Cristiano e António têm cancros metastizados. mas integraram ensaios clínicos inovadores e o filme virou. Vera e Filomena têm cancro da mama e habituaram-se a viver um dia de cada vez. Dão graças às terapêuticas recentes que lhes permitem um prognóstico mais risonho. São histórias dentro de uma história maior: a vanguarda da luta contra o cancro.
Há momentos em que o choque é tal que o cérebro adormece, o coração desliga, parece só um filme a que assistimos de fora, incapazes de processar a realidade. Para Cristiano Anastácio, 31 anos, esse dia foi em maio de 2020, quando recebeu um telefonema do hospital a pedir que se apresentasse para colocar o cateter central e começar a quimioterapia. “Até aí não sabia que tinha cancro. Mas na altura limitei-me a aceitar, não tive grande reação, nem pensei bem naquilo, não chorei nem nada. Acho que só me caiu a ficha quando cheguei a casa e contei à minha namorada.” Aí chorou. Mas por pouco tempo. “Fiquei mais confuso do que assustado. Sabia que tinha casos de cancro na família, mas nunca me preocupei com isso, nem sequer ligava, tinha muito pouca informação sobre o assunto.” E ainda assim o cancro apanhou-o em cheio, foi direto ao pâncreas e estendeu-se ao fígado, tinha ele 29 anos e a leveza própria da juventude. A história começara meses antes, Cristiano percebe hoje que apagou as partes mais duras do processo, mas desta ainda se lembra bem. Estávamos no início de 2020, ele, que era encarregado de uma empresa de engenharia, andava ali pelo Palácio da Pena, lembra-se que ao almoço comeram uma “feijoada bem gorda”. O incómodo veio depois, estava inchado até mais não, sentia-se incapaz de fazer a digestão, tentou esticar-se um bocado a ver se ajudava, mas não resultou, ainda foi à farmácia comprar qualquer coisa, mas as melhoras continuavam a ser curtas.
Chegou a ir um médico particular, falou-se de pedra na vesícula, Cristiano começou a fazer medicação e a apostar em comidas mais ligeiras e saudáveis. Mas a sensação de enfartamento andava sempre ali, teimosamente a aborrecê-lo. Às tantas, começou a notar que a urina estava mais escura. E então resolveu ir ao hospital da Figueira da Foz. Mas o diagnóstico ficou-se por “stresse e ansiedade”. E ele foi-se embora conformado. Já a estranheza prolongou-se no tempo. Até que no domingo de Páscoa comentou com um amigo aquele mal-estar e ele insistiu tanto para ir às urgências que no dia seguinte lá estava. Desta vez em Coimbra. E desta vez por quatro semanas. “Fizeram-me exames atrás de exames. Só biopsias foram quatro. E fui operado, porque tinha um nódulo a esmagar a via biliar e tiveram de me pôr uma prótese. Mas vim para casa sem saber exatamente o que tinha. Só mais tarde é que comecei a juntar as peças e a perceber que já havia sinais. Porque fazerem-me uma PET [exame frequentemente usado para perceber se há metástases] não podia ser bom sinal.” Dias depois, veio o telefonema, o anúncio do cateter e da quimio, o cérebro a congelar e ele a sentir-se espectador naquele filme.
Começou os tratamentos, já fez tantos que lhes perdeu a conta, mas lembra-se bem que foram muito duros, agora que olha para trás acha que tem andado desde então em piloto automático. Em duas ocasiões, ainda tentaram operá-lo – “a segunda, no privado, foi mais por insistência minha”, esclarece -, sem sucesso. “Abriram e voltaram a fechar porque já tinha metástases.” E então arrastou-se no calvário dos ciclos de quimio, literalmente até não poder mais. “No fim do ano passado, disseram-me que já não havia muito a fazer [em termos de tratamentos convencionais]. Mas que havia a hipótese de um tratamento experimental no IPO do Porto. Não me lembro exatamente o que me disseram. Sei que me explicaram que a ideia era pôr o corpo a defender-se por ele.” Cristiano ainda hesitou. “Disse que depois dava a resposta. Porque nunca tinha ouvido falar naquilo. Mas percebi logo que não tinha grandes alternativas.” E então avançou destemido. Quase um ano depois, tem motivos para sorrir. As células cancerígenas não só não continuaram a reproduzir-se, como registaram uma redução superior a 50%. “Sempre fui otimista, mesmo nas fases mais negras, mas este tratamento ajudou-me a ver a luz ao fundo do túnel. Tento levar isto de forma descontraída e fazer a minha vida normal. Levanto-me sempre cedo, faço arrumações, vou a casa dos meus pais, estou com os amigos, volta e meia corro ao fim do do dia. Muitas vezes até me esqueço que tenho cancro.”
E que procedimento é este? Em traços gerais, trata-se de um tratamento dirigido, após estudo de biomarcadores, integrado numa ensaio clínico de fase precoce. Vamos por partes. Primeiro, importa perceber a própria génese da doença. O cancro nasce quando genes específicos em células saudáveis sofrem mutações, provocando uma divisão celular anormal ou uma morte celular retardada que faz com que as células cresçam descontroladamente. E eis que se forma o tumor. No caso de Cristiano, um estudo de Next Generation Sequencing – uma ferramenta de sequenciação genética – permitiu perceber a alteração genética em causa (os tais biomarcadores) e dirigir um medicamento especificamente à proteína danificada, bloqueando-a. “Isto faz com que esta pare de crescer, induzindo a morte das células cancerígenas”, explica Júlio Oliveira, médico oncologista e desde setembro presidente do IPO do Porto. Cristiano é um dos doentes que beneficiou do programa de Medicina de Precisão desta unidade hospitalar, lançado em maio de 2021 numa lógica de tratamento mais personalizado. “O conhecimento da biologia dos tumores tem permitido que os medicamentos sejam cada vez mais dirigidos, havendo a priori uma expectativa de obter maior benefício e se reduzirem os efeitos adversos.” Não é tanto a patologia que conta – isto é, se falamos de um cancro do pulmão, do pâncreas, do estômago -, mas os tais biomarcadores específicos. “Cada tumor é único”, enfatiza Júlio Oliveira.
Há muito que o IPO do Porto está na vanguarda da luta contra o cancro, acolhendo um sem-fim de ensaios clínicos. Para se ter uma moção, só neste momento estão ativos mais de 140. E todos os anos são incluídos nestes ensaios mais de 330 doentes. António Henrique Almeida, famalicense de 62 anos, também entra nestas contas. Em 2020, foi diagnosticado com um carcinoma do pulmão e viu a vida e estreitar-se. “Já uns cinco anos antes me tinha queixado ao médico de família de uma dor nas costas. Mas na altura ele apontou para algo muscular. E como eu trabalhei muitos anos na construção civil convenci-me que poderia ter a ver com isso.” Só que as dores foram-se intensificando, sobretudo junto à anca. E então António voltou à carga. “Em junho de 2020, lá fiz mais exames e acabei por perceber que tinha um nódulo no pulmão direito.” Que na verdade era cancro e até já estava metastizado no ilíaco (junção de ossos na zona da bacia), daí as dores na anca. “A primeira reação foi de susto”, reconhece António. De frustração também. Até porque já tinha deixado de fumar há uma vida. “Possivelmente teve a ver com o facto de ter trabalhado tantos anos na construção civil, com o pó, com os diluentes e produtos abrasivos.”
Nos primeiros dias, ainda foi para casa mais cabisbaixo, mais introspetivo, temeroso com o que aí vinha. Mas rapidamente mudou o chip. “O meu médico fez-me ver que, com os tratamentos que existem hoje, podia durar mais 10, 20, até 30 anos. Enchi-me de fé e de esperança e comecei a pensar: ‘Mas para que é que estou assim?’ Agora até me esqueço que tenho este problema.” António di-lo com incontido entusiasmo. Começou por fazer imunoterapia, mas o corpo não gostou. Teve febre, dores, tonturas. Acabou por parar. Foi então que lhe foi proposto um tratamento experimental, mais concretamente a participação num ensaio de fase I. “O médico disse que, com aquele tratamento, havia fortes possibilidades de fazer parar o cancro e eu aceitei sem hesitar”, orgulha-se. “O doutor ainda me sugeriu que levasse uns folhetos para ler e para pensar no assunto, mas eu disse logo que não era preciso, que aceitava. Acredito plenamente na medicina e na ciência.” Começou então a fazer, de 15 em 15 dias, um medicamento dirigido por um biomarcador, neste caso uma proteína específica (CEACAM), que só cerca de um quinto dos doentes com cancro do pulmão apresentam. E não podia estar mais satisfeito. “Os resultados mostram que o cancro está adormecido, que até regrediu um bocadinho. Ando aqui porreirinho da vida”, atira, sempre bem-disposto. Falta de ar não tem. Só quando corre ou sobe escadas é que a anca dá sinal. Por isso, parou com o exercício físico mais vigoroso, ele que sempre foi de ir ao ginásio. Mas não se queixa. “Continuo a fazer as minhas caminhadas. E entretenho-me aqui em casa na minha hortinha. Acho que isto até fez com que desse mais valor à vida. Antes andava sempre chateado com o trabalho, agora não [reformou-se por invalidez], até tenho mais vontade de viver.” Até quando? “Olhe, eu espero chegar aos 100”, responde, com graça. António é outro caso de sucesso com terapias-alvo, assim designadas por atacarem especificamente as células cancerígenas, provocando pouco dano às células normais
Também António Parreira, diretor clínico do Centro Clínico Champalimaud, releva a importância crescente das “terapêuticas personalizadas”. Mas lança outros tópicos para a discussão. “Há décadas que o tratamento do cancro assenta em três pilares: a cirurgia, a quimioterapia, a radioterapia. Nestes últimos anos, mercê do conhecimento científico, há um novo elemento que, pela sua importância crescente em todos os tipos de cancro, pode já ser considerado um quarto pilar: a imunoterapia.” Um tratamento que ajuda a estimular as defesas naturais do corpo para combater o cancro. É certo que o conceito não é novo. Mas ganhou fôlego redobrado com o trabalho do americano James P. Allison e do japonês Tasuku Honjo, que, através dos chamados “imune checkpoint antibodies”, descobriram novas formas de bloquear os travões do nosso sistema imunitário. A descoberta valeu-lhes, em 2018, o Prémio Nobel da Medicina, por se tratar de “um novo paradigma na luta contra o cancro”, considerou, na altura, o comité do Nobel. No fundo, a descoberta abriu caminho para que “as células imunitárias de um doente sejam capazes de voltar a reconhecer como anormais as células do cancro”.
“Doença crónica”
Vera Almeida, 37 anos, natural de Évora, é uma das doentes a quem a descoberta de Allison e Honjo veio dar esperança. No início do verão, começou a emagrecer, mas não valorizou. Nem tinha por hábito fazer a apalpação. “E sendo médica [pediatra] deveria facilmente identificar fatores de risco”, diz, como que numa autorrecriminação. Um dia, por acaso, sentiu um alto no peito e ficou alerta. A princípio, ainda se convenceu que podia ser algo passageiro. Mas dias depois o nódulo continuava lá. E afinal eram dois, bem grandes. Contactou uma amiga oncologista, marcaram os exames, por estar na profissão acabou por conseguir que tudo andasse à velocidade da luz. Dias depois, chegava o resultado provisório da biopsia, a apontar para um tumor maligno. O resultado definitivo seria ainda mais preocupante: triplo negativo. “É um cancro que não tem recetores hormonais. Normalmente é mais agressivo e tem pior prognóstico”, pormenoriza, com o know-how de quem está bem por dentro do assunto. A fé na ciência, que está subjacente à profissão que escolheu, serve-lhe de âncora, mas não a deixa a salvo das angústias. “É um mix. Porque tenho um historial grande de tumores malignos na família e todos os casos têm tido um desfecho mau. Mas pensei: ‘Vamos lutar, bola para a frente.’ Depois, fui ler e fiquei mais preocupada porque percebi que o prognóstico neste cancro é pior”, reconhece, desassombrada. Conclusão: chorou durante um dia, depois fez-se à luta.
Foi à Champalimaud e puseram-lhe as cartas em cima da mesa. Teria de fazer quimioterapia sequencial, 12 ciclos pelo menos. Como complemento, foi-lhe proposta uma forma de imunoterapia já aprovada pela americana FDA (Food and Drug Administration) e pela EMA (Agência Europeia de Medicamentos), mas ainda sem o aval do Infarmed para este tipo de cancro em particular – cancro da mama localmente avançado, com alto risco de recorrência, entenda-se. “O meu cancro não tem metástases, mas há uma invasão dos gânglios da axila, daí ser considerado localmente avançado. E este tratamento [com pembrolizumab], que já está aprovado para vários tipos de tumores, nomeadamente os que estão metastizados, faz diferença ao nível da resposta à quimioterapia. Aumenta a eficácia e diminui consideravelmente a taxa de eventos desfavoráveis a longo prazo.” Por isso, Vera acenou afirmativamente. O senão é que, por o tratamento não ter ainda sido aprovado pelo Infarmed para este tipo de cancro, não há qualquer tipo de comparticipação. “São seis mil euros a cada três semanas, num total de 17 sessões. Dá perto de cem mil euros”, lamenta Vera, que para aumentar as hipóteses de ter uma vida longa teve até de hipotecar a casa. Resta-lhe a esperança de que o tratamento possa vir a ser financiado ao abrigo do programa de acesso precoce a medicamentos (PAP). A primeira tentativa saiu gorada, com o Infarmed a argumentar que havia alternativas e a situação não comportava risco imediato de vida, mas Vera promete voltar à carga. E não tem dúvidas quanto ao efeito transformador e inspirador destas terapêuticas inovadoras, que, com o tempo, têm ajudado a desconstruir o pavor da doença. “Sem dúvida que a forma como olhamos para o cancro tem mudado. É cada vez mais uma doença crónica.”
António Parreira, do Centro Clínico Champalimaud, aponta ainda outras áreas em que a evolução tem sido gritante, contribuindo para a mudança de paradigma. Ao nível da cirurgia, por exemplo. “Há cada vez mais novas modalidades, mais simples e minimamente invasivas, que são dirigidas essencialmente ao tumor, com preservação das estruturas. Antigamente, as operações eram muito mais amputadoras. Hoje já há cirurgias laparoscópicas, feitas através de robôs, em que se usa uma consola com uma espécie de joysticks para operar. Isto permite operar com grande precisão e com possibilidade de visão do campo tumoral muito mais correta.” Destaca ainda o número crescente de cirurgias em regime de ambulatório, que provocam menos dor e permitem ao doente regressar à sua “vida normal”. Os avanços são também colossais ao nível da radioterapia. “Nos últimos 10, 15 anos, houve um enorme progresso. Temos hoje ao dispor equipamentos sofisticados que permitem aplicar uma radiação estereotáxica, com um grau de precisão muito maior. Para se ter uma noção, há já certos tipos de cancro em que basta fazer uma sessão de radioterapia. São quatro ou cinco minutos e o doente tem o tratamento finalizado.”
Microambiente e comunicação celular
A propósito, Júlio Oliveira, do IPO do Porto, salienta ainda a importância dos radiofármacos. No fundo, medicamentos radioativos que vão libertar radiação de forma mais seletiva e dirigida. “Neste campo, fomos o segundo centro a nível mundial a abrir um ensaio e o primeiro a incluir um doente”, assinala. E, de resto, que outras estratégias inovadoras temos atualmente ao dispor para o combate o cancro? O oncologista lembra o recurso às “células CAR-T”, que atualmente já são usadas para tratar linfomas e doenças de sangue e se espera que se possam vir a aplicar aos tumores sólidos. Mas também os anticorpos biespecíficos (que estimulam o sistema imunitário de forma mais eficaz para reconhecer e destruir células tumorais). Ou os vírus oncolíticos, em que são utilizados “vírus manipulados” de forma a serem mais seletivos, para entrarem nas células tumorais e promoverem a sua destruição”. E há ainda os conjugados de anticorpos com agentes de quimioterapia. “Que consistem em dirigir anticorpos, carregados com quimioterapia, a alvos específicos.” Quase como mísseis teleguiados. Ou até as vacinas MRNA. “Que procuram estimular o sistema imunitário para identificar as células tumorais como estranhas e destruí-las.” Note-se que algumas destas estratégias se enquadram numa lógica de medicina de precisão, já mencionada. O presidente do IPO do Porto ressalva, no entanto, que “estas inovações ainda não são a cura para o cancro”. E que as terapêuticas convencionais continuam a ser “muito importantes”. Lembra ainda que a inovação assume múltiplas formas. E que pode passar pelo desenho dos próprios ensaios, por exemplo. Ou até pela conjugação de terapêuticas, numa perspetiva de potenciar resultados.
É aí que reside uma boa parte da fé de Filomena Sá, 56 anos. Desembrulhar a história desta transmontana, que há uma vida se fez portuense, implica recuar uma porrada de anos, até 2006. Filomena tem os detalhes daqueles dias gravados a tinta permanente. “Senti que tinha qualquer coisa a mais e liguei logo ao meu ginecologista. Dois meses antes tinha feito exames e estava tudo bem, mas eu sou muito de feelings e percebi logo que algo se passava. Ele disse-me muito descontraído: ‘Quer ver que tem aí algum cancro.’ E eu respondi: ‘Não brinque, que eu acho que é mesmo.’ A voz treme-lhe quando recua àqueles dias de agruras. “Eu sentia ali alguma coisa a crescer, um bicho a mexer-se, não sei explicar, mas sentia mesmo repulsa.” Só que a primeira biopsia veio inconclusiva. E, portanto, fez uma primeira cirurgia, não invasiva e bastante simples, só para retirar o nódulo. “Só que o resultado da anatomia patológica foi o que eu achava.” E passado sete dias o cirurgião estava a ligar-lhe, a dar conta de que teriam de voltar ao bloco. Mastectomia, quimioterapia, hormonoterapia, uma cirurgia plástica que teve de ser repetida, até ter por fim “alta”, ao fim de cinco anos. E assim passou anos tranquila, sem pensar sequer que a doença pudesse voltar a bater-lhe à porta.
Até que, num exame de rotina, o pesadelo lhe voltou a cair no colo num rompante. “O radiologista disse-me ‘tem aqui uma coisa muito feia’ e saiu. E eu fiquei ali a olhar, sinceramente pensei que ele estava louco, não achei aquilo nada credível. Mas, afinal, aquele médico acabou por ser o meu primeiro anjo da guarda.” Quando voltou, já trazia um post-it com uma série de nomes e contactos. “E obrigou-me a marcar uma consulta, porque disse-me logo que era grave. Foi mesmo taxativo.” Então o processo desencadeou-se outra vez. E os exames confirmaram o pior cenário. Tinha outra vez cancro, outra vez no lado esquerdo, apesar da mastectomia que tinha feito. “E a coisa já estava feia.” A prova foi que a cirurgia assumiu contornos de uma “mastectomia radical”. “Tiraram-me pele, o mamilo, fizeram o esvaziamento axilar, removeram-me 20 gânglios. E 18 estavam positivos. Foi uma cirurgia tremenda, avassaladora.” Filomena prossegue num tom aqui e ali titubeante, como quem tenta, a cada memória, recompor-se dos golpes. Ficavam ainda a faltar os tratamentos. Quimioterapia, radioterapia, depois hormonoterapia. E ainda a sugestão de integrar um ensaio clínico do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, com uma terapêutica baseada em moléculas inovadoras, que tem por objetivo principal diminuir o risco de recidivas. Ou mais uma razão para encarar o futuro com otimismo. “Sou-lhe sincera. Da primeira vez, chorei baba e ranho, fui-me muito abaixo. Desta vez preparei-me para tudo. Mas acredito muito na ciência. Confio mesmo, assim de olhos fechados.”
E as perspetivas do futuro nesta área parecem ajudar. José Carlos Machado, membro da direção do i3S e líder do grupo de investigação “Intercellular Communication and Cancer”, explica o que está na calha. “Até agora, tudo o que é clinicamente relevante continua a ser feito sobre a célula tumoral. E eu acho que a grande revolução que aí vem tem a ver com a interação entre a célula tumoral e o microambiente tumoral (os vasos sanguíneos, o tecido, as células do sistema imunológico). O grande passo que se vai dar num futuro próximo é começar a tentar atacar o cancro criando desequilíbrios no seu tecido de suporte. Isto será uma mudança de paradigma.” Uma perspetiva que se cruza com uma outra, relacionada com a comunicação celular. “As células falam umas com as outras, literalmente. Essa comunicação dá grande plasticidade aos cancros e faz com que as células tumorais tenham um recurso extra para sobreviver. Basta ver que 20 pessoas ao frio sobrevivem muito melhor do que uma sozinha. Esta lógica de cooperação entre células tumorais e células de suporte é uma realidade. A ideia será tentar, farmacologicamente, perturbar esta comunicação. Ou destruir o tecido de suporte.” E isto serão inovações para serem palpáveis daqui a quanto tempo? “Acredito que este tipo de soluções possa chegar ao terreno num período de cinco anos. Temos de ver que o cancro começou a ser estudado mais a sério no início dos anos 1970, mas que os primeiros 30 anos foram basicamente académicos. Desde então, tem havido um ‘boost’ ao nível das terapias.” E tudo aponta para que a tendência se exponencie. A esperança também.