Texto de Sara Dias Oliveira | Fotos: Gustavo Bom/Global Imagens
O tranquilo ar de miúda engana. Cheila Duarte gosta de adrenalina e de sangue irrequieto a correr-lhe nas veias. Passou oito anos no Exército a conduzir carros de combate em Santa Margarida, depois quis entrar na Força Aérea, mas, na altura, não aceitavam mulheres.
A família já se habituou a vê-la no meio deles e nunca torceu o nariz. Cheila trabalha no Porto de Sines há quase dois anos. Os navios são a sua matéria de trabalho, os olhos a sua maior ferramenta. É a única mulher supervisora de navios no Terminal XXI.
Logo que entrou não passou despercebida, notaram-lhe o jeito e o despacho para a estiva e hoje, aos 31 anos, é, como resume, “os olhos do navio”. “Descrevo tudo o que vejo.” Aos homens que gerem gruas e manobram contentores lá no alto.
Estar num turno de 165 pessoas com apenas oito mulheres é coisa normal. “Sempre trabalhei com homens e é fácil trabalhar com eles.” Eles são a maioria em Sines, elas são apenas 22 em 1 050 trabalhadores. Eles habituaram-se à presença delas.
Dentro de minutos, Cheila entra ao serviço, no turno da tarde, sairá já de noite. O dia está calmo. De vez em quando, ouvem-se avisos sonoros porque há uma grua em movimento, um camião a circular, contentores a mexerem-se de sítio. Cheila, com o 12.º ano feito, mulher que faz desporto, BTT e corridas, que um dia quis ser professora de Educação Física, sente-se como peixe na água.
“Isto é bom para nós, temos oportunidade de mudar de funções, progressões na carreira. É uma boa experiência de vida”, confessa. E há ainda a paisagem. “Trabalhamos ao ar livre, não estamos fechadas em salas, gosto tanto de estar ao pé do mar.”
Sines tem uma costa bonita de se ver. Cheira a maresia, tem peixe fresco na doca, barcos prontos para a faina, navios que atracam no maior terminal de contentores do país, com uma quota de movimentação superior a 50% do mercado nacional. No ano passado, passaram pelo porto mais de 2 100 navios. Cheila ainda fica impressionada com a chegada desses imponentes veículos marítimos vindos de várias partes do Mundo. Já houve cargas com aviões, iates, tratores, helicópteros. De tudo um pouco.
Portugal tem 29 estivadoras num universo de dois mil trabalhadores. Não chegam a 1,5% da força de trabalho
Tudo o que se passa em terra, naquele cimento junto ao mar, com contentores empilhados, passa por Daniela Gomes, há 11 anos no Porto de Sines. É supervisora de parque. Conduz autocarros para levar trabalhadores aos seus postos, anda ao volante de uma carrinha para verificar se está tudo em ordem, analisa listas para garantir que as operações fluem da melhor maneira, dá indicações aos operadores das gruas, reporta qualquer avaria nas máquinas e veículos, zela para que as viaturas que entram no porto circulem em segurança.
Tem 38 anos, veste fato de trabalho laranja e azul-escuro, capacete, não larga os dois rádios para estar sempre sintonizada. “É um trabalho muito dinâmico, não há dias iguais aos outros”, conta. É a única mulher nessa função em Sines.
“Nunca me tinha passado pela cabeça ser estivadora”, revela. Foi desenhadora projetista em Lisboa, tem vários cursos técnicos de desenho e medição, até que decidiu voltar ao Alentejo, a Santiago do Cacém. Estava desempregada, era difícil arranjar emprego na área, resolveu inscrever-se no curso de operadores portuários. Já fez de tudo um pouco, desde conduzir camiões a orientar contentores dentro dos navios, até que há um ano surgiu a oportunidade de progredir na carreira.
“Aceitei o desafio, é menos cansativo em termos físicos, mas é um trabalho de maior responsabilidade.” Há dias com quatro navios na costa e filas de camiões para levar ou trazer mercadorias. “Se trazem muito, levam muito.” Se fechar os olhos, consegue visualizar o porto metro a metro, conhece-o há bastante tempo. E a filha, de quatro anos, ainda não percebe bem o que faz. Aponta para os navios que passam e diz-lhe com graça: “Ó mãe, os navios foram sem ti, não esperaram por ti”. Um dia, há de explicar-lhe que os seus dias são passados em terra num porto à beira-mar.
Só há mulheres na estiva em Setúbal e em Sines. Vinte e duas em Sines e sete em Setúbal
Kharina Oliveira é colega de Daniela, começaram ao mesmo tempo, têm os mesmos anos de casa, durante seis anos foram as únicas mulheres no Porto de Sines. Quando chegaram havia apenas três gruas, agora são nove, e a décima está a ser instalada. Frequentaram o curso de operadores portuários da PSA Sines, que gere o único terminal de carga contentorizada em Sines, e que vai preenchendo as vagas de acordo com as funções – e o género nunca foi um requisito predefinido. Kharina deixou o Brasil há 20 anos “à procura de uma vida melhor”.
Trabalhou no Colombo, em Lisboa, tentou a restauração em Sines, ainda voltou ao Brasil, fez novamente as malas, tirou o 12.º ano, estudou Inglês à noite, tirou carta de condução e decidiu arriscar. “Caí aqui de paraquedas e comecei a gostar disto.” Hoje, com 39 anos, é supervisora de cais, confere cargas e descargas dos navios, a localização exata dos contentores, dá instruções ao operador de grua. Ora dentro de uma cabine, ora no parque, ora numa sala a comandar um computador que carrega contentores à distância. Sempre atenta, sempre um passo à frente.
Kharina anda contente. “Vemos o sol a nascer, há lá coisa mais linda? O cheiro a maresia, à beira-mar é uma liberdade,… adoro a estiva, gosto mesmo de trabalhar aqui.” E o pai, do outro lado do Atlântico, em Curitiba, enche-se de orgulho. Ele que foi camionista e que chegou a transportar mercadorias para os portos da região. “Diz que sou uma mulher de armas.”
A luta por um contrato
Mais a norte, em Setúbal, a imagem impressiona como se o tempo estancasse naquela aparição. Milhares de carros alinhados num parque de estacionamento gigante a céu aberto, um navio imponente na margem, o sol que bate de frente. É dia de carregar um navio com automóveis e Carla Ribeiro não está ao serviço. De baixa médica, por uma operação a uma tendinite na mão direita, o mesmo mal que lhe ataca o cotovelo esquerdo, a farda, neste dia de sol de inverno, é uma camisola preta de carapuço com o símbolo dos estivadores de Setúbal nas costas. O escudo português com uma caveira de boca aberta com uma âncora atravessada.
Carla esteve na luta dos estivadores de Setúbal, nas manifestações em Lisboa, 39 dias de paralisação em protesto pela precariedade dos estivadores eventuais, sem contrato. Contou os dias, ficou furiosa quando viu o autocarro com estivadores externos a chegarem para o embarque de duas mil viaturas da Autoeuropa, mostrou toda a sua indignação nos protestos dos estivadores precários.
De peito feito e cara levantada. Nunca desistiu. “A gente tinha de ir à luta pelos nossos direitos.” A 14 de dezembro, conseguiu contrato. Antes disso, e foram mais de oito anos, os dias eram incertos, o final do mês uma incógnita. Havia trabalho, era chamada; não havia, ficava em casa. Sempre a fazer contas à vida.
“Sou da borda-d’água”, avisa. Carla, 41 anos, diz o que pensa, é o que é, é o seu jeito de estar. Coração sempre ao pé da boca. Conhece quase toda a gente que está ou que passa num café central da cidade, o estivador de farda laranja que vai entrar ao serviço, o homem que serve às mesas. Tem três filhos, um irmão a seu cargo, foi mãe aos 15, trabalha na estiva do Porto de Setúbal há nove anos. Não acabou o 6.º ano.
Aos 12, já tomava conta de um “senhor de idade”, depois vendeu pão, trabalhou num café nas Praias do Sado, até que arriscou numa arte que, na verdade, lhe estava no sangue. Bisneta, neta, filha e sobrinha de estivadores, é a primeira mulher estivadora na família. “Nem disse de quem era filha, entreguei a proposta e fui colocada.” O tio a sair da estiva, ela a entrar.
Não anda nas máquinas nem nas gruas. Carrega e descarrega carros dos navios, coloca cintas para prender as rodas ao chão, para evitar que dancem em alto-mar, limpa o porão dos navios. “É um trabalho pesado, nem toda a gente aguenta, há homens que não aguentam.” Trabalha por turnos, ao tempo, à chuva ou ao sol. “A farda de inverno é a farda de verão. Por vezes, andamos com a chuva rente ao corpo. Que remédio, não é fácil.”
Mas Carla sabe que a vida não é facilidades. “Quando a gente é obrigada a crescer muito rápido, quando a gente tem uma vida dura, tem de se fazer à vida.” Quando é para trabalhar é para trabalhar. Sem conversa. Não há cá homens e mulheres. “Somos de carne e osso como eles. Ou não somos? Sempre lidei com homens, quando estava atrás do balcão, às vezes tinha de os pôr na linha”, ri-se.
Carla é uma das 29 estivadoras do país, num universo de perto de dois mil estivadores. Só há mulheres na estiva em Sines e em Setúbal e não chegam a 1,5% da força de trabalho. Não por insistência do SEAL – Sindicato dos Estivadores e Atividade Logística, que tem alertado para “a necessidade de acabar com essa discriminação.” “Nunca houve essa vontade de admitir mulheres no setor portuário em Portugal”, adianta António Mariano, presidente da estrutura sindical. Porquê? Não entende. “As mulheres fazem qualquer trabalho e fazem-no bem”, garante, lembrando que há muitas mulheres na estiva “na América e em Espanha”.
O Porto de Sines é o maior terminal de contentores do país, com uma quota de movimentação superior a 50% do mercado nacional
Em Setúbal, o clima esteve tenso. A Sines, chegaram boas notícias. O Governo adjudicou a empreitada de construção de um dos troços da linha ferroviária de mercadorias que ligará o Porto de Sines à rede europeia. O primeiro-ministro falou em competitividade externa, em coesão interna, em melhores condições para exportar para todo o Mundo a partir do Porto de Sines. Ali onde Paula Baptista conduz um camião de mudanças automáticas que vazio pesa 17 toneladas, mas o habitual é andar com dois contentores de 30 toneladas cada. É motorista e prende e desprende contentores em Sines, vai fazer dois anos em julho.
Licenciada em Física em Coimbra, deu explicações de Matemática e de Físico-Química em casa, foi bolseira de investigação científica no Instituto Tecnológico e Nuclear do Instituto Superior Técnico, na Bobadela, no departamento de proteção radiológica, no controlo de radiações em profissões expostas a esses riscos. Não chegou a terminar a bolsa, a vida deu várias voltas, deixou Lisboa, foi morar para Sines, precisou de um emprego. Falaram-lhe que havia vagas no porto, concorreu, entrou. Tem 51 anos, dois filhos e não pensa mudar de uma profissão improvável que lhe surgiu num momento em que procurava e precisava de estabilidade.
Paula chega para o turno das quatro, vai ao balneário vestir a farda, capacete, luvas, pouco depois estará ao volante do seu camião. De cabeça limpa. “Os problemas ficam fora dos torniquetes. Não levamos o trabalho para casa. Fica tudo cá, dentro do terminal”, diz. “Não é um trabalho pesado, é um trabalho de risco, é muito isso, mas é um trabalho que se faz.”
Tudo controlado, não há margem para erros. Ainda provoca surpresa quando diz que trabalha na estiva. Há sempre gente que fica admirada. “São pessoas que não têm noção do que se faz dentro de um terminal portuário”, realça. “É um mundo de homens, mas estamos à vontade”.