Lusitano. A raça portuguesa que está nas bocas do Mundo

Nas veias corre-lhe sangue generoso, é amigo do cavaleiro, e os resultados em competição, como nos Jogos Olímpicos de Tóquio, despertaram ainda mais a procura por este puro-sangue, um dos poucos reconhecidos a nível global. Coudelarias, centros equestres, cavaleiros, turismo - há todo um negócio atrelado ao animal mais internacional do país.

O bisavô Domingos de Sousa Coutinho, que conquistou o bronze para Portugal na modalidade equestre de obstáculos nos Jogos Olímpicos de Berlim, há 85 anos, haveria de estar orgulhoso. Afinal, o recente 16.º lugar em dressage individual, nos Jogos de Tóquio, foi um dos melhores resultados de sempre do país na modalidade, uma vitória também do cavalo lusitano. Foi Rodrigo Torres e o seu Fogoso, de pelo ruço e do alto dos seus 1,72 metros, que o conquistaram.

Mas Fogoso é muito mais do que o cavalo puro-sangue lusitano que Rodrigo levou até ao Japão. O alentejano de gema escolheu o acasalamento entre o pai e a mãe do Fogoso, viu-o nascer, criou-o, montou-o pela primeira vez, treinou-o. É o projeto de uma vida, 11 anos de trabalho, “quase um filho”. E, se puxar a fita atrás, o cavaleiro não se lembra da vida sem cavalos. Nem pode. Cresceu no meio deles, dos lusitanos, da raça portuguesa. A família cria-os há quase 40 anos, o avô materno ensinou-o a montar ainda ele era catraio, o paterno tinha uma coudelaria. Degenerar no amor ao lusitano era difícil. São 10.30 horas, já voltou da capital nipónica, está na coudelaria Torres Vaz Freire, em Alter do Chão, na azáfama dos dias. “Conseguir ir aos Jogos com um cavalo criado por nós é muito especial. Sempre competi com lusitanos.” E já conta 44 anos. Foi aos 17 que deu os primeiros passos na competição, deu logo nas vistas. Pódios atrás de pódios.

E porque é que o cavalo lusitano, o mais antigo de sela do Mundo, é tão especial e salta fronteiras? “Ele quer muito agradar ao cavaleiro, tem uma grande capacidade de concentração e é muito valente”, atira Rodrigo Torres num despacho. A história ligada ao toureio tem dedo na coragem de um cavalo que não sendo tão colossal como outras raças – a média ronda os 1,60 metros – nem extremamente atlético, não vira a cara aos desafios. E entrar numa arena olímpica, carregada de cores novas e de câmaras de televisão por todo o lado, é desafio que baste. É a sua nobreza, generosidade com o cavaleiro, amigabilidade que o tornam tão apetecível. Porque é fácil de montar. Não é por acaso que a exportação representa 65% das vendas das coudelarias nacionais. Já lá iremos.

O cavaleiro Rodrigo Torres viu o seu lusitano Fogoso nascer, criou-o e os dois chegaram aos Jogos Olímpicos
(Foto: Christian Bruna/EPA)

Rodrigo não treina o físico além de montar. O segredo é “respeitar o equilíbrio e não exigir mais do que ele nos pode dar”. Conhece tão bem Fogoso que sabe “exatamente o que ele sente antes da competição, qual é o seu estado anímico”. O grupo investidor Horse Campline acreditou neles, foi isso que tornou possível a ida aos Jogos. “Há gastos enormes em transportar o cavalo e toda a equipa envolvida. Sem eles seria muito mais difícil.” Pode parecer, mas o cavaleiro não vive da competição, vive da criação e da exploração agrícola. Faz contas à vida, entre éguas de ventre, poldros, cavalos em treino, a coudelaria da família tem uns 60 lusitanos. “Vendemos para todo o lado. Portugal, Europa. Para lazer, para praticar equitação clássica, e o lusitano está a afirmar-se cada vez mais na procura para alta competição.”

E nesse campo, Bruno Rente enche o peito de orgulho. “Para estes Jogos Olímpicos, Portugal só levou cavalos lusitanos. Não foi opção, mas eram, de facto, os melhores cavalos que tínhamos, o que tem um caráter emotivo ainda maior”, diz o presidente da Federação Equestre Portuguesa. De olhos muito azuis e sorriso rasgado, Rente sabe que o lusitano está no 6.º lugar de raças no ranking mundial de dressage, mas os resultados em Tóquio, acredita, vão fazê-lo escalar mais ainda. É só ver que, na primeira vez na história em que Portugal participou nos Jogos como equipa na modalidade, arrecadou um diploma olímpico – um feito que juntou Rodrigo Torres, Maria Caetano e João Torrão. Mas não foi só o nosso país a levar lusitanos até à arena japonesa, as seleções do México, Brasil e Espanha também.

Bruno Rente acredita que os resultados em Tóquio 2020 vão levar o lusitano a escalar no ranking mundial das raças
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Entre as nove disciplinas do hipismo, e só três são olímpicas, o lusitano dá-se bem em todas. Já conquistou campeonatos do Mundo em atrelagem ou equitação de trabalho. É polivalente o cavalo português. “E o hipismo é o único desporto binómio em que homem e cavalo recebem uma só pontuação. E o único onde homens e mulheres competem de igual para igual”, sublinha Bruno Rente. Contas feitas, Portugal tem 6500 atletas e 2500 cavalos federados. Nem todos lusitanos, mas uma coisa é certa: a Federação tem trabalhado para desenvolver a raça autóctone portuguesa, com forte aposta no turismo equestre. “Temos eventos internacionais em que somos visitados por mais de oito mil cavaleiros de outros países, que vêm competir, que gostam, e muitos até acabam por se estabelecer cá.”

Da insistência de um filho nasceu um a escola

O amarelo-torrado e o branco pintam as paredes de um picadeiro coberto. Ao longe já se fazem ouvir, no barulho das patas a bater no chão, os cavalos a relinchar. Chegar perto é ver os cavaleiros, erguidos, de costas esticadas a querer tocar o céu. Estamos no Centro Equestre Vale do Lima. A tradição do lusitano que, noutros tempos, morava no Alentejo e Ribatejo saltou para o resto do país a reboque de uma paixão sem-fim. Como é a de Filipe Pimenta, que tanto insistiu para os pais investirem nos cavalos que, há 20 anos, viu nascer este que é um dos centros hípicos de referência a norte, em Ponte de Lima, que hoje dirige. Pelo país, há 225 centros equestres federados. E é ele um dos portugueses que mais tem investido no lusitano e no turismo, com a Feira do Cavalo e outras tantas iniciativas, de que Bruno Rente fala, e que além de cavaleiros e cavalos, trazem tratadores, proprietários, apaixonados que se acumulam só para assistir.

O Centro Equestre Vale do Lima tem alunos dos cinco aos 70 anos e recebe muitos estrangeiros em turismo
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Não é de admirar, quando o assunto é lusitanos o coração sobe-lhe à boca. “É um grande produto nacional. É dócil, de andamentos confortáveis, temperamento equilibrado, uma raça que é boa até para amadores. O nosso cavalo fala só com o olhar. Pode não ter grande porte, mas tem uma personalidade fantástica”, realça Pimenta. Também por isso, ali, dão-se aulas a crianças com patologias e a todos quantos queiram aprender. Uma lição, 40 minutos, custa dez euros. Se forem individuais, com objetivo de competição, o preço aumenta. Conta à volta de 80 alunos, dos cinco aos 70 anos. “Promover este cavalo é promover Portugal, é uma marca portuguesa com muito potencial. E não é algo elitista, como muitos pensam.” Junto ao picadeiro, ouve-se falar inglês, não faltam estrangeiros interessados, turistas a passar cá às semanas só para aprenderem a montar e conhecerem o lusitano.

Atrás dos gigantes portões verdes de chapa, escondem-se as boxes com portas de madeira. Filipe Pimenta guarda 50 cavalos, não os cria, compra a criadores. E a maior parte deles até são de proprietários que ali os deixam para serem treinados. Filipe Barbosa acabou o trabalho, está a lavar o lusitano de pelo ruço à mangueira. Tem 35 anos, é um dos três cavaleiros do centro. Traz botas a bater no joelho, óculos redondos. Cresceu num picadeiro no Porto, onde os pais eram caseiros, e logo começou a montar. Aos dez, já competia e não há muitos anos fez o curso de treinador. “Cheguei a este centro com 18 anos, vim para cá trabalhar.” E por Ponte de Lima ficou, já não dá aulas a crianças, dedica-se a ensinar cavalos e os proprietários.

“Os cavalos vêm para cá com três, quatro anos, que é a fase de começar a trabalhar. Começamos pelo maneio, deixar escovar, ganhar preparação física, obediência, começar a pôr os arreios, as caneleiras e só depois vem o desbaste.” Que é como quem diz começar a montar, a passo, a trote, a galope, um processo que leva meses. E o lusitano tem lugar especial no coração do treinador: “Entrega-se muito bem”.

Pode custar milhões e é muito exportado

Se rebobinarmos a cassete do tempo, como faz o professor António Vicente nas aulas de Equinicultura que dá na Escola Superior Agrária de Santarém, é fácil perceber o temperamento do cavalo português. “É uma raça muito antiga e pensa-se que são montados há mais tempo do que outras raças, que convivem com o homem há mais tempo, por isso é que são mais generosos, executam o que o homem quer. Não são os mais fortes, mas dão tudo o que têm.” Para isso, contribuiu não só o toureio, como as guerras. “Se não fosse o cavalo não estávamos aqui a ter esta conversa, ele foi o motor das civilizações, daí que a potência dos carros seja medida em cavalos.” Por serem tão sociáveis, os lusitanos, é que em Portugal vemos miúdos a montar cavalos, quando noutras partes do Mundo aprendem em póneis. Costuma dizer-se que o cavaleiro pensa e o lusitano executa.

Não é por acaso que é o animal português com mais expressão internacional e um dos quatro produtos do país mais exportados, depois da cortiça, do vinho e do azeite. “Somos uma raça muito pequenina num país muito pequenino mas com expressão mundial. Há cinco mil éguas reprodutoras no Mundo e metade está fora de Portugal.” Para ganharmos tato à dimensão, basta compararmos com a raça hanoveriana, que conta 22 mil éguas reprodutoras e só quatro mil é que estão fora da Alemanha. De um cavalo dócil e ágil nasceu um mercado de criação que, segundo a Associação Portuguesa de Criadores de Cavalo Puro Sangue Lusitano (APSL), tem vindo a fazer crescer o número de nascimentos desde 2016, depois da queda nos anos da crise.

Rui Alves cumpriu o sonho de comprar o seu lusitano Átila em 2019
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Há 350 criadores em Portugal, Alentejo e Ribatejo ainda são reis, mas as coudelarias já estão dispersas, com o Norte a ganhar expressão. António Vicente faz contas às éguas reprodutoras e arrisca: “Diria que temos 35 mil lusitanos no país, de todas as idades e sexos”. E o preço pode variar em função da idade, da cor do pelo, dos olhos, da qualidade funcional, do tamanho. Vai dos milhares de euros por poldros às dezenas de milhares por cavalos já ensinados e o número só pára nos milhões por cavalos de competição. “E há quem não venda cavalos campeões mesmo com cheques em branco, porque o cavalo torna-se família”, enfatiza o especialista doutorado em lusitano.

Na criação, há um mundo por trás a bulir que vai desde veterinários, osteopatas, dentistas a ferradores, tratadores, treinadores. Os cavalos têm de ser registados. É uma raça de livro genealógico fechado, em que não é permitida a entrada de outras raças. Para um cavalo ser registado como lusitano, tem de ser filho de dois lusitanos registados como reprodutores, que são avaliados por juízes. Daí ser um dos poucos puro-sangue no Mundo, tal como o árabe, o inglês ou a pura raça espanhola. “A maioria das outras raças de desporto são livros abertos. Posso ter um cavalo alemão que é filho de um francês e de um holandês. Daí o lusitano ser tão raro”, explica o também juiz internacional da raça. Este método de seleção da genética e a melhoria nos cuidados, nomeadamente na alimentação, têm levado o lusitano a crescer em altura. Já há muitos com mais de 1,70 metros, capazes de ombrear com raças alemãs ou holandesas de alta competição.

Certo é que o interesse internacional tem despertado para lá da Europa. Desde África do Sul à Ásia, da Austrália aos Estados Unidos. Para lazer, competição, hobby. E não só há venda para fora (a exportação representar 65), como “já nasceram lusitanos em 38 países e em 20 desses foram criadas associações estrangeiras de criadores”, segundo João Ralão Duarte, da APSL.

Um criador a dar os primeiros passos

Do lado da rua, a Quinta das Marias é uma simples casa na Maia que não denuncia o que é. Mas quando as portas se abrem, há um mundo encantado de dez cavalos escondido atrás dos muros altos. “Este é o Átila e esta é a Biografia”, atira Rui Alves, um dos cavaleiros que passa ali o tempo livre, enquanto aproveita a crina para fazer uma trança tradicional portuguesa no seu Átilo. A meia dúzia de passos, um picadeiro ao ar livre. O projeto é de Ricardo Rocha e da mulher, Teresa Ferreira, que largaram o centro da cidade do Porto para fazerem nascer o sonho de uma vida. “Isto é daquelas coisas que dizemos que um dia haveremos de fazer…”, comenta ele. E fez, em setembro de 2020.

O casal Ricardo Rocha e Teresa Ferreira tem a Quinta das Marias, na Maia, onde faz criação
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Mas a história, essa, já vem de trás, de um aficionado por cavalos, nascido e criado num apartamento no Porto, com “zero” ligação familiar ao lusitano. Ainda se lembra de ver filmes de cowboys em VHS, de trás para a frente, só porque tinham cavalos. Quis formar-se em equinicultura, um devaneio que viria, afinal, a tornar-se na sua vida. “Entrei no curso e era dos poucos alunos que não tinha ligação nenhuma ao cavalo, ninguém na família que montasse. Todos os meus colegas eram filhos de criadores, cavaleiros, e eu caí ali de paraquedas, nem sabia direito o que era um cavalo.” Safou-se bem, em três meses aprendeu a montar para fazer a prova de ingresso. Ainda fez o curso de monitor de equitação, com licença nacional e internacional. Desde então, passou por coudelarias, abriu e fechou um centro hípico em Vila do Conde, deu aulas em escolas profissionais agrícolas, numa correria sem folgas. Mas a vida pôs-lhe travão e três filhas fizeram-no repensar o futuro. O sonho era um dia vir a ter uma casa onde pudesse ter as éguas e os cavalos. E ganhou forma mais cedo do que Ricardo e Teresa podiam pensar. Compraram uma casa com um terreno e reabilitaram-na. Agora, Teresa gere os alojamentos locais que têm no Porto, e Ricardo dedica-se aos cavalos. Chamou-lhe Quinta das Marias, todas as filhas têm Maria no nome.

Ali, não só tem uma pequena criação, como dá lições privadas a estrangeiros que querem vir montar um lusitano. E há muitos, sobretudo do norte da Europa. Ricardo tem cinco cavalos em trabalho, três éguas para criação e duas éguas mais velhas que usa para dar aulas, aos fins de semana, a miúdos que o seguiram até ali. “Alguns têm a chave da porta, já tinha uma relação de proximidade.” É num ambiente familiar que cria e treina os cavalos. É o exemplo perfeito dos novos criadores que começam a fazer caminho na região Norte. O objetivo é a comercialização, mas também tem um projeto desportivo, com o seu garanhão (lusitano não castrado e aprovado como reprodutor da raça) Jasmim. Quer vir a competir.

A criação custa-lhe investimento em rações, vitaminas, bons fenos, desparasitação, ferradores, veterinários. Mas tem saída? “Neste momento, o lusitano é um cavalo muito em voga, porque muitas pessoas que os compram são amadoras que querem um cavalo igual ao que viram nos Jogos Olímpicos. Mas a maior parte delas não consegue montar um hanoveriano, que é um cavalo com 1,80 metros, cheio de força e que não tem o mesmo temperamento do lusitano, que tem uma generosidade fora do normal.”

Todos os fins de semana e nas férias, Íris Calheiros vai até à Quinta das Marias para treinar com a égua Biografia
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Foi isso que conquistou Rui Alves, enfermeiro obstetra de 41 anos, que começou a ter aulas com Ricardo há cinco e acabou a comprar o Átila em 2019, que está alojado na Quinta das Marias. O critério era ser lusitano e ainda viu uns quantos até se apaixonar à primeira vista. “Era um sonho meu ter um lusitano, porque têm um caráter extraordinário, e pela facilidade com que aprendem. É para lazer, uma forma de me abstrair do ritmo alucinante do trabalho.” Tal e qual Íris Calheiros, que se refugia ali do curso de enfermagem veterinária. Na mira, o sonho de vir a trabalhar com cavalos. Aprendeu a montar aos nove, quando recebeu de presente dez lições, e tem aulas desde então. Deixou a guitarra, os escuteiros, o ballet, a dança, tudo pelos cavalos. Não mais parou. Tem 20 anos, aprende com Ricardo. “Troquei tudo pelos cavalos, para poder montar.” E com o lusitano a relação é umbilical. “Foram os meus maiores professores.”

Registo

Como é que um cavalo entra no Livro Genealógico do Cavalo da Raça Lusitana?

● A criação do cavalo lusitano obedece ao Regulamento da Raça, homologado pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária.

● Um cavalo, ao nascer, só é inscrito no Livro de Nascimentos para ser considerado lusitano depois de análises ao sangue. Tem de ser filho de dois lusitanos inscritos como reprodutores.

● Em adultos, para serem reprodutores, sejam garanhões ou éguas, os cavalos fazem provas de andamento e morfologia para ver se cumprem os padrões mínimos da raça. Só os aprovados podem ter filhos inscritos no Livro.

● Há um grupo restrito de juízes para avaliar a raça, em inspeções em Portugal e lá fora, desde veterinários a criadores, equinicultores ou engenheiros zootécnicos.

● Apenas 2 a 3% das fêmeas e 15 a 20% dos garanhões são reprovados. Pode acontecer por terem uma lesão grave, serem assimétricos no andamento, o maxilar não assentar bem. Para que não passem o defeito aos descendentes e, assim, melhorar a raça.