São histórias em que o fim do amor deixa um imenso rasto de destruição. De pais amargurados e descendentes destroçados, com traumas que se eternizam. De uma mãe que passou anos agarrada à grade de uma escola. De um pai que foi falsamente acusado de abuso sexual. De filhos obrigados a crescer à distância de vários países, longe do afeto de um dos progenitores. Chamam-lhe alienação parental. E até a designação é controversa.
Mariana (nome fictício, como quase todos nestas páginas) só tinha sete anos, mas, uma década depois, ainda carrega o peso daquele dia outonal que se lhe colou na memória como assombro. O mano mais novo, fruto da recente relação do pai, fazia um aninho, ela e o outro irmão pediram à mãe, Soraia, que os ajudasse a comprar uma lembrança. Escolheram um pequeno cavalo articulado. Mas percebendo que a ex-mulher os tinha ajudado a comprar a lembrança, o pai não deixou sequer que o presente fosse aberto. “Pegou num isqueiro e queimou o embrulho.” Mariana não o percebeu logo mas aquela imagem, que ainda hoje mói em surdina, era o prenúncio de uma normalidade familiar reduzida a cinzas. A história está cheia de curvas e contracurvas, de buracos negros, de culpa também. Porque se hoje vive com a mãe e lhe é grata por nunca ter desistido dela, houve um tempo em que lhe virou costas, em que lhe disse “coisas horríveis”, em que simplesmente não quis saber. “Cheguei a ter-lhe uma raiva imensa.”
Perceber porquê levou tempo, ajuda profissional, estados de alma tão difíceis que chegou a perder a alegria de viver. “Hoje tenho perfeita noção de que fui manipulada pelo meu pai e pela minha madrasta.” Umas vezes, conta, mostravam-lhe supostos emails insultuosos da mãe. Noutras, faziam-na ensaiar o discurso que deveria ter com o psicólogo. E depois eram as “coisas subtis”. Como serem mais ou menos simpáticos com ela consoante a forma como ela reagisse com a mãe. E assim Mariana acabou por viver quatro anos longe de Soraia, numa redoma onde nem amigos podiam entrar, sem perceber que a opção que tinha como fruto da vontade própria era afinal um poço sem fundo. “O facto de não me dar com ela ia-me degradando aos bocadinhos.” A dada altura, já nem o infinito amor aos irmãos a resgatava aos dias sombrios. Descurou a escola, fugiu de casa, chegou a automutilar-se. Até que um dia disse “chega” e voltou para casa da mãe. Foi em 2018.
É ela, a mãe, que ajuda a encaixar a história numa penosa linha temporal. Em 2009, depois de um “casamento feliz” de 13 anos, o marido saiu de casa. Um ano depois, já com outra companheira, voltou a ser pai. Divorciaram-se em 2010. Na altura, por vontade de ambos, o tribunal decidiu que os filhos viveriam com a mãe e estariam com o pai de 15 em 15 dias, mais férias. Depois, veio o episódio do presente queimado. Pelo meio, Soraia sentiu o filho a mudar. Sobretudo quando vinha dos fins de semana em casa do pai. “Implicava com tudo. Se tinha algo desarrumado, dizia logo que tinha sido por isso que o pai tinha ido embora e quando uma ordem não o agradava falava logo em ir para casa do pai.” No fim de 2011, o desatino extremou-se de tal forma que uma discussão por causa do quarto desarrumado acabou com Soraia a perder as estribeiras. “Dei-lhe uma série de palmadas, mandei-lhe com a roupa que já tinha dobrado para cima dele, ao mesmo tempo que ele me empurrava contra a parede e crescia para mim. Foi tão feio.” Ainda nessa noite, a mãe pediu desculpa, o filho disse estar confuso, choraram, dormiram juntos. Mas nada voltaria a ser igual.
Três dias volvidos, recebeu uma carta da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Pouco depois, os filhos foram passar uma semana de férias com o pai e não voltaram. O ex-marido apresentou queixa por violência doméstica. “A dor era insuportável e a minha família teve de me levar para o hospital para uma cura de sono”, recorda. Mas não se ficou. Dias mais tarde, apareceu na escola e conseguiu “recuperar” Mariana. Ricardo já não quis voltar. A princípio ainda dizia, todo mimos, que tinha saudades, mas que o pai precisava dele. Depois, sobrou só hostilidade. Soraia insistia em ir vê-lo da grade da escola, ainda assim. Mesmo depois de o tribunal ter decidido que o filho ficaria com o pai e a filha com a mãe. A angústia seria ainda maior quando, em 2014, Mariana foi passar as férias da Páscoa com o pai. Também não voltou. Desta vez, ele apresentou queixa por violência doméstica contra Soraia e o novo companheiro. Um filme de terror já visto, a mãe agora colada à grade de duas escolas, Mariana a copiar os passos do irmão. “Tu não és minha mãe, já tenho outra mãe”, chegou a dizer. Seguiram-se anos de queixas por provar, perícias psicológicas, audiências infrutíferas no tribunal, um rol de pormenores sórdidos a perder de vista. E Soraia a definhar. Até que, naquele primaveril dia de 2014, Mariana, hoje com 17 anos, lhe apareceu à porta de casa “como um farrapo”, a pedir para regressar. Com Ricardo foi diferente. Nunca mais voltou. Já lá vão dez anos. “Às vezes, a dor é tão grande que o coração adormece”, atira a mãe, desconcertada.
Lavagens cerebrais, raptos, falsos abusos
A história replica-se país fora, mundo fora, num número infindável de divórcios litigiosos em que os filhos acabam usados como armas numa guerra a dois. Chamam-lhe alienação parental. A designação não é consensual, mas lá chegaremos. Ricardo Simões, presidente da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos (APIPDF), explica que acontece “quando um pai manipula a criança para odiar o outro”, numa espécie de “lavagem cerebral”. Quantificar o problema é que é missão árdua. Um estudo de 2016 aponta para que 9% dos americanos tenham sido alienados de um ou mais filhos. Metade destes terá mesmo passado por casos de alienação parental severa. Em Portugal, faltam números. A própria Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens não dispõe de dados concretos, visto que, como detalha a presidente Rosário Farmhouse, a alienação parental não é considerada uma “tipologia de perigo”. Sabe-se, isso sim, que o fenómeno tende a aumentar com a banalização dos divórcios (em 60 anos, a percentagem cresceu de 1,1 para 61,4%) e o aumento dos conflitos parentais.
Cathia Chumbo, psicóloga clínica que coordena, no Hospital Arrifana de Sousa (Penafiel), a “consulta do divórcio”, não tem dúvidas: o número de casos de alienação parental representa “uma percentagem demasiado significativa”. Habituada a acompanhar crianças no âmbito de processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, está familiarizada com os pequenos sinais que podem ser reveladores – por exemplo, a necessidade de o menor “denegrir o outro progenitor” ou o uso de expressões como “ele/ela deixou-nos” ou “não insiste nas chamadas porque está mais ocupado(a) com outras pessoas”. Já as estratégias adotadas na alienação parental podem ir da tentativa de isolar a criança do meio que a envolve (a tal redoma de Mariana) ou de evitar o contacto físico com o outro progenitor à interceção de presentes ou mensagens. Por vezes, dá-se uma espécie de “purga emocional”, na tentativa de eliminar recordações positivas. Em casos mais graves, a alienação pode chegar ao rapto. Ou a falsas denúncias de abusos sexuais.
É tão grotesco quanto parece, testemunha Renato, 57 anos. Passou por isso há uns quantos anos, mas ainda hoje carrega os demónios daquela acusação. A prova é que continua a trazer no bolso, já gasta, meia rasgada, a carta do Juízo de Família e Menores de Sintra que, em 2012, provada a sua inocência, determinou que o filho lhe fosse entregue. Para trás ficaram anos de uma vida aos solavancos, em que se viu privado daquele amor maior e da mais fugaz sensação de felicidade. O início da história conta-se em poucas linhas. Uma paixão de quatro anos que não evoluiu, uma declaração arrebatadora quando Renato até já estava noutra, ele a ceder, uma gravidez de rompante. E uns primeiros tempos de parentalidade críticos. A avó materna sempre fechada no quarto com o bebé e a mãe, o pai quase sem o conseguir ver e o filho internado 15 dias depois, completamente desnutrido. Nos primeiros tempos, para garantir que não se repetia, até esteve ele de licença. Depois, teve de voltar ao trabalho. Mas, sempre que chegava a casa, a criança chorava desalmadamente. Com o filho a completar ano e meio, ainda foram de férias. Renato apercebeu-se de que o garoto nem ao colo da mãe queria ir. E não tardou a ter a certeza de assim não dava para viver. Foi um para cada lado e acordaram ficar com o rebento semana sim, semana não.
Um dia, foi buscá-lo ao infantário e viu que a mãe e os avós já o tinham levado. Não atendiam o telefone nem sabia onde estavam. Começava ali um calvário impossível de contar. Procurou a ajuda de um advogado, apresentou queixa no Ministério Público, fez tudo o que podia. De pouco serviu. Andou quase um ano sem saber do filho. Entretanto, a mãe da criança apresentou uma queixa por violência doméstica. A acusação acabaria por cair, mas nem assim Renato se livrou de passar mais de três anos a ver o filho unicamente em visitas supervisionadas pela Segurança Social. E o coração a contorcer-se de dor. Com quase seis anos, a criança pôde, por fim, voltar para casa do pai, em regime de residência alternada. Mas a paz durou pouco. Mês e meio volvido, a ex-companheira foi com o filho ao Hospital Amadora-Sintra garantindo que teria sido violado pelo próprio pai. Era o derradeiro golpe. No meio do drama, um esboço de boa notícia. A Polícia Judiciária foi célere a desmontar a calúnia. Passadas três semanas, recebia a tal carta que ainda hoje traz no bolso, já gasta, meia rasgada. Da parte da mãe, a quem na altura foi sugerido acompanhamento psiquiátrico, só um desligamento completo. Nunca mais ligou, nunca mais quis ver o filho. Ao pai, o que lhe dói mais é vê-lo, hoje adolescente, a debater-se com as dores do abandono materno. “É um miúdo revoltado que se fecha na escola e descarrega em mim.”
Controvérsia que resiste
São, muitas vezes, traumas impossíveis de curar. Cathia Chumbo, psicóloga, pormenoriza que os filhos vítimas de alienação parental apresentam frequentemente perturbações de comportamento, sentimentos de culpa, dificuldade de relacionamento e vinculação, perturbações ao nível do sono e da alimentação, comportamentos obsessivos, atitudes agressivas. Por vezes, comportamentos aditivos. Para os pais, as consequências podem ser igualmente arrasadoras. Renato garante que ainda hoje não há um dia em que não se revolte com o sofrimento do filho. Em que não se pergunte como é que alguém acusa o pai de o violar para nunca mais querer saber dele. “É uma espécie de stress pós-traumático. Tornei-me tão desconfiado que não consigo manter uma relação.” Para Ricardo Simões, presidente da APIPDF, o relato é tudo menos invulgar. Aos grupos de apoio da associação, por onde já terão passado mais de seis mil pais a debater-se com as dores da alienação parental, chegam frequentemente testemunhos destes. Por vezes piores. “Há quem chegue a ponderar o suicídio.”
A alienação parental continua a ser tema controverso, ainda assim. Desde logo porque Richard Gardner, o psiquiatra americano que primeiro abordou o assunto, na altura defendendo existir uma “síndrome da alienação parental”, foi sempre uma figura polémica – tanto que a tese da síndrome (diferente da alienação parental enquanto fenómeno social que aqui abordamos) nunca foi validada. A própria Organização Mundial de Saúde decidiu, em 2019, incluir a alienação parental no ICD-11 (International Classification of Diseases), mas voltou a retirá-la em 2020. Há até quem aponte, como Clara Sottomayor, juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, que as alegações de alienação parental em casos que envolvem denúncias por crimes de abuso sexual têm contribuído para a presunção de falsidade das alegações e para a falta de rigor na investigação.
Ricardo Simões assegura que a associação a que preside não é indiferente a esse risco. E que por isso mesmo a APIPDF procura, antes de ajudar quem quer que seja, distinguir os verdadeiros casos de abusos dos de falsas denúncias. Rute Agulhas, psicóloga forense que conduz perícias médico-legais em casos destes, fala em três pistas fundamentais: poder, ambivalência e emoções. “As crianças que são vítimas de maus-tratos por parte de um progenitor evidenciam medo desse agressor, ambivalência emocional [“gosto do pai/mãe, mas não gosto do que ele/ela me fez”] e percecionam o progenitor maltratante como tendo mais poder. Nas situações em que a rejeição é fruto de manipulação, observamos ausência de medo, ausência de ambivalência [um é ‘todo bom’ e outro ‘todo mau’] e um comportamento desafiador que jamais observamos em crianças maltratadas.” Quanto à questão da alienação parental, não tem dúvidas de que estas dinâmicas familiares existem, mas admite que o uso do conceito pode ser “contraproducente”, pelo alvoroço associado ao mesmo.
As reservas em relação à definição de alienação parental estendem-se ao domínio da justiça. Em Portugal, ao contrário do que acontece em países como o Brasil, não há leis sobre alienação parental. Sandra Inês Feitor, advogada especialista em Direito da Família que dedicou as teses de mestrado e doutoramento ao assunto e há anos se debruça praticamente em exclusivo a estes casos, reconhece que, apesar de se tratar de um tema polémico (ela própria não usa a figura da alienação parental porque “vai enviesar o discurso”), o problema tem vindo a ser reconhecido pelos tribunais “como um fenómeno social que tem relevância jurídica”. E aponta para a jurisprudência já existente. “São cada vez mais reconhecidos os comportamentos de boicote à coparentalidade e adotadas medidas positivas no sentido de restabelecer a convivência familiar.” A jurista enfatiza ainda a importância de a superior vontade da criança ser analisada “à luz daquilo que for o seu superior interesse”, salientando que tem havido uma “abertura cada vez maior”. A própria aprovação do regime de residência alternada em caso de divórcio é um “passo importante” nesse sentido, realça Ricardo Simões. Mas ainda há muito a fazer. Desde a “impunidade” em relação aos casos de incumprimento da regulação do poder parental à necessidade de uma mudança de paradigma. Apostar num modelo mais preventivo, que privilegie a intervenção precoce, seria, a seu ver, fundamental. O dirigente aponta ainda o dedo ao sistema, “autêntico rolo compressor”, porque, com frequência, se depara com pais que chegam à associação demasiado tarde, “depois de também já terem errado”.
O medo de que nunca voltem
O caso de Simon, inglês de 56 anos, protagonista de uma história de contornos rocambolescos, encaixa neste cenário. Em 2013, quando ainda vivia em Hong Kong, perdeu-se de amores por uma jovem russa. Em 2016, já casados, vieram viver para Portugal. Mas o romance não durou. Tempos depois, a companheira anunciou-lhe que se preparava para voltar ao país natal e pôs fim à relação. Nada disse, jura Simon, sobre o bebé que já trazia na barriga. Ele só descobriu mais tarde, por um amigo em comum. Mesmo assim, ainda houve um esboço de reconciliação. No fim de 2017, passaram uns dias juntos em França, depois umas semanas em Portugal, mais tarde uns meses em Inglaterra. Mas, quando os serviços sociais diagnosticaram ao filho problemas de desnutrição e atraso no desenvolvimento, ela voltou a abalar para a Rússia, com a cria nos braços. E a cortar contacto com o pai. Foi em junho de 2019. Simon ficou de mãos e pés atados. Pouco ou nada sabia da criança, a mãe não atendia as chamadas, ele tardou a conseguir visto para a Rússia (e, quando conseguiu, só pôde ver o o menino em três ocasiões).
Foi só em março de 2020 que voltou a estar próximo do filho, por acordo de ambos. Já em Portugal, partilharam casa durante seis dias. “Mas ela expulsou-me.” E a história descambou de vez. A princípio, ainda lhe eram permitidas as visitas livres. “Só que ela não cumpria”, acusa. Depois, em setembro, também ele incumpriu – que é como quem diz, ficou com o filho mais dois dias do que seria suposto. Erro crasso. A mãe aproveitou para pedir uma ordem de restrição temporária, a que o tribunal acedeu. Na decisão do Juízo de Família e Menores do Porto, que Simon nos fez chegar, este é considerado “emocionalmente vulnerável”. Invoca-se ainda o “elevado grau de conflito entre os progenitores” para justificar a decisão. Ficou, por isso, limitado a visitas semanais supervisionadas, no Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP) do Porto. Mas até essas tardaram cinco meses a acontecer (porque a mãe ia sucessivamente recusando, frisa). Quando voltaram a estar juntos, já em fevereiro, o menino mal o reconheceu, conta Simon, angustiado. Queixa-se ainda que o filho tem sido negligenciado, que “não consegue comunicar como uma criança normal”, que há um ano lhe foi diagnosticado um atraso na fala e que a mãe se recusa a levá-lo às consultas. Diz ainda viver num estado de ansiedade permanente. Porque, defende, o tribunal o tem impedido de lhe proporcionar “os cuidados de que ele precisa”. Promete, por isso, voltar a recorrer da decisão que determinou a suspensão das visitas ao domicílio. E não cala a indignação face à justiça portuguesa.
Também Jorge Gomes (nome verdadeiro, embora prefira não expor o rosto), 45 anos, residente na Ericeira, deixa duras críticas à atuação do sistema. O início da história é igual ao de tantas outras. Casou com 23 anos, teve um filho aos 25, outro aos 30. Anos depois, a relação foi-se deteriorando e já andavam a falar em separar-se. O fim insinuou-se de vez em 2012 quando a mulher lhe apanhou a prova de uma traição. Separados, mas sem darem entrada com o processo de divórcio e num registo aparentemente amigável, decidiram que os filhos se manteriam na casa de sempre e saíam eles. Semana sim, semana não. Depois, invocando que andava mal, ela quis ir um ano para a Bélgica, país que lhe era querido, com os meninos. Ele, achando que seria uma boa experiência para os filhos, e com uma certa dose de culpa a pesar-lhe sobre os ombros, acedeu. Falava com eles todos os dias e até foi à Bélgica festejar o aniversário do mais novo. Nessa altura, a mãe das crianças propôs a reconciliação. Jorge recusou, até porque já tinha outra pessoa.
De resto, tudo correra bem, achava ele. Durante a estadia, a ex-companheira tinha-lhe pedido que assinasse uns papéis, supostamente para os filhos terem acesso a um seguro de saúde. Mal sabia Jorge que estava a assinar um documento em que autorizava que estes ficassem a viver de forma permanente na Bélgica. Desconcertado, avançou com o pedido de divórcio e com o processo para regulação do poder paternal, pedindo a residência alternada. Mas foi informado de que teriam de ser os tribunais belgas a intermediar o processo. Era o início de uma guerra interminável. “Passámos a estar em tribunal uma vez por ano. A seguir a cada sentença, ela põe novo processo, sempre com o objetivo de eu ter menos tempo com os meus filhos e de ter de lhe dar mais dinheiro. E sempre que lá vou [aos tribunais belgas] perco tempo com eles.” Pelo meio, as chamadas tornaram-se cada vez mais difíceis, as férias passaram a ser incertas e a relação com os filhos, que mesmo à distância sempre havia sido boa, foi-se ressentindo. Muito graças a “uma campanha horrível da mãe para denegrir a imagem do pai”, lamenta Jorge.
O mais velho, que nunca o perdoou por uma discussão feia que tiveram na última visita, não vem desde o verão de 2017. Agora já é maior de idade. Quanto ao mais novo, já lá vão dois anos. E o contacto é cada vez mais diminuto. Jorge, que entretanto teve outra filha, aguenta-se como pode. “Há dias melhores e piores. Dias em que vejo uma determinada coisa e me vou abaixo, dias em que me culpo. A dada altura, é como andar em areias movediças. Parece que quer uma pessoa se mexa para a esquerda ou para a direita mais se enterra, tanto na relação com os filhos como em tribunal”, desabafa. Não abre mão do otimismo, ainda assim. “Sei que o que já perdi é irremediável, mas não perco a esperança de que eles voltem.” E voltam sempre? “Há estudos que apontam para que os filhos alienados ‘regressem’ num período que pode ir dos sete aos 20 e tal anos”, responde Ricardo Simões. “Dentro disso, há uns que voltam mais cedo, outros que demoram mais. E, sim, também há os que nunca voltam.” É esse o maior medo de Jorge. E de Simon. E de Soraia. E de tantos como eles.