença recorrente. Trump era outro líder com o qual Merkel não se identificava. Nunca foi adepta de grandes discursos, muito menos de falar mal dos adversários políticos. Já o republicano adotava essas estratégias. E foi por rapidamente perceber isso que a chanceler “analisou as melhores técnicas para lidar com o presidente americano. Merkel preparou-se bem para o primeiro encontro e a verdade é que, a partir daí e ao longo dos quatros anos, Trump sempre a respeitou, tendo-a como a verdadeira líder da Europa”.

A capa do livro de Kati Marton, obra que em Portugal tem o carimbo da Desassossego
(Foto: DR)

O sentimento de que Merkel era a figura central da política europeia era sentido do outro lado do Atlântico, mas muito antes de isso acontecer já era assim reconhecida pela opinião pública germânica. Conhecida como a “mãe” da Alemanha, a chanceler sempre foi adorada pelos alemães. Era comum vê-la a fazer compras nos supermercados do bairro onde mora. E foi este lado “normal” que a foi aproximando das pessoas e a manteve no poder. No entanto, como qualquer outro líder, também Merkel foi alvo de duras críticas.

O lado humanista

O ponto mais difícil do percurso que trilhou terá sido quando resolveu abrir as portas do país para receber milhares de migrantes. “A questão que lhe trouxe mais dissabores foi a crise de refugiados. Nessa altura, tentou fazer da Alemanha o centro moral da Europa”, sublinha Kati Marton. O descontentamento da população para com a política de refugiados fez com que os ideais de extrema-direita começassem a ganhar fôlego num país extremamente ferido pela falta de aceitação pelas diferenças étnicas. Mas o passado encarregou-se de ensinar grandes lições que a chanceler nunca esqueceu. O lado humanista veio ao de cima e, apesar de muitas das vezes lhe apontarem o dedo pela abertura aos migrantes, foi pela mão da guardiã alemã que a União Europeia começou a ver com outros olhos um dos maiores desafios do século XXI. Apesar das ondas controversas, a missão foi bem-sucedida, e disso se orgulham os alemães, sobretudo porque pela primeira vez estavam do lado certo da História.

Questionada sobre o que considera ser o momento em que Merkel esteve menos bem, a autora da biografia lançada no início de fevereiro pela Desassossego mostra-se crítica em relação à conduta que a chanceler escolheu para auxiliar a Europa na altura da crise financeira. “Neste contexto condeno a posição que adotou. Acho que priorizou muito os interesses da Alemanha e não olhou minuciosamente para outros países, como foi o caso de Portugal.” A postura austera fez com que muitos europeus não a vissem com bons olhos. Ainda assim, ressalva Kati Marton, o mais importante a retirar desse período “é que Angela teve a capacidade de aprender com alguns erros e andar para a frente através do seu sentido dogmático”.

Kati Marton descobriu, nas conversas que teve com Merkel, uma mulher divertida
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Com 16 anos de bagagem política, a chanceler decidiu colocar um ponto final no percurso brilhante que alicerçou. O ano de 2021 ficará marcado pelo encerramento de um capítulo, mas, mais do que isso, ficará marcado pela liberdade. “É a primeira vez na vida que se sente verdadeiramente livre”, assegura Kati Marton. Além de ter vivido mais de 30 anos na Alemanha de leste, esteve muito tempo na ribalta, embora sempre tenha prezado a privacidade. “Agora que saiu de cena vai aproveitar para viver a vida como um alemão comum. Quer estar em silêncio.”

Contudo, o período de introspeção não será duradouro. Merkel é uma mulher de causas, e são essas que a movem. Depois de tudo o que fez pela unificação da Europa, mostra-se preocupada com o futuro. Assim, é provável que se empenhe em melhorá-lo para as novas gerações. E esse contributo certamente irá passar pela luta pelos direitos das mulheres, com foco em África, adianta a biógrafa. Embora nunca o tenha gritado ao Mundo, Merkel é feminista. E foi a força e o poder das mulheres que a sustentaram enquanto líder. Não é por acaso que em adolescente se inspirou nos livros de Marie Curie para aprender mais sobre ciência. Posteriormente, foi Catarina, a Grande que a motivou, ou não tivesse um retrato da imperatriz russa na secretária do gabinete que a acolheu. Agora, aos 67 anos, e ao contrário da mulher que admira, vai viver uma vida “sem luxos, sem palácios ou iates”, priorizando apenas “as coisas simples da vida”.