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Ser Nazaré Álvares

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Acompanhar a pesquisa que Nazaré Álvares tem feito em torno do auto-retrato tem sido um tremendo privilégio. De algum modo, que a artista busque seu próprio rosto faz-me ter a impressão de que aquilo que verdadeiramente está em causa é fugidio, do foro do improvável, sem garantia nem equivalência. O seu próprio rosto, tão evidente quanto se vê, é afinal uma equação que não se resolve. Arrisca-se em hipóteses inúmeras, infinitas, mais correspondendo às oportunidades que a meditação e o talento oferecem do que à ciência que assiste a representação cabal de alguma coisa.

Tanto me parece que a Nazaré Álvares se esculpe quanto me leva a crer que se faz aparecer num jogo de adivinhação e magia. Pode ser que lide com sua própria figura como quem se sente soterrada no excesso da pedra, desbastando-se para se poder enxergar. Pode ser que leia pontos cardeais e deite os olhos aos materiais para que milagrem uma visão, como dizem das bolas de cristal ou das aparições que pairam sobre pastorinhos. O que me intriga é que a tentativa de se representar é sempre um jogo de escolhas e valerá por um instante ou para sempre. Nada está definido.

Gosto de artistas que se usam sem piedade. Gosto que a arte seja um território de frontal gesto, sem trégua, assacando a tudo quanto é vida, pensamento e emoção uma resposta que valha perante toda a angústia e todo o mistério. Tenho cada vez menos interesse no que resulta simplesmente belo, de uma beleza sem crise, sem pedir resistência ou apresentar dúvida. Recebo muito mais das obras que aceitam o lado incompleto e defeituoso de tudo, ponderando acerca da condição sempre falha de sermos gente. O que a Nazaré Álvares faz magistralmente passa por aqui. Uma impiedosa honestidade que a retira do comezinho das artes, que procuram simpatias e confortos, e a atira para o mundo dos raros que nos irão sempre dotar de grandeza a partir da insanável tormenta e perdição. De Goya a Aurélia de Sousa, de Freud a Paula Rego, o rosto de Nazaré Álvares é o ponto de chegada da linhagem mais temível e fundamental dos artistas de Mundo.

O Museu da Misericórdia do Porto abre ao público, no próximo dia 8, a exposição “Sou esta talvez outra que eu decida”. A coincidir com o Dia Internacional da Mulher, e, ainda na ressonância dos cem anos depois da morte de Aurélia de Sousa, Nazaré Álvares ocupa a sala que outrora a grande clássica pintora portuense também ocupou. O que significa que uma mulher se represente sem o adoçado das etiquetas, sem o recato das damas casadoiras e submissas, é o que me comove quer em Aurélia quer em Nazaré. O rosto das mulheres liberto do comando do homem, entregue ao poder e à vulnerabilidade que elas mesmas erguem como um direito. Fascina-me. Por ser uma lição de humanidade que urge, e por ser franco manifesto de lucidez. Consciência pura de si mesmo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)