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Mulheres. Mais pressionadas, mais vulneráveis à depressão

Patrícia Moura Ramos já sofreu três episódios graves de depressão e publicou um livro para ajudar outros com a mesma doença (Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens)

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Doença afeta muito mais mulheres de que homens. Fatores biológicos, hormonais e sociais explicam risco acrescido, mas é necessário fazer mais estudos no feminino.

“É a Patrícia divertida, das festas, das viagens e da vontade imensa de aprender. Destemida, aventureira, sociável e determinada. Mas este rosto também é o da depressão.” A descrição é feita pela própria, Patrícia Moura Ramos, no livro que escreveu para “gritar ao Mundo” que a depressão é uma doença e que, por detrás de um sorriso, pode estar um problema de saúde incapacitante. Atualmente com 46 anos, já passou por três depressões “grandes” – chama-lhes assim para distinguir de outros episódios de menor dimensão que foi tendo ao longo da vida. A primeira foi logo aos 11 anos. A última durante o primeiro confinamento devido à pandemia de Sars-CoV-2. A depressão é doença multifatorial, mas no seu caso a perda de algo – um amigo, um familiar, o emprego – é o maior “gatilho” para os ataques de ansiedade e para a sintomatologia de depressão.

Agora escreveu um livro, uma edição de autor, intitulado “Tenho depressão, porra! – Um pequeno grande desabafo”. A vontade de “desabafar” por palavras o que pensa e sente já vinha das redes sociais, onde sempre deu “a cara pela doença”. Falava (e fala) abertamente sobre a depressão, como uma doença mental incapacitante e, ao longo dos anos, a caixa de mensagens foi-se enchendo de pedidos de ajuda e de dúvidas. Questionada se são mais mulheres ou homens que a abordam, afirma: “Nunca tinha pensado nisso, mas, fazendo as contas, o rácio de mulheres e homens que me contactam anda por volta de dez para um”.

A experiência de Patrícia Moura Ramos vai ao encontro dos estudos realizados na área da saúde mental. A nível global, os últimos números da Organização Mundial de Saúde, datados de 2015, estimavam que mais de 300 milhões de pessoas sofriam de depressão. Com grandes diferenças de género: 5,1% das mulheres apresentam essa perturbação do humor, enquanto a prevalência nos homens se fica pelos 3,6%. Os dados portugueses não são mais recentes ou animadores. De acordo com o Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, realizado pela Direção-Geral da Saúde (DGS) em 2013, quase 8% da população portuguesa sofre desse problema, sendo as mulheres duas vezes mais afetadas do que os homens. Há discrepâncias também ao nível da gravidade, destaca o psiquiatra Miguel Bajouco: “Dos pacientes com perturbações depressivas, 3% dos homens são afetados por formas graves da doença, ao passo que, para as pacientes do sexo feminino, a incidência chega aos 9%”.

[Foto Patrícia Moura Ramos Aqui]

Mas porquê as diferenças de género? A resposta está nos fatores hormonais, biológicos e sociais. Quando se fala no aspeto hormonal, o médico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra explica que as mulheres estão, por diversas condições e fases da vida, expostas a uma maior “flutuação hormonal”, que afeta, sobretudo, os níveis de serotonina, comummente conhecida como “molécula da felicidade”. São dois os picos de incidência de depressão ao longo da vida que é necessário prestar atenção: a puberdade e a menopausa. Na adolescência, contam também outras condicionantes, como a pressão académica, social, familiar e até a descoberta sexual, que pressionam, por questões sociais e educacionais, mais as raparigas do que os rapazes. Décadas mais tarde, já na menopausa, a par com as flutuações de hormonas, as transformações no corpo, os sintomas associados a esta fase e a alteração a nível sexual, com perda de libido, têm um papel preponderante no aumento do risco de desenvolver quadros depressivos.

Mas não são apenas estas duas fases que destacam as mulheres no risco de desenvolver patologia depressiva. Também o período menstrual e a gravidez são determinantes para o referido fator hormonal. Segundo o psiquiatra Miguel Bajouco, 10 a 15% das grávidas desenvolvem quadros depressivos. Numa fase da vida inerentemente associada a alterações hormonais, também a “falta de suporte emocional, a responsabilidade de cuidar de um bebé, o desafio da amamentação e as alterações no sono” são fatores potenciadores do risco de depressão.

Diferenças biológicas – o que falta saber

Os fatores biológicos também entram na equação, mas as dúvidas acumulam-se. Luísa Pinto, neurocientista do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde da Universidade do Minho, realça que, apesar de se saber que a depressão é duas vezes mais prevalecente em mulheres, “o mecanismo neurobiológico por detrás ainda não é conhecido”. Ou seja, ainda não se entende o que acontece de diferente no “corpo” das mulheres para este maior risco. E, embora os estudos na área estejam a evoluir positivamente, a investigadora refere que um dos problemas é o facto de a maioria dos estudos pré-clínicos (ou seja, com animais) serem realizados com machos, deixando possíveis diferenças de reação entre géneros sem análise. “O feminino é o sexo que ainda não conseguimos compreender totalmente porque não é devidamente estudado.” Está em curso uma investigação estudo no Hospital de Braga, no qual participa Luísa Pinto, que analisa, através de ressonância magnética, a reação do cérebro antes e após a toma de antidepressivos. Um dos objetivos é precisamente averiguar se a eficácia da farmacologia é distinta em homens e mulheres.

“O feminino é o sexo que ainda não conseguimos compreender totalmente porque não é devidamente estudado”, reconhece a investigadora Luísa Pinto (Foto: DR)

Por fim, na balança do risco de desenvolver depressão, as circunstâncias sociais colocam um grande peso sobre as mulheres. Inês Oliveira, psicóloga clínica, coloca o foco nos variados elementos de stress a que as mulheres estão expostas. Pressão para uma imagem corporal irrealmente padronizada, desigualdades laborais e nas tarefas domésticas e o rótulo de cuidadoras naturais da casa. “As mulheres desempenham muitos papéis fulcrais, desde a parentalidade, à vida doméstica e à pressão para conjugar tudo isso com uma carreira profissional de sucesso – tudo fatores de grande ansiedade que aumentam o risco de depressão”, analisa a psicóloga.

Além disso, as mulheres estão mais expostas a traumas, como violações, abusos sexuais ou psicológicos, sublinha Miguel Bajouco. Há ainda o risco acrescido de comorbilidades, já que a prevalência de outras patologias de foro psiquiátrico, como a ansiedade, a anorexia ou a bulimia, é mais elevada no sexo feminino. Por último, há ainda a considerar os aspetos individuais, como traços de personalidade, que desempenham um papel relevante no risco de desenvolver depressão. De acordo com o psiquiatra, “as mulheres têm maior tendência para o neuroticismo, também conhecido como instabilidade emocional, que lhes causa um grande desgaste pela continuada e excessiva preocupação com diversos assuntos”.

“As mulheres chegam à consulta com os papéis e responsabilidades naturalmente enraizados e só depois é possível desconstruí-los”, afiança a psicóloga Inês Oliveira (Foto: DR)

Luísa Pinto lembra que os fatores ambientais, apesar de pesarem em ambos os géneros, são mais “perigosos” no caso do sexo feminino. E exemplifica: “Qualquer problema do foro privado que aconteça, como uma zanga com um vizinho, por exemplo, está provado que irá ter um impacto muito maior na mulher do que no homem”.

Metade das portuguesas já pediu ajuda profissional

Mais vulneráveis, as mulheres tomam mais a iniciativa de pedir ajuda profissional. O estudo epidemiológico realizado pela DGS em 2013 dá conta de que 48,8% das mulheres portugueses já recorreram, ao longo da vida, a algum tipo de serviço de saúde mental. No caso do sexo masculino, a percentagem baixa para os 18,8%. A experiência clínica de Inês Oliveira confirma estes dados, sendo a maioria dos seus pacientes do sexo feminino. Nas mulheres que acompanha, a psicóloga nota um padrão nos motivos que espoletam episódios depressivos: o peso dos papéis que lhe são atribuídos. “No entanto, não é consciente, as mulheres chegam à consulta com os papéis e responsabilidades naturalmente enraizados e só depois é possível desconstruí-los e perceber que são uma fonte de grande ansiedade.”

A dissolução das várias pressões excessivas colocadas sobre a mulher é, para Inês Oliveira, a solução para aliviar os números da depressão. A psicóloga clínica frisa que “se fala muito do assunto, mas não há uma intervenção a fundo”. Miguel Bajouco corrobora, acreditando que a progressão da sociedade, com papéis equitativos entre os géneros, “diminuirá a carga que a mulher tem em determinadas áreas sociais e familiares e que são de risco elevado para a saúde geral, mental e, em particular, para a depressão”. A nível dos serviços de saúde, é fundamental uma maior atenção naqueles que já são assinalados como picos de maior risco de depressão para as mulheres. “Se sabemos que na puberdade e na menopausa há fatores de perigo acrescidos, é importante reforçar o apoio nestas fases. Questionar e informar os pacientes”, defende o psiquiatra.

“Se sabemos que na puberdade e na menopausa há fatores de perigo acrescidos, é importante reforçar o apoio nestas fases”, garante Miguel Bajouco (Foto: DR)

Patrícia Moura Ramos teve recentemente o diagnóstico de depressão de longa duração. “Há pessoas que não assimilam insulina e têm diabetes, eu tenho um problema no sistema nervoso central.” Ainda que não reconheça como causa principal da sua doença questões associadas ao seu género, Patrícia acredita que os fatores hormonais têm um papel relevante. A diretora de marketing e comunicação deseja que o cérebro seja mais estudado, para que se percebam os fundamentos biológicos da sua doença. Mas, acima de tudo, quer que “entendam de uma vez por todas que [a depressão] é uma doença”, frase com que encerra o livro que publicou. Uma doença que não pode ser tratada “pelos amigos, pela família ou pelo namorado”, é preciso a intervenção de um profissional de saúde. Normalizar e aceitar que pedir ajudar é um sinal de coragem é a mensagem final que Patrícia Moura Ramos quer passar.


5,1% das mulheres apresentam perturbações depressivas e a prevalência nos homens fica-se pelos 3,6% a nível mundial


7,9% da população portuguesa sofre de depressão, segundo um estudo da DGS


48,8% das mulheres portuguesas já recorreram a serviços de saúde mental ao longo da vida, enquanto apenas 18,8% dos homens o fizeram