A bofetada que derrubou os Oscars

Will Smith não gostou de uma piada sobre a mulher e agrediu Chris Rock, o humorista e apresentador da cerimónia. A gala ficou manchada, as estatuetas passaram para segundo plano. Nem o choro e os pedidos de desculpa que se seguiram apagam a nódoa na reputação do consagrado ator. A Academia promete consequências. Só o tempo revelará a dimensão do estrago.

Parece tirado de um filme, mas foi bem a sério. A cena que Will Smith protagonizou, na madrugada de segunda-feira, na cerimónia dos Oscars, vai certamente ter sequelas. Quando o ator subiu ao palco e deu uma bofetada ao apresentador e humorista Chris Rock, por este ter dito que mal podia esperar para ver a mulher de Will Smith a fazer de G.I. Jane 2, numa alusão ao facto de ela ter rapado o cabelo, todos ficaram surpresos. Não reagiram e pouco depois batiam palmas, quando o mesmo ator voltou a subir ao palco para receber um Oscar pela interpretação em “King Richard: criando campeãs”, aproveitando a ocasião para pedir desculpa a todos, exceto ao agredido.

Fora do palco, houve quem tenha inicialmente elogiado a defesa da mulher, mas logo o coro esmoreceu e a condenação da violência ganhou peso. A piada em si até foi “previsível, primária e pouco artística”, diz à “Notícias Magazine” Herman José. Ao contrário da reação de Will Smith, que foi “pura e simplesmente criminosa”.

Foi “fraca”, considera também o humorista Fernando Rocha, condenando de igual forma a violência. Will Smith “esteve mal em todos os aspetos e não há perdão nem desculpa. Nem o discurso a seguir faz sentido, nem o recebimento do prémio faz sentido”. “Não há justificação para aquela reação, diga ele o que disser. Proteger a mulher ou a namorada…não faz sentido.”

Para Ricardo Araújo Pereira, tudo se resume a uma questão: “Os outros podem dizer coisas que nós não gostamos de ouvir? Eu acho que sim. É um pequeno preço a pagar para viver em liberdade. Nos regimes em que só se ouvem coisas bonitas, paga-se um preço bastante mais alto”.

“A liberdade de expressão não é absoluta, mas tendencialmente deve ser o mais ampla possível, mesmo que haja pessoas que digam coisas inconvenientes”, refere Vânia Costa Ramos, presidente do Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas, sublinhando que não se pode esquecer o contexto em que a piada foi pronunciada e que, numa primeira análise, não lhe parece ter “qualquer relevância criminal”.

Se a bofetada tivesse acontecido em Portugal, seria enquadrada como crime de ofensa à integridade física simples, tendo o agredido até seis meses para apresentar queixa. Os palavrões que Will Smith proferiu em seguida poderiam constituir crime de injúria.

No rescaldo, Chris Rock deu a entender que não iria apresentar queixa e veio explicar que nem sabia que a mulher de Will Smith, Jada Pinkett Smith, sofre de alopecia areata, uma doença autoimune que causa perda repentina de cabelo ou de pelos do corpo. Mas a imagem não era nova. Jada já havia falado publicamente sobre o problema em 2018 e rapou o cabelo em 2021.

A mulher de Will Smith sofre de alopecia. Chris Rock aproveitou-se da doença que causa perda repentina de cabelo para sugerir que Jada poderia protagonizar “G.I. Jane 2”

Neste tipo de doenças, o organismo “produz anticorpos que vão destruir os cabelos”, podendo ter várias causas e ser localizada ou generalizada, explica a médica Rita Guedes, do Grupo Português de Tricologia da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia. Nos Estados Unidos, alguns estudos estimam que atinja 4,5 milhões de pessoas.

A doença “implica uma alteração da aparência física” e esta é uma “dimensão muito importante da autoestima”, realça a psicóloga Rute Agulhas. Os familiares e pessoas próximas também podem ser afetados e “experienciar mal-estar e sofrimento em relação à situação”. Contudo, a reação de Will Smith, reconhece a psicóloga, é “desajustada” e não se pode legitimar a violência como forma de resolução do problema, mesmo que não se goste da piada. Surpreendente para a psicóloga também foi o facto de as pessoas na sala terem “ficado em silêncio” e, “passado um bocadinho, aplaudirem essa mesma pessoa”, quando o ator subiu ao palco para receber o Oscar.

“Estamos todos a debater a questão da guerra (por causa da ofensiva da Rússia na Ucrânia) e da importância da paz, mas depois, no dia a dia, vemos estas situações e somos passivos”, lamenta Rute Agulhas, acrescentando que este tipo de passividade vai permitindo que outras situações de violência, nomeadamente familiares, “se mantenham” e se “legitime a violência como forma de resolução de problemas”. Ter acontecido com alguém que, para muitas pessoas, era visto como um “modelo”, torna ainda mais grave o sucedido.

Quando subiu ao palco para receber o Oscar, Will Smith aproveitou a ocasião para pedir desculpa a todos, exceto ao agredido
(Foto: Etienne Laurent/EPA)

A Academia de Cinema dos Estados Unidos condenou, poucas horas depois, a agressão e adiantou, em comunicado, que vai “analisar” o caso e considerar “ações e consequências”, tendo em conta os padrões de conduta e a lei da Califórnia. Não especificou quais.

Tiago Froufe, da agência de comunicação Luvin, não tem dúvidas que a situação mancha a reputação de um “ator consagrado” e irá “perseguir” Will Smith no futuro. “Acaba por se virar contra ele, porque perde a reputação e o reconhecimento que teve e foi adquirindo ao longo dos anos, o que será bastante negativo no seu percurso”. É um momento que “o perseguirá e que será constrangedor ao longo da carreira”. Não “eliminará por completo o seu percurso e o que nos deixou”, mas altera a “perceção do público”, pois existirá “sempre este histórico”.

O próximo desafio será “como dar a volta a isto”. Não será, pondera Tiago Froufe, a fazer um pedido público de desculpas a Chris Rock nas redes sociais e depois bloquear comentários, como aconteceu. Foi “uma péssima jogada” pedir desculpa e “depois não ter o poder de encaixe para receber os comentários”. Não é assim que se sai disto. “Agora, só o tempo o dirá.”

Mário Augusto, jornalista que há anos acompanha o mundo de Hollywood e as cerimónias dos Oscars, acredita que o ator irá ter de “passar por um processo de limpeza de imagem, porque, apesar de ter dividido muito a opinião, a condenação coletiva sobre a reação no momento acaba por ser negativa”.

A consternação no final da festa dos Oscars era grande. Aquele momento “contraria uma festa que é tão padronizada e controlada” e “baralha tudo”. Will Smith já veio pedir desculpa a Chris Rock, até porque “tem os conselheiros de marketing a dar-lhe as coordenadas”, por forma a tentar minimizar os danos na reputação, que saiu “manchada”.

Na indústria cinematográfica, “na qual as regras são tão equilibradas e tão cheias de parâmetros, esta atitude mostra que nem tudo o que é parece”, adverte ainda Mário Augusto. No caso de Chris e Will, revela, a “guerra” já era de 2016. “Eles tinham umas zangas.”

Os verdadeiros estilhaços da agressão de Will Smith a Chris Rock ainda estão por conhecer
(Foto: Robyn Beck/AFP)

A Academia, frisa o jornalista, “vai ter de tomar uma posição, até para mostrar que não pode admitir tal coisa”. Entre as hipóteses em cima da mesa estará a de suspender Will Smith como membro da Academia, não retirando o Oscar. Quem “ficou mal” foi Will Smith. “E vai sofrer consequências”, conclui Mário Augusto. Ele, “que tinha uma noite bonita para celebrar, com a conquista de um Oscar”.

Chris Rock, que está a fazer uma Tour na América, viu o preço dos bilhetes disparar e esgotarem. Já para Will Smith, os contornos são bem diferentes e as consequências poderão passar por uma certa “rejeição” da figura do ator. Poderá passar, ou atenuar, com o tempo, mas “o estrago está feito”.