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O Miguel tem autismo e um melhor amigo: o cão Sinatra

«Eu e o Sinatra brincamos juntos, dormimos juntos, fazemos bolos juntos. Ele dorme comigo nos meus pés. No outro dia comeu o nariz do meu boneco novo, o Marshall, e ficou de castigo, dormiu no chão» Miguel
«Só eu é que tenho um cão assim especial. Durmo melhor quando durmo com o Sinatra porque ele não deixa entrar maus no meu quarto. Os maus têm medo do meu cão» Miguel
«O Sinatra entra em qualquer lado porque ele gosta muito de mim e porque eu sou lindo. Ah, e porque é do Benfica! O Sinatra pode entrar em todo o lado, tem um papel que diz que pode entrar em todo o lado, temos de dizer que ele é um cão de assistência» Miguel
«Um dia, quando Miguel voltou a adoecer, Mafalda e Daniel olharam para o Sinatra com outros olhos. Já tinham percebido que o filho se explicava melhor perante os médicos se o seu cão estivesse ao lado, mas isso só podia acontecer quando tinham consultas ao domicílio, o que nem sempre corria bem porque ou os médicos não estavam assim tão aptos para dar diagnósticos a crianças ou os médicos não estavam dispostos a dar consultas com um cão ao lado.»
«Mas se optassem por uma consulta num gabinete médico, Miguel iria fechar-se no seu mundo e o diagnóstico teria de ser feito quase por intuição dado que Miguel não iria falar.»
«Quando fomos para o supermercado, (…) parecia que ele já se tinha apercebido de que estava em modo trabalho e não cheirava nada. Foi incrível! A própria treinadora estava estupefacta. Disse mesmo que ele apanhava as informações muito rápido e que bastava apenas um toquezinho na trela para ele olhar» Daniel, pai do Miguel
«Mas ela também nos avisou que o Sinatra, como cão já adulto – ele tinha 5 anos na altura –, poderia ser teimoso em algumas situações e ser mais difícil de treinar, por isso tínhamos de ser exigentes.» Daniel, pai do Miguel
«O Miguel não falava connosco, só gritava. E com o Sinatra começou a falar! E agora, a esta distância, percebo que nós exigimos muito, queremos que ele faça isto e aquilo e o Sinatra não exigia nada. O Sinatra entrava na sala, deitava-se ao pé dele, o Miguel encostava-se e ficavam ali. O Sinatra ficava ali sem pedir nada, sem reclamar de nada, sem criticar nada. Ficava. Ponto. E isso, simplesmente isso, acalmava e relaxava o Miguel. Chama-se a isso amizade, não é?» Mafalda, mãe do Miguel
«É difícil explicar o quanto te devo, Sinatra. A ti devo o facto de o meu filho falar. Todos os dias o meu filho fala e até pode ser para cantar uma música “chichi e cocó na rua lalala”, que eu paro tudo o que estou a fazer para o ouvir. Porque me lembro sempre da altura em que não falava e pairava sempre a dúvida de se algum dia falaria. Sinatra, todos os dias eu recebo um prémio porque não há uma única vez que o Miguel fale e eu não fique feliz por ele se expressar tão bem. Sabes que sempre que ele chama por mim, eu rio-me? Sim, porque fico sempre tão feliz quando o oiço dizer “pai”.» Daniel, pai do Miguel
«Era cada vez mais visível a importância da presença de Sinatra para o Miguel. Se ele não estivesse, Miguel refugiava-se no seu mundinho e quase fugia dos pais. Se o Sinatra estivesse ao seu lado, Miguel vestia uma capa de super-herói e quase podia derrubar todos os inimigos que se quisessem aproximar. E foi nessa altura que Miguel começou a transpor para o “irmão” os seus sentimentos. Uma vez, quando adoeceu, o pai perguntou-lhe o que estava a sentir e Miguel respondeu prontamente: “o Sinatra deve estar doente, tem dores de barriga.”»

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Texto de Mónica Menezes | Fotografias de António Pedro Santos

Demorei algum tempo a descobrir «a» história. Cruzei-me com ela numa notícia do Jornal de Notícias que falava de cães de assistência e lá estava o Miguel e o Sinatra. Primeiro telefonema: Guilherme Pires, editor da Vogais. História aprovada. Segundo telefonema: Rui Elvas, presidente da Associação Portuguesa de Cães de Assistência. Contacto dos pais do Miguel arranjado. Terceiro telefonema: Mafalda, mãe do Miguel. Encontro marcado para dali a uns dias.

Conheci a família Vaz num campo de futebol no Lagoas Park, em Oeiras. O Miguel, equipamento do Benfica da cabeça aos pés, treinava com a equipa sob o olhar atento do pai, Daniel, e do Sinatra, o seu cão labrador. A mãe ficou a falar comigo na sala de espera e, de vez em quando, o Daniel e o Sinatra metiam-se na conversa.

Foi por sentirem Miguel mais corajoso e sociável sempre que tinha o cão ao lado, que Mafalda e Daniel começaram a pensar: «E se o Sinatra pudesse estar sempre ao lado do nosso filho? No cinema, no supermercado, num restaurante»

A Mafalda e o Daniel explicaram-me por alto a história do filho a quem tinha sido diagnosticado autismo aos 18 meses e a relação com o animal que já existia lá em casa quando o Miguel nasceu.

Foi por perceberem que havia uma ligação especial entre os dois, por verem que era Sinatra que acalmava Miguel, por se surpreenderem com as dores e as alegrias que o filho passava para o amigo de quatro patas e por sentirem Miguel mais corajoso e sociável sempre que tinha o cão ao lado, que Mafalda e Daniel começaram a pensar: «E se o Sinatra pudesse estar sempre ao lado do nosso filho? No cinema, no supermercado, num restaurante…»

E se…?

Tirei alguns apontamentos, com a hora do fim do treino a aproximar-se. Subitamente, dei por mim a ficar nervosa. Ia conhecer o Miguel, um menino de 4 anos, óculos azuis, benfiquista, autista.

Até àquele dia, pouco ou nada sabia sobre autismo. Tinha visto o Rain Man [Encontro de Irmãos] e só me lembrava de Dustin Hoffman a contar fósforos no chão.

O Miguel não me quis cumprimentar, mas nada de estranho, afinal devem ser raras as crianças que gostam de dar beijinhos a quem nunca viram na vida.

Tal como eu, foram muitas as vezes, confidenciou-me Mafalda depois, que quem os observava achou que o filho era um menino mimado e que os pais não tinham mão nele

Depois, lembro-me bem, fez uma birra porque o pai disse que não ia comer hambúrguer onde iam sempre depois do treino. Agora percebo que não era uma birra, não era uma forma de dizer que não gosta de ser contrariado, era apenas o quebrar das rotinas com que o Miguel não conseguia lidar.

Tal como eu, foram muitas as vezes, confidenciou-me a Mafalda depois, que quem os observava achou que o filho era um menino mimado e que os pais não tinham mão nele.

Mas não é essa a história do Miguel, do Sinatra, da Mafalda e do Daniel. Quando tudo ficou acertado para eu escrever o livro, estivemos juntos mais de uma dúzia de vezes. Entrevistei sempre os pais em separado e guardei para o fim a conversa com o Miguel.

A Mafalda sabia os pormenores todos, tinha as datas todas gravadas na cabeça, todos os momentos, bons e maus. Sempre falou sem pena de si própria, sem pena do filho. Lembro-me quando ela disse que tinha sido um alívio saber o diagnóstico. Fiquei intrigada. Mas fazia sentido, sim.

A mãe do Miguel chorou uma vez e também por uma vez perdeu o fôlego a contar todos os episódios por que passaram para transformarem o Sinatra no primeiro cão de assistência de uma criança autista em Portugal

Depois de meses sem perceberem o silêncio que se tinha instalado na sua família, o desconforto do Miguel, o mundo distante que ele estava a criar, sim, era um alívio saber o diagnóstico e pôr mãos à obra.

Sempre calma, sempre com um tom de voz sereno, aquela mãe foi-me contando toda a sua história. Chorou uma vez e também por uma vez perdeu o fôlego a contar todos os episódios por que passaram para transformarem o Sinatra no primeiro cão de assistência de uma criança autista em Portugal.

A maior parte dos encontros ocorreu na casa da família. Eu, a Mafalda e o Sinatra sempre, sempre, sempre perto de nós, sempre a trazer-me os brinquedos preferidos, sempre a exigir-nos atenção. Só era diferente quando o Miguel estava em casa, aí ele só tinha olhos para o seu menino, para as novas conquistas, para as brincadeiras, para as novas conquistas

«Olha, mãe, já lavei os dentes sozinho!»

Sempre achei piada à diferença de atitude do Sinatra se estava com ou sem o dorsal. Ou seja, se estava ou não a «trabalhar». Sem «farda» é um doido bem-disposto e muito beijoqueiro. Com «farda» é o funcionário do ano, sempre a desempenhar da melhor forma possível as suas tarefas.

As conversas com o Daniel foram diferentes das que tive com a Mafalda. Mais descontraído, mais brincalhão, mas também sempre sem pena de si próprio. A voz só perdeu energia quando falou da cumplicidade do Miguel com o Sinatra e do quanto deve ao seu labrador por ter agora um filho que fala e brinca como todas as crianças.

O Miguel nunca soube do seu diagnóstico. Felizmente, e porque a Mafalda e o Daniel são teimosos, o autismo foi descoberto tão precocemente que as terapias foram duras, mas eficazes

Só quando o livro já estava quase terminado, quando o Miguel já não olhava para mim como uma estranha, fui «entrevistá-lo». Assim mesmo, entre aspas, porque foi uma conversa divertida, enquanto tentávamos construir um carro dos bombeiros da Lego. Entre uma hélice e o piloto, um assento e umas luzes, o Miguel foi-me dizendo o seu nome completo, o que gosta de fazer com o Sinatra e porque é que o seu cão é tão especial.

O Miguel nunca soube do seu diagnóstico. Felizmente, e porque a Mafalda e o Daniel são teimosos, o autismo foi descoberto tão precocemente que as terapias foram duras, mas eficazes.

Hoje pode dizer-se que praticamente todos os sinais de autismo estão dissipados, e se há momento que não esqueço desde que conheci esta história, é o dia em que a Mafalda me telefonou a dar a boa-nova.

A batalha ainda não tinha chegado ao fim, ainda não era altura de baixar os braços, mas já se podia respirar de alívio. O caminho era, a partir daquele momento, cada vez menos tumultuoso.

O melhor desta minha história com a família Vaz é simples: é o abraço que o Miguel já dá quando me vê

O caminho que contou sempre com o carinho que só os animais sabem dar sem pedir nada em troca e que contou com a persistência de dois pais que, perante o decreto-lei nº 74/2007, de 27 de março – que consagra o direito de acesso das pessoas com deficiência acompanhadas de cães de assistência a locais, transportes e estabelecimentos de acesso público –, lutaram para o filho se tornar uma criança ainda mais feliz com o seu cão ao lado. Fosse onde fosse.

Durante seis meses fez parte da minha rotina falar com a Mafalda, o Daniel, o Miguel e o Sinatra. Aliás, mesmo depois de o livro ter sido entregue, continuamos a falar, a querer saber da vida uns dos outros. A verdade é que foi a mim que abriram o coração, foi comigo que partilharam momentos difíceis da sua vida e eu, como mãe, já não ouvia cada palavra apenas com um interesse profissional, mas sim com o interesse de quem quer contar e assistir a uma história com final feliz.

No fim, o melhor desta minha história com a família Vaz é simples: é o abraço que o Miguel já dá quando me vê, é o embrulho de papel que escondia um anel e que guardo numa gaveta a dizer «prenda da Mónica», escrito com uma letra tosca, de quem está a aprender a formar palavras, mas que quer agarrar o futuro com toda a energia e alegria possível. E guardo a confiança que a família depositou em mim para contar não uma história de um menino autista, mas sim a história de uma amizade especial de um menino especial com o seu cão especial.

Leia excertos do livro O meu cão e eu na fotogaleria acima.