E se o Big Brother não fosse assim tão big mas fosse, afinal, muito pequeno? E se o maior ataque à nossa privacidade não fosse, afinal, o Facebook, onde todos os dias postamos, voluntariamente, os nossos sentimentos mais íntimos, as nossas fotografias mais lá de casa e tudo o que nos define, mas fosse, afinal, alguém que faz isso tudo sem o nosso consentimento e da forma mais simples? E se a moda do confessionário – de nos abrirmos e ao que sentimos de mais profundo e o expormos ao mundo – passasse a depender não da nossa vontade mas da de alguém que, por nós, decidia revelar todos os factos da nossa vida do dia-a-dia? E se fosse possível seguir-nos para todo o lado sem nós sequer repararmos?
Nada disto é ficção científica. Pode ser bem real – não aquele real que atiramos para trás das costas com um encolher de ombros, mas real de agora e já. Tudo por causa de uma invenção tecnológica que tornou mais pequenos os aviões e mais móveis as câmaras de filmar e de fotografar. Tudo por causa, claro, da revolução digital, que tornou o som e a imagem, parada e em movimento, imaterial e, portanto, tão leve e transmissível quanto um bite.
E não, não estou a falar dos drones militares de milhares de euros que «não vemos» nas guerras modernas e vemos em séries como Homeland (Segurança Nacional) a seguir terroristas pelas montanhas do Paquistão. Quem se impressiona a ver como é que uma chefe da CIA consegue não saindo da sua anódina sala de comando, cheia de computadores e ecrãs, seguir um rapazinho nas suas deambulações pelas estradas poeirentas do Afeganistão, ou como consegue, ao telemóvel, ser o guia virtual do camarada encurralado no terreno da guerra civil, percebe minimamente do que estou a falar. Tudo isso pode acontecer não em cenário de guerra, ou seja, contra os maus da fita, mas com todos e cada um de nós, seres que nos consideramos relativamente inofensivos.
Um drone é um aviãozinho muito móvel que comandado à distância pode chegar onde quiser e «ver» qualquer coisa. E, como na maior parte das tecnologias, o seu uso marcará a benevolência ou o malefício que fará às nossas vidas. Porque uma coisa é certa: vai mudá-las. De certeza. Na edição de hoje damos conta do «estado da arte». E esse é o de se poder, hoje, comprar um drone por menos de cem euros. É verdade que também os há por muitos milhares – os que hão de vigiar as nossas florestas para que não as atinja o fogo, os que hão de rondar as fronteiras para que não passem por elas os que não desejamos. E até os há feitos em Portugal.
Disso tudo damos conta na reportagem que hoje publicamos. Disso e do novo desafio à nossa privacidade e ao recato da nossa vida privada que os drones representam. Vivemos numa era, talvez como nunca, em que os limites são desafiados, postos à prova – mostramos cada vez mais, protegemos cada vez menos. O que é um segredo quando toda a gente sabe que ele pode ser facilmente crackado pelo mais maçarico dos hackers? A partir do momento em que a tecnologia se tornou pessoal e nós, seres mutantes, a usamos como extensão de nós próprios – que mais não seja os nossos olhos, ouvidos – a fronteira entre o que é só nosso e o que é de todos tornou-se, na melhor das hipóteses, ténue, porosa, na pior, violada. E mudámos. Tornámo-nos ciborgues sem nos apercebermos bem disso. A fronteira, essa tem vindo a estreitar a esfera privada – do que resta, já hoje, muito pouco. O que mostramos é mais do que o que mantemos privado. E o Facebook é a prova disso. Mas… e quando esse for o menor dos nossos males? Pode ser para aí que nos encaminhamos.
[Publicado originalmente a 14 de dezembro de 2014]