Mais de metade dos estudantes LGBTI sofrem bullying em ambiente escolar. O Governo ordenou que todos os estabelecimentos do ensino público passem a ter casas de banho para alunos transexuais. Há quem acuse o Estado de experimentalismos sociais. Em tempo de arranque do novo ano letivo, nunca a discriminação foi tão discutida.
TO texto do despacho do Governo é claro e foi tornado público em Diário da República há menos de um mês, a 16 de agosto. Tem número (7247/2019), oito artigos, foi assinado pela secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, e pelo secretário de Estado da Educação, João Costa.
O ponto 3 do artigo 5º refere expressamente que “as escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade”.
No entanto, esta tentativa de proteger adolescentes e pré-adultos com orientação sexual minoritária levantou ondas de polémica, sobretudo nos setores políticos mais conservadores. Uma das reações mais veementes veio da Juventude Popular (JP), a ala jovem do CDS.
Num longo post publicado no Facebook a 20 de agosto, Francisco Rodrigues dos Santos, líder da JP e segundo na lista de candidatos a deputados do CDS pelo círculo do Porto nas legislativas de 6 de outubro, escreveu que a lei em causa é um “ataque vil à liberdade de ensino e de educação, ao direito de livre desenvolvimento da personalidade dos jovens portugueses e ao direito dos pais educarem os seus filhos”.
Outrora considerado pela revista “Forbes” como um dos 30 jovens mais brilhantes e influentes da Europa, Rodrigues dos Santos acrescentou que a JP “rejeita experimentalismos sociais que encarem as crianças como cobaias” e que “a tolerância e o respeito pela diversidade não se cultivam através de construções artificiais, teorias desordenadas e voláteis contrárias à ciência”. Remata exclamando que “a escola não é um acampamento de verão do Bloco de Esquerda”.
Para Marta Ramos, diretora-executiva da ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero, a polémica é reveladora da “muita desinformação” relacionada com a temática LGTBI. “Ainda por cima, e isso é que é grave, essa desinformação é veiculada por pessoas que exercem funções de serviço público e que alimentam de forma irresponsável argumentação que não corresponde à verdade.”
Ataque à lei
Em julho, pouco antes da publicação do despacho 7247/2019, uma outra lei que visava a a defesa das minorias sexuais também suscitou desespero à direita. Oitenta e cinco deputados do PSD e do CDS, a que se juntou o socialista Miranda Calha, entregaram no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização do novo texto referente à alteração do género no registo civil. Em causa, os números 1 e 3 do artigo 12 da lei 38/2018.
Diz o número 1 que o “Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas”.
O número 3 refere expressamente que “os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, as medidas administrativas necessárias para a implementação do disposto no n.o 1”.
“Ao contrário do que certos setores defendem, o Estado não está a interferir na sexualidade de ninguém, mas a combater ativamente a discriminação. À ILGA chegam cada vez mais relatos de jovens transexuais, e não só, vítimas de discriminação nas escolas”, argumenta Marta Ramos.
Género e sexualidade são conceitos que, por vezes, ainda se confundem num só. Por desinformação, por ignorância, por recusa em perceber novas realidades que cada vez mais são estudadas do ponto de vista científico. “Estamos a falar de duas coisas completamente diferentes”, explica o pedopsiquiatra Ivo Peixoto, do Hospital Clínica Médica Arrifana Saúde.
Enquanto as dúvidas sobre a identidade de género podem surgir cedo, a questão da sexualidade é mais tardia. E ambas não têm necessariamente que ver uma com a outra. “Logo a partir dos cinco anos, e há casos comprovados disso mesmo, as crianças podem dar sinais de incomodidade com o corpo. Ou seja, sentirem que não existe conformidade entre o que são e o que seu corpo morfologicamente manifesta”, descreve o clínico. “As escolhas sexuais surgem na adolescência e no início da vida adulta. Aí é que se consolidam.”
Discriminação constante
O bullying sofrido por alunos não heterossexuais em ambiente escolar é uma realidade. Escondida grande parte das vezes, porque o assunto continua a levantar melindres de vária ordem e porque a regra de quem sofre na pele episódios de exclusão por ser diferente da maioria ainda é sofrer em silêncio.
Quando os jovens estão em idade escolar, o normal é terem já perceção de algo desajustado sobre o seu género, absorverem tal informação e com ela conviverem com os outros por entre tabus e mal-entendidos. Situações recorrentes que se transformam em problemas maiores e em sinais de sofrimento psicológico que podem manifestar-se de várias formas, algumas delas mais frequentes. “Sobretudo quando existem sinais de recusa do próprio sexo, uma não conformidade e perturbação da referida identidade de género”, prossegue Ivo Peixoto.
Em 2017, a ILGA publicou o primeiro, e até agora único, levantamento nacional sobre jovens LGBTI em contexto de ensino. Realizado em parceria com o Centro de Investigação e Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa, a Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto e a Universidade de Columbia (EUA), o “Estudo Nacional Sobre o Ambiente Escolar” seguiu os padrões internacionais e quis aferir se os jovens LGTBI “se sentem aceites na escola, se ouvem comentários negativos, se são vítimas de bullying ou assédio, que tipo de recursos e apoio encontram, quais as suas aspirações e o seu desempenho académico”.
Dos 663 inquiridos entre os 14 e os 20 anos (84,4% dos quais alunos do ensino público), 34,7% consideraram-se bissexuais, 23,8% gays e 18,4% lésbicas. Muitos evitam frequentar espaços como balneários (33,6%), casas de banho (25,5%) ou aulas de Educação Física (22,2%), por insegurança ou desconforto. Além disso, “36,8% sentem insegurança por causa da sua orientação sexual e 27,9% por causa da sua expressão de género”.
Outro dado que salta à vista no estudo é que a maioria dos estudantes (61%) ouve comentários homofóbicos na escola de forma regular ou frequente. “Para três quartos (75,1%) da amostra, esses comentários são feitos por colegas, mas para três quintos (62,0%) provém também de pessoal docente ou não docente, o que acontece de forma ocasional ou frequente para um quarto (28,5%) das respostas”, confirma o documento, que abarca idades em que alguns graus de identidade estão perfeitamente definidos.
Em muitas situações, aponta o dossiê da ILGA, “a escola parece assistir de forma passiva aos incidentes de bullying e discriminação”. Situações que as novas leis recentemente aprovadas pretendem combater. Abrindo portas à integração, fechando-as à discriminação e escancarando-as ao direito à diferença.
“Cada vez mais a ciência defende que a identidade de género abarca muitas diferenças e ambiguidades. É a forma de a própria ciência ser mais inclusiva e de a comunidade médica ter respostas para essas pessoas”, conclui o pedopsiquiatra Ivo Peixoto.