As incubadoras que fazem crescer ideias em todo o país

Daniela, Marta, Sofia, Simão e Ludovic têm em comum estarem à frente de empresas nascidas e crescidas em incubadoras das universidades portuguesas. Partilham igualmente um dado geográfico: estão fora dos núcleos de negócio de Lisboa e Porto e veem nisso, mais do que um problema, uma força. As cinco empresas que representam, que vão de alguns meses de vida até uma década, são a prova que para lá dos centros urbanos também há empreendedorismo, prosperidade e sucesso.

Se tem um carro elétrico e vive em Portugal – ou até em Espanha ou em França – é provável que reconheça este nome: miio. Trata-se de uma aplicação para o telemóvel que tem como objetivo fundamental facilitar a vida dos detentores de automóveis elétricos. Pesquisar os postos de abastecimento mais próximos, com informação em tempo real da sua ocupação, iniciar, acompanhar e terminar uma sessão de carregamento à distância ou, até algo mais simples, saber quanto se iria pagar por determinado carregamento do carro era algo inexistente até Daniela Simões sentir esses problemas na pele. E fazer algo com eles: uma ideia, uma aplicação e uma empresa.

A jovem natural de Águeda, formada na Universidade de Aveiro e agora fixada nesta última cidade, é a cofundadora e CEO da Muvext, detentora da tal aplicação e que atua na área da mobilidade elétrica. Daniela e a sua empresa são um exemplo de tantos outros por todo o país: de jovens que encontraram nas incubadoras das universidades um apoio para desenvolver a sua ideia ou sonho de negócio. E que garantem que, nascidas e crescidas fora dos centros urbanos de Lisboa e do Porto, assim tencionam continuar fixadas. Mas a esse tema já iremos adiante. Para já, regressemos à mobilidade elétrica.

A miio é uma aplicação criada por Daniela Simões que facilita a vida dos utilizadores de veículos elétricos
(Foto: DR)

E regressemos ao tal problema inicial de Daniela Simões. Era 2019 e frequentava o mestrado de Engenharia de Computadores e Telemática, em Aveiro, quando teve a oportunidade de ter o primeiro carro. Porque não ser um carro elétrico? Face à sua vontade, ouviu de familiares e amigos todo o tipo de argumentos contra a mobilidade elétrica: porque nunca tinha experimentado, porque não há quem os arranje em caso de avaria, porque são demasiado dispendiosos.

A resolução que cresce

“Eu resolvo independentemente do que aconteça”, pensou Daniela na altura. Depois de receber o carro, houve um problema que se acrescentou a todos os outros vaticinados pelos mais próximos: “Eu não percebia nada de mobilidade elétrica e era inconveniente chegar a um posto de carregamento e não saber quanto tempo ia demorar a carregar, podiam ser 30 minutos ou 12 horas, qual o carregador indicado ou ter de esperar até ao final do mês para saber quanto gastei”.

Mas, tal como tinha prometido antes da compra, a jovem resolveu. Em conversa com o colega de licenciatura Rafael Ferreira, com quem partilhou o dilema pelo qual vinha a passar nas últimas semanas, ambos pensaram: “Porque não criamos algo que facilite este processo?” Assim foi. Daniela Simões conta que o primeiro passo foi de pesquisa. “Começámos a entrar nos grupos de Facebook para perceber o que é que as pessoas estavam a fazer para conseguir saber o preço do carregamento dos seus veículos e descobrimos que, ou ignoravam, ou havia quem andasse a preencher um Excel gigantesco de mais de dez linhas para conseguir saber o preço de uma única sessão de carregamento.” Um esforço inglório e que pareceu impraticável no dia a dia.

Havia então duas soluções: “Ou fazíamos algo com este problema que mudasse a vida dos outros, mas também a nossa, ou desfazíamo-nos dos carros elétricos, voltávamos à combustão e dávamos razão a toda a gente que nos desaconselhou a esta compra”. A segunda não era opção, por isso, um par de meses depois do problema inicial estava a nascer o que viria a ser a aplicação atualmente exclusiva em Portugal e líder de mercado em Espanha e França: a miio.

Ideias que simplificam

“A primeira aplicação era muito rudimentar, muito feia até, em que a única funcionalidade disponível era o cálculo do preço final de cada carregamento”, assinala Daniela Simões. Em suma, criaram um algoritmo que fizesse todas aquelas complicadas contas que muitos faziam de forma manual num Excel. “Quando partilhámos esta primeira versão nas nossas redes sociais, não prevíamos ter adesão, a ideia era que isto funcionasse para nós e para mais meia dúzia de pessoas”, recorda. A verdade é que foi uma questão de dias até que começassem a “cair” pedidos para colocar a aplicação nas lojas digitais, como a App Store ou a Play Store. “Esta disponibilização tinha o custo de cerca de 80 euros por ano, o que, para estudantes universitários, era um risco.”

Foi então que, em abril de 2019, se constituiu a empresa Muvext, como uma forma de oficializar esses primeiros gastos e de dar corpo à ideia. Ainda que a ideia tenha crescido independente da sala de aula – trata-se de um problema sentido fora da universidade, mas foi na licenciatura que Daniela e Rafael se conheceram e, durante o mestrado da jovem, já o atual CTO (cargo de diretor de tecnologia) estava no mercado de trabalho -, a UA Incubator, a incubadora da Universidade de Aveiro, entrou logo aqui no processo. Uma incubadora, tal como o próprio termo sugere, nada mais é do que uma instituição onde jovens empresas ou ideias encontram apoio de todo o tipo, financeiro, jurídico, de gestão, entre outros, para conseguir fazer singrar os seus negócios.

Em suma, é justo dizer que, apesar dos parcos quatro anos de existência, a miio revolucionou a mobilidade elétrica em Portugal. Até à chegada de Daniela Simões, do seu problema e da sua solução, além dos desafios já referidos, os utilizadores de carros elétricos que quiserem abastecer nos postos públicos tinham de solicitar um cartão físico, que poderia demorar semanas a chegar.

Expandir o negócio

Esta aplicação, completamente gratuita, simplifica todo o processo, “democratizando a mobilidade elétrica”, diz Daniela. Atualmente, a Muvext é muito mais do que a aplicação miio, tendo quatro grandes áreas de negócio: orientadas ao consumidor final, às empresas, aos parceiros do ecossistema e, por último, uma branch de e-commerce. A miio é líder em Portugal, uma vez que mais de 70% dos utilizadores nacionais de carros elétricos têm a aplicação instalada, e concorre com gigantes tecnológicas em Espanha e em França.

E será que todo o processo de desenvolvimento do negócio e de promoção junto dos clientes era mais fácil se estivesse nos núcleos comerciais de Lisboa ou do Porto? Daniela Simões não sabe, mas entende que pelo menos a passagem de conhecimento seria mais rápida e direta. “Eu nunca trabalhei no Porto ou em Lisboa, então não sei verdadeiramente qual é a diferença na pele, mas a incubadora foi essencial no nosso primeiro ano ao ensinar-nos tudo o que é necessário para criar e gerir uma empresa.”

Se tentasse aprender por conta própria, provavelmente teria de se ter deslocado (ou mesmo mudado) para Lisboa, onde se apercebe que a esmagadora maioria dos cursos e formações acontecem. “Mesmo agora, os eventos a que vou pela empresa são quase sempre na capital. Só há um, o Encontro Nacional de Veículos Elétricos, que se esforça por todos os anos rodar o local onde acontece”, salienta. De resto, são constantes as viagens a Lisboa, necessárias para fazer contactos essenciais à empresa.

Conhecimento centralizado

A mesma dificuldade de formação e contactos foi sentida por Marta Varela, criadora e responsável pela Milustra D’ouro, uma ideia que, hoje, é uma empresa com três ramos: a original, a Milustra Design e a Milustra Gifts.

Ao contrário da miio, uma ideia independente da universidade que foi à procura de apoio, a Milustra nasceu a ser pensada para um concurso. Marta Varela, licenciada em Ciência da Comunicação e, na altura, em 2019, desempregada, sempre com o “bichinho” de ter um negócio próprio, concorreu ao Startup Voucher, do IAPMEI (Agência para a Competitividade e Inovação). A ideia de negócio era criar merchandising alusivo à região de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde vive desde criança. De uma forma original, diferenciada dos básicos que se encontram nas lojas de souvenirs, Marta desenhou cadernos, agendas, tudo o que pudesse ser usado no dia a dia.

Marta Varela é a criadora dos produtos da Milustra D’ouro, apoiada pela incubadora da UTAD
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Tendo sido premiada no tal concurso do IAPMEI, a Milustra ganhou a oportunidade de ser acompanha pela incubadora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Marta Varela é um dos exemplos (tal como Daniela Simões) de que o investimento das incubadoras gera fixação de talento – um assunto tão falado atualmente a propósito da “fuga de cérebros” para o estrangeiro. Além de se fixarem em Portugal, fixam-se em áreas do país onde a prosperidade comercial nem sempre é tida em conta.

A incubadora é uma ajuda indispensável à saúde do negócio, garante Marta. “Empreender nem sempre é fácil, e como é um processo muitas vezes solitário, além de toda a ajuda, aqui encontramos outros empreendedores na mesma situação, acabamos por partilhar conhecimento e sentimo-nos menos sozinhos.” Dá mais motivação para continuar.

Criada em 2011, a Incubadora de Empresas da UTAD integrou a Rede Nacional de Incubadoras em 2016. Nos últimos seis anos, acolheu mais de 40 empresas e mais de 70 ideias de negócio através dos seus programas de capacitação, aceleração e mentoria. Destes números, destaca-se que pelo menos 20 empresas se tenham “emancipado”, ou seja, tornaram-se independentes depois do apoio dado pela incubadora.

Ligação às raízes

A Milustra ainda é uma criança, mas a ideia de Marta, que, para já, é a única funcionária, é fazê-la crescer. Ainda assim, a ideia de crescimento não afasta a marca das suas raízes. “Será para continuar fixada na região, mesmo depois de sair da incubadora, e será também para ajudar a economia local e contratar talento de cá.”

Ludovic Gago aproveitou a própria produção de medronho para inovar
(Foto: DR)

A forte ligação à terra (e a vontade de nela investir) é partilhada com o negócio de Ludovic Gago, atualmente apoiado pela incubadora da Universidade do Algarve. Antes de falar de dificuldades, percebamos o que é o Medronho in a Bottle. Não é aguardente, mas também não é uma cerveja. “Trata-se de um cocktail com 5% de álcool, engarrafado, e produzido com o licor de Medronho, típico cá da terra”, começa por explicar Ludovic. A ideia surgiu da experiência pessoal. Na verdade, da junção de duas experiências: em primeiro, o facto de, desde 2013, ser jovem agricultor e produtor de azeitona e medronho; em segundo, “e a fundamental”, por nunca ter sido amante de bebidas alcoólicas “fortes”. Por isso, criou a própria bebida. E com assinatura da sua terra.

Ludovic Gago criou uma nova bebida, de baixo teor alcoólico, com o fruto da sua região
(Foto: DR)

“Parece que este projeto já estava predestinado. Eu fiz o curso de Engenharia Eletrotécnica, nunca exerci, e ao criar este negócio tive de ir bater à porta da Engenharia Alimentar, que é do outro lado do corredor do meu departamento. Esteve sempre lá a rede de apoio, só faltava a ideia surgir.” Apesar de já não pisar na universidade há vários anos, Ludovic fez-se novamente ao caminho e foi em 2022 que pediu a ajuda do departamento da Universidade do Algarve, e da incubadora, para pôr a ideia a andar. Isto depois de ter visto a sua ideia reconhecida com um prémio de empreendedorismo. Tal como Marta Varela, ganhou a possibilidade de ter o apoio inicial da incubadora sem qualquer custo, o que ajudou a catapultar o negócio.

O projeto de Ludovic Gago tem o apoio da incubadora do Algarve
(Foto: DR)

Ainda que esteja numa rampa de crescimento, Ludovic Gago não deixa de refletir sobre o que poderia ser negociar em Lisboa ou no Porto. “Já enviamos amostras e proposta de distribuição para algumas grandes cadeias que não têm um único representante fora da capital. O resultado? Disseram logo que não.” Admite que a localização não é referida como o argumento para a recusa, “mas certamente pesa na decisão”. Principalmente porque Ludovic está agora perto de fechar negócio com uma distribuidora nacional, “aquela que tem um representante alocado” no Algarve. “Dá que pensar”, conclui.

Exportação facilita descentralização

Menos permeável às diferenças geográficas parece estar Simão Soares, representante da SilicoLife. Para entender a maior facilidade com a descentralização do negócio, primeiro, é preciso compreendê-lo. Neste caso, com um exemplo.

“Não trabalhamos com a baunilha, mas é fácil de perceber o processo que criamos através dessa analogia: o sabor da baunilha tem o seu mercado essencialmente assente em produção por síntese química a partir do petróleo. Há uns anos, começamos a ver a tendência de comprar vagens naturais, mais caras e com um impacto negativo nos territórios onde são plantadas. O que é que isto tem a ver com a biotecnologia? Com uma espécie de fermentação, da mesma maneira que se produz cerveja, pegamos em diferentes leveduras e bactérias e, em reatores de ambiente controlado, utilizámo-las para produzir os ingredientes que nos interessam, desde sabores, aditivos para a indústria alimentar, biocombustíveis, bioplásticos, entre outros.” Em suma, explica Simão, são criados laboratorialmente componentes de flores, alimentos, plantas, entre outros, o que supõe menos custos financeiros e ambientais.

Na SilicoLife, criada com o apoio e recursos humanos saídos da Universidade do Minho, são criados laboratorialmente compostos presentes em plantas e flores
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Ou seja, a SilicoLife baseia-se numa junção entre a área da biologia e a área computacional, para criar alternativas eficazes à produção de determinados compostos. A empresa de Simão Soares, nascida com a incubadora da Universidade do Minho, é uma das mais longas e prósperas startups em Portugal.

Um exemplo de sucesso

“Começámos em 2010, com ex-alunos, investigadores e professores da academia como prestadores de serviços e, recentemente, conseguimos uma ronda de investimento de risco que nos permitiu passar a produzir estes componentes para nós mesmos.” Deixaram de solucionar os problemas dos outros, para selecionar e solucionar os seus próprios. Nesta nova (e recente) fase, a empresa liderada por Simão já arrecadou duas patentes.

“A nossa empresa é um bocadinho anterior a esta vaga de empreendedorismo, que agora é mais falado, mas já na altura havia alguns concursos de ideias e, sem dúvida, a Universidade do Minho e a incubadora tiveram um papel importante a dinamizar a criação de empresas e o desenvolvimento de ideias na região.” A SilicoLife parece ser um caso de sucesso destes investimentos das academias. Atualmente, emprega 14 pessoas, quase todas vindas de outras partes do país, mas que se fixaram em Braga – tal como Simão, ex-estudante da UM, mas natural do Porto.

Vamos à grande questão. Estar fora dos dois grandes núcleos de Portugal dificulta esta entrada no mercado? Simão Soares afirma que “a primeira tentação é dizer que não”. “Desde o início termos muito claro que isto só funcionava numa lógica de exportação, facilitou a vida.” No entanto, apesar de longe dos núcleos urbanos, o responsável da SilicoLife realça que Braga é um “núcleo de talento”: “Partimos de uma área de conhecimento que na Universidade do Minho é muito ‘recrutável’, e isso permite-nos ter pessoas capazes que não são fáceis de conseguir em qualquer lado”.

Para um problema, uma solução

Igualmente saída quase do “laboratório” é a ideia – e posterior criação da empresa RDefine – de Sofia Viana, em colaboração com Flávio Reis. Tal como o problema dos veículos elétricos sentido por Daniela Simões, também o empreendedorismo da docente do Politécnico de Coimbra, da área da farmacologia, iniciou ao procurar uma solução para um problema do quotidiano.

A trabalhar em particular com a fase pré-clínica da investigação e desenvolvimento de medicamentos e produtos de saúde, Sofia Viana tinha, como em tantos laboratórios, de fazer estudo com ratinhos. “Quem tem um animal de estimação e já tentou dar-lhe um comprimido percebe o quão difícil é essa tarefa.” Nos ratinhos de laboratório não é diferente. Sem o entendimento do que é aquele componente, os animais não o comem por livre vontade (ou quando o fazem é impossível controlar em que quantidade, por exemplo).

Por isso, muitas vezes, são utilizados nestes animais para ensaios clínicos métodos invasivos, como tubos gástricos. “O problema é que estas formas de introduzir medicação têm impacto no ritmo cardíaco, no comportamento, entre outros, dos ratinhos, o que pode levar a que, nas conclusões do estudo, estejam em causa fatores que são externos e independentes do medicamento a ser testado.”

Conhecimento por um bem maior

Desta dificuldade, e através da empresa RDefine com o apoio da INOPOL, a academia de empreendedorismo do Politécnico de Coimbra, nasceu a HaPILLness, que na semana passada conseguiu ver aprovada a patente europeia do seu dispositivo: que nada mais é do que uma espécie de goma “que tem como característica principal ser desenhada tendo em conta as preferências destes animais”. “Portanto, conseguem incorporar um grande número de moléculas, são versáteis e eliminam os fatores externos que podem influenciar um estudo”, especifica Sofia Viana.

Uma colaboração entre o INOPOL, do Politécnico de Coimbra, e a Universidade de Coimbra levou à criação de um método eficaz e não invasivo de medicar animais
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Ao contrário da maioria das empresas e ideias de empreendedorismo, a docente adianta que, apesar de ser um dos objetivos, a vontade maior “não é apenas gerar valor com este possível produto, mas, sobretudo, tirar a tecnologia dos laboratórios, das universidades e dos politécnicos e pô-la à disposição de um conjunto muito mais elevado de instituições”. Porquê? Tudo isto em nome do bem-estar animal, já que, com esta “goma”, os ratinhos, ou outros, são poupados a intervenções invasivas.

(Foto: DR)

A tecnologia já foi reconhecida e premiada pela União Europeia, tendo-lhe atribuído o prémio pela European Partnership for Alternative Approaches to Animal Testing em 2021. Apesar de a HaPILLness ser o atual foco de desenvolvimento da empresa RDefine, outros métodos de “refinamento” (daí o nome) dos testes em animais estão ainda em estudo. Um dia, poderemos talvez dizer que a nova era para os ratinhos de laboratório teve origem em Portugal.