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Porque é que temos tanta dificuldade em dizer não?

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Texto de Ana Tulha

Júlio Magalhães nem sequer faz caixinha disso: dizer não não é com ele. “É algo generalizado. Quando me fazem convites para almoçar, para jantar, ou mesmo convites profissionais, nunca digo que não. Não gosto de desiludir as pessoas. Acho que o não é a palavra mais usada por toda a gente. E não devia ser.”

A intenção é a melhor, garante. Já o resultado… é o cabo dos trabalhos. “Às vezes tenho três reuniões quase à mesma hora. Ou três jantares marcados para o mesmo dia”, partilha o atual diretor-geral do Porto Canal, em conversa com a “Notícias Magazine”. “Ainda por cima detesto burocracias. Não anoto nada. A minha secretária é que sofre.”

Está bom de ver que o apresentador acaba por não conseguir marcar presença em muitos dos eventos a que diz que vai. Até porque esse velho hábito português de marcar um almoço ou uma reunião sempre que é preciso falar do que quer que seja não lhe agrada nem um bocadinho. “Há sempre aquele que quer ir ao restaurante onde se come o melhor cabrito ou o melhor leitão. Come-se muito. Bebe-se muito. Detesto almoços. E mesmo as reuniões, em Portugal, têm sempre mais uma hora do que deviam ter”, atira, sem rodeios.

E, então, como resolve o assunto? A resposta sai-lhe sem os maneirismos do politicamente correto. “Umas vezes invento uma desculpa e digo que pensava que era no dia seguinte. Noutras vezes sou sincero: digo mesmo que me esqueci. E depois há vezes em que chego meia hora ou uma hora atrasado mas ainda consigo ir. Só que normalmente não consigo.”

A aversão ao não não é nova (“já quando comecei n’ “O Comércio do Porto”, no início dos anos 1980, me chamavam ‘Bolinhas’, porque dizia que sim a tudo”) e, assegura, estende-se aos mais variados contextos. “Mesmo quando assino contratos, nunca discuto nada. E sou incapaz de regatear preços. Sempre fui assim.” Por sorte, para ele, essa incapacidade de responder negativamente nunca foi um problema.

Mas não faltam casos em que os pruridos em dizer não podem ser um péssimo sintoma, com consequências desagradáveis. E a questão da educação, garantem os especialistas, tende a ser decisiva. “Muitas vezes tem a ver com os próprios contextos em que as pessoas evoluem. Se, em termos educacionais, há uma grande pressão perante a imagem que estão a dar às outras pessoas, isso pode vir a criar esses traços de personalidade mais ansiosos, que vão dificultar o dizer que não”, explica a psicóloga clínica Lígia Ferreira Gomes, que distingue entre quem, mesmo dentro destes contextos, consegue ter traços de personalidade mais fortes e quem “acaba por ficar mais fragilizado”.

Mas há outros motivos. Se nalguns casos a dificuldade em expressar negação pode traduzir um lado mais generoso, de quem não quer desencantar quem tem à volta, noutros pode estar relacionada com a falta de autoestima e a insegurança – e até com traços de personalidades mais depressivos.

Silvana Oliveira, 24 anos, formada em Criminologia, atesta que a falta de autoconfiança e a incapacidade de dizer não podem andar de mãos dadas. Durante anos, viveu com psoríase, uma doença de pele que lhe deixava as mãos (e não só) num estado lastimável. “Tinha um grande impacto social e consequências na minha autoestima.”

Também por isso, admite, raramente dizia que não ao que quer que fosse. “Quando me pediam favores, ou mesmo quando me pediam algo que eu não queria muito fazer, acabava sempre por fazer. Tinha dificuldade em impor a minha opinião e achava que podia magoar as pessoas e que estava a ser egoísta. E acabava por me prejudicar. Fazia as coisas contrariada e entrava muitas vezes em conflito comigo. Às vezes, na faculdade, até atrasava os meus trabalhos para ajudar os outros. A minha família avisava-me muitas vezes que as pessoas abusavam por eu ser assim”, conta Silvana Oliveira, atualmente monitora na ART – Associação de Respostas Terapêuticas.

Foi precisamente neste trabalho que Silvana aprendeu a complexa arte de dizer não

“São jovens que precisam muito que lhes digam que não. Não estão habituados a restrições e a tolerar a frustração do não. Percebi desde logo a importância de dizer que não, para ajudar a estruturar estes jovens. E isso passou da vida profissional para a pessoal. Passou a ser mais fácil para mim dizer não.” Para isso também contribuiu o tratamento que fez à psoríase e que lhe reduziu os sintomas quase a zero. “Hoje, tenho muito mais autoestima e muito mais facilidade em dizer que não.”

Nem sempre a história acaba tão bem. “As perturbações depressivas ou ansiosas estão muitas vezes associadas a dificuldades na autodefinição, por as pessoas persistirem durante longos períodos nesta preocupação em agradar a todos os que estão à sua volta, acabando por se anular a si próprias”, alerta Lígia Ferreira Gomes, habituada a receber no consultório casos deste género.

A pressão da perfeição

A psicóloga clínica encontra outras razões para as dificuldades crónicas em dizer não, que extravasam a esfera pessoal e entram no campo social: “Hoje em dia, a sociedade está a cair muito num comportamento que procura muito a desejabilidade social. Preocupamo-nos cada vez mais com os comportamentos politicamente corretos e temos medo de falhar perante os outros. Por vezes, preocupamo-nos mais em agradar a terceiros do que em sermos fiéis às nossas próprias ideias. E acabamos por viver neste terror de dizer que não”. Lígia Ferreira Gomes acrescenta um outro fator, que se prende com “a pressão que a sociedade nos impõe para sermos perfeitos”.

Paula Guerra, socióloga, também integra a aversão ao não numa lógica mais global, ditada pela própria sociedade. E defende que a dificuldade da negação se prende com uma necessidade de afirmação. “A partir dos anos 1980, há todo um contexto de crescimento e de valorização do eu e da identidade. Passa a viver-se numa sociedade em que é necessário dar um reforço positivo e estar sempre disponível”, começa por dizer a docente de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que relaciona a tendência com a lógica do capitalismo tardio.

“Vivemos numa velocidade estonteante, numa competição permanente, que força esta ideia de sermos quase perfeitos. Toda essa lógica acaba por desencadear o medo da rejeição, a necessidade de sermos aceites e valorizados. Neste contexto, dizer não é tido como uma atitude repressora”, justifica a socióloga, antes de aprofundar um eventual receio em responder negativamente: “Nota-se, de facto, que as pessoas têm muita dificuldade em dizer não, até por acharem que ao fazê-lo vão ser eliminadas de determinados circuitos e, consequentemente, menos amadas”.

A importância do não em sociedade

Mas o não continua a ser importante? Continua, pois. “Ainda que a sociedade valorize sobretudo a lógica positiva, é uma forma de reflexão crítica, de ser contra o sistema, que se reveste de grande importância, nomeadamente em problematizações hegemónicas”, realça Paula Guerra, lembrando que “muitos dos movimentos sociais começaram precisamente pelo não”, mas que, no último quarto de século, “essa questão contracultural não tem tido tanto sucesso quanto isso”.

E se o não é importante em sociedade, a nível pessoal é fundamental. “Passa também por um poder de afirmação da própria pessoa. Quando não conseguimos contrapor ideias, acabamos por anular as nossas opiniões. É muito importante que todos nós tenhamos essa capacidade. Senão acabamos por criar uma espécie de máscara social”, avisa Lígia Gomes.

E pode haver consequências a vários níveis. “A nível comportamental, pode existir algum tipo de abuso ou podemos acabar a ter comportamentos que não queremos ter e que se refletem no nosso bem-estar. A nível laboral, se não se consegue dizer que não pode-se facilmente chegar a um ponto de exaustão. E na vida pessoal igual.”

E para quem tem essa intrínseca dificuldade em dizer não nos vários contextos, o que há a fazer? “Primeiro, é preciso que as pessoas queiram mudar esse comportamento, que é a parte mais difícil da consulta”, esclarece de antemão a psicóloga Lígia Ferreira Gomes. Depois da mentalização, a ideia é ir passo a passo. “O que tenho reparado é que basta incentivarmos o dizer que não a pequeninas coisas, que as diferenças vão-se começando a notar. Isso vai potenciar o bem-estar e a resposta delas noutras situações, em maior escala.”

Outro exercício que pode ser interessante prende-se com o regresso à identidade da pessoa. “Ao fim de muito tempo neste tipo de comportamentos, a identidade da pessoa acaba por se anular e muitas vezes chega a um ponto em que já não sabe o que é nem o que quer. Temos de fazer exercícios para se voltarem a identificar e a perceber o que querem e o que não querem.”

Mas, como quase sempre, as generalizações são perigosas. E, no limite, até pode haver casos em que o não conseguir dizer que não aparentemente não representa um problema. Júlio Magalhães que o diga: “Sei que para quem lida comigo é um defeito, mas tenho levado bem a vida assim.”