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O verão sem música dos cantores ligeiros

Com a música em banho-maria, Nel Monteiro dedica-se ao negócio de venda de carros usados e às lides domésticas (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

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Um ano sem arraiais e romarias, concertos cancelados, espetáculos adiados. Os cantores de música ligeira não amocham. E como vivem este confinamento? Quim Barreiros tem ido à pesca. Ágata abriu um espaço de terapias alternativas e faz reiki. Nel Monteiro vende carros e arruma a casa. Toy explora as plataformas digitais e tem quatro novos temas. Ana põe batom e espera comemorar os 40 anos de carreira.

Quim Barreiros sabe exatamente o número de concertos que foram adiados para o próximo ano: 124 espetáculos que, de repente, desapareceram da sua agenda. Queimas das fitas, arraiais, romarias, festas populares por todo o país. Claro que para um homem que anda na estrada há meio século, todos os anos, tudo isto é estranho. “Tenho a impressão de que ando noutro planeta. Não há trabalho, não deixam trabalhar uns, outros trabalham, é confuso.”

Há dias em que se sente, confessa, como “um tolo no meio da ponte”. A pandemia encravou-lhe a altura mais ocupada e agitada do ano. “A gente está habituada a andar com a gaita e agora a gaita está metida no saco. É o diabo.” Um diabo que chegou sem pedir licença e que complicou a vida dos artistas. “Há muita gente da minha profissão, gente que colabora comigo, que não está bem, que está em maus lençóis.” Parados, suspensos, coração nas mãos. “Tenho de me conformar, não é só comigo, é com todos. Mas há uma coisa muito importante: estamos vivos e vamos tentando andar para a frente.”

Em pouco tempo, Ágata viu desaparecer os nove concertos que tinha agendados até ao final de maio, mais um no Coliseu de Lisboa que ia acontecer no final de outubro e, no verão, com certeza, o calendário ficaria preenchido, pois já tinha mais de 30 espetáculos em negociação. “O pior de tudo é que não houve remarcações para o ano que vem”, revela. Tudo caiu de um dia para o outro, as comissões de festas não arriscam reagendar espetáculos sem saberem se estarão no ativo no próximo ano. A cantora percebe. “Temos de aceitar para bem de todos. Ninguém estava a contar com uma situação destas que nos deixou em stand by. Temos de esperar, ter fé, ter esperança.” Esperar por dias melhores, um futuro que tarda em chegar. Cruzou-se com a manifestação dos profissionais itinerantes em Lisboa e confirmou a angústia que consome tanta gente. Uma agonia geral. “Está tudo muito afetado, os técnicos, os donos de carrosséis, quem investiu em som e música, em tudo o que é festa.”

Nel Monteiro, 75 anos de vida, 36 de carreira na música popular portuguesa, ia ter um ano em grande. Procura acentuada, contactos, pedidos de orçamento, muita estrada para andar, grandes festas no trajeto. À primeira vista, não havia nada para correr mal, mas correu. Os 25 concertos que já estavam fechados, com tudo acertado, não vão acontecer, espera agora que sejam remarcados para o ano. Os muitos que aguardava ficaram pelo caminho. “Já esfregava as mãos e depois veio isto. Não sou só eu, é toda a malta. É o destino de um planeta.” O cantor não tem dúvidas: “Este ano está perdido”.

Toy passa mais tempo com a família, bastante tempo online, em entrevistas e conversas, e escreveu canções
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Estica de um lado, estica do outro, dia após dia, a vida vai-se levando, compromissos financeiros para cumprir. “Eu sempre fiz uma vida de acordo com a agenda que tinha, uma vida razoável.” Garante que tem tudo em dia. “Não estou à espera que o Estado me dê nada. As artes ficaram de parte, há apoios para tudo e não há para nós.”

O discurso é de desalento perante a atual situação pandémica, a que chama “esta desgraça”, e, ao mesmo tempo, há esperança no que ainda há de vir. “Não estamos bem. Os artistas estão a viver do que juntaram, e que não dura sempre, e é uma aflição.” Nel Monteiro continua a ser requisitado pelas televisões. “O que é muito bom, as pessoas sabem que estamos cá, em força, aptos para a nossa profissão.” Ainda há dias lhe disseram que tinha a genica de um trintão. De qualquer forma, o cantor quer gravar pelo menos dois temas para disponibilizar em plataformas digitais. A ideia, já se sabe, é fazer-se ouvir nas rádios, nas televisões, nos meios tecnológicos. “Para dizer que estou cá, que estou acordado, que quero trabalhar.” Gravar um CD não compensa, explica, é o dinheiro que se gasta, é material que já não se vende.

Resumindo e concluindo: tudo parado

Toy, nome artístico de António Ferrão, levou um rombo na sua agenda de um ano que prometia ser dos melhores, a par do ano que passou. “Toda a noite” continua no ouvido de muita gente, e tantos outros dos seus hits. Teve de travar a fundo quando já ia com 87 concertos marcados para todo o lado e, por aquele andar, ultrapassaria a centena antes de o verão chegar. O São João no Porto, a Feira de São Mateus em Viseu, as festas da Lousã e da Sertã, os santos populares. Tanta coisa, tudo desmarcado. A contabilidade, ainda assim, aguenta-se um pouco: 85% dos concertos foram adiados, 15% cancelados. A 18 de julho, tem um show num drive-in na Figueira da Foz, sem banda completa. A agenda de verão compõe-se um pouco com alguns eventos privados, cantorias no palco sobre rodas do trio elétrico, programas de televisão. Mesmo assim, terá muito menos quilómetros de estrada, menos palcos, menos festas e romarias em 2020. Mas, enquanto houver estrada para andar, é para continuar. Dê por onde der. “O Mundo não pode parar, a economia não pode parar completamente.”

Toy anda incrédulo com algumas decisões que considera precipitadas e com o que vai acontecendo dia após dia. Muitas câmaras municipais cancelaram as licenças para as festas até ao final do ano, as comissões de festas não puderam fazer os habituais peditórios e angariações de fundos para os cartazes habituais dos arraiais e romarias. Mas o setor da restauração reabriu e está a trabalhar com regras definidas. O cantor percebe tudo o que é dito sobre o cumprimento das normas de segurança sanitária, até porque se trata de um assunto de saúde pública, mas vê incongruências. “Percebemos tudo, só não percebo o que o Ministério da Cultura (MC) fez, não me lembro de uma única medida que tivesse tomado”, aponta. “A cultura é o parente pobre da política e a música é o parente pobre da cultura. Ninguém quer saber de nós. Os 23% do IVA estão muito mal explicados e, nesta altura, o IRC das empresas de eventos, de luz e som, devia ser revisto.” Toy não se cala. “Há falta de sensibilidade ou falta de trabalho, não faço a mínima ideia.” O cantor fala na Associação dos Músicos Portugueses que está a ser criada com solidez. “Falta-nos o estatuto cultural de músico.” A cultura, na sua opinião, deveria ser olhada de uma outra forma, a bem do país.

Ana começou o ano em grande, com uma homenagem aos 40 anos de carreira na Junta de Freguesia de São Domingos de Rana, em Cascais, com António Sala, seu padrinho artístico, na plateia. A cantora lançou, em estreia absoluta, o videoclipe “Um segredo que não vi”, de uma balada retirada do seu último álbum, e houve festa. A promoção estava em velocidade de cruzeiro, concertos marcados, outros em perspetiva. “Estava muito feliz. Este ano seria o meu ano com tanta coisa bonita para acontecer”, conta. Daqui a dias, a 4 de julho, tinha concerto no Casino Estoril. Não vai acontecer. O projeto com Ágata de gravarem, em conjunto, temas de Cândida Branca Flor está em banho-maria. A mudança de casa, comprada antes da pandemia, está suspensa. “Resumindo e concluindo: ficou tudo parado.”

Ana está a celebrar 40 anos de carreira. A nova realidade emagreceu-lhe o corpo. Agora, trata das arrumações domésticas e tem feito bolos que não confecionava há muito
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Um vírus instalou-se sem aviso e puxou-lhe o tapete. Ana tem pensado em muita gente, nos colegas, nos que tocam, nos que cantam. “Fomos os primeiros a deixar de trabalhar e seremos, talvez, os últimos a começar a trabalhar”, realça.

Canta desde os 16 anos e agora são 40 de concertos, espetáculos, festas, programas de televisão. Muitos palcos, muita estrada. “Nós, os artistas, devíamos ser mais unidos para termos quem nos defendesse, não há sindicato nenhum, a realidade é esta.”

O MC sabe que o setor está em sofrimento, que há um antes e um depois da pandemia, deste tempo que tem abanado a sociedade e a economia. “O futuro é exigente. Este verão estaremos ainda condicionados na realização de festas populares, arraiais, romarias, um pouco por todo o país. Sabemos da sua importância quer para os artistas, quer para as pessoas que se reúnem e, muitas vezes, se reencontram nestas festas. Sabemos que nada as substitui”, refere o gabinete da ministra da Cultura à “Notícias Magazine”.

O impacto é tremendo e o Ministério refere que o trabalho é diário, em colaboração com a Direção-Geral da Saúde, para definir medidas adequadas a cada fase, para que tudo decorra em segurança e com confiança para público, artistas, técnicos, trabalhadores. O MC garante, por outro lado, que o orçamento público para a cultura cresceu 40% nos últimos cinco anos e que, nesta altura, o investimento em políticas públicas é ainda mais urgente.

“Nestes últimos três meses, e especificamente para respondermos aos efeitos da pandemia, às linhas de apoio transversal somámos linhas de apoios setoriais de emergência: 1 milhão e 700 mil euros para as Artes, 400 mil para o Livro (apoio a livrarias e editoras), 15 milhões destinados à Comunicação Social, através da compra antecipada de publicidade institucional. Já este mês garantimos que o Programa de Estabilização Económica e Social preveja um pacote financeiro de 34 milhões de euros para a Cultura, a que se juntam 30 milhões de euros, via fundos comunitários, para programação cultural com os municípios”, especifica o gabinete de Graça Fonseca. A elaboração do estatuto do trabalhador da Cultura é um dos seus objetivos mais imediatos. Um assunto que tem estado em cima da mesa.

Família, amigos, casa. E um vírus que não sossega

Quim Barreiros aproveita o tempo de confinamento para compor novas letras, novas músicas, mas nem uma nota dedicada ao vírus, nem um trocadilho maroto inspirado na covid-19. “Não faço. A pandemia é para esquecer. Tudo o que tem a ver com a doença é para esquecer e nunca mais lembrar”, assinala. Passa os dias sem agenda predefinida, aproveitou para arrumar os escritórios, anda a tratar dos legumes da horta da sua quinta, em Vila Praia de Âncora, tem ido à pesca. Teve sorte, há dias levou um balde cheio de peixe para casa.

“Tenho estado com amigos que já não estava há muito tempo, tenho posto os jantares em dia. Procuro distrair-me, ando a tomar conta dos tomates e dos pepinos da quinta”, diz e ri-se. Há mais tempo livre e mais horas disponíveis para a família. “Sou casado há 45 anos e só agora é que sei o que é ser casado, o que é dormir dois meses seguidos com a minha mulher.” Seja como for, com a vida familiar em dia, há todo outro mundo por acontecer. “A malta tem saudades da estrada. Penso, embora as coisas mudem todos os dias, que ainda vou fazer as próximas receções aos caloiros das universidades.” O cantor acredita que esta fase má vai passar e assegura que não terá nem um pingo de saudade deste tempo estranho e confuso.

Ágata não ficou parada durante a pandemia e, há mês e meio, abriu um espaço de terapias alternativas, “Essência da Vida”, junto à Praça de Londres, em Lisboa, onde faz reiki. Não se acanhou no novo negócio, há quem lhe chame mulher dos sete ofícios, ela reconhece que é “bastante dinâmica”. Uma aposta pensada, de alguma forma, para as atuais circunstâncias, com hipnoterapia, massagens, ioga, acupuntura, leitura da aura, tarot. “Sabia que tinha de fazer qualquer coisa, não podia ficar parada. Era uma questão de juntar pessoas boas em várias áreas e reunir condições”, adianta.

Quim Barreiros viu desaparecerem da agenda 124 espetáculos. Bem-disposto, diz que agora se dedica à pesca. E até exemplificou na piscina de casa
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

A música não ficou de parte, a cantora está em estúdio a gravar um tema por semana, canções românticas cantadas em espanhol e outras relacionadas com a sua carreira, como um fado-canção ao piano do início da caminhada musical. Gravar um videoclipe nesta altura não vai dar devido ao contexto. Logo se verá. Ágata não sabe como será o futuro. “Não sei se este vírus vai fugir de repente.” Cruzar os braços é que não, mais tempo na cozinha, reiki no seu novo espaço, canções no estúdio. “Não desisto, estou a dar os passos com todo o cuidado possível, a proteger a saúde. Esperemos que haja um milagre. Não se pode viver sem festa porque é ela que nos vai alimentando a alma”, sublinha.

Nel Monteiro nunca foi de cruzar os braços e sabe desde cedo, desde muito novo, o que custa a vida. Pisou uvas, fez vinho e azeite, trabalhou na construção civil, pintou casas, trabalhou nos caminhos de ferro, até enveredar pela carreira musical. Agora, com o confinamento, passa mais tempo com a família, não se lembra, aliás, de estar tanto tempo em casa, em Albergaria-a-Velha. Os dias parecem-lhe mais longos. Dedica-se mais ao seu negócio de venda de carros usados, tem uma parceria com um stand e um negócio próprio, tem viaturas de 1997 a 2019. São os anúncios na internet, são os telefonemas. Mais tempo em casa significa mais coisas para arrumar. Nel Monteiro faz camas, lava louça, varre o chão, dedica algum do seu tempo às lides domésticas. Adianta que faz uma boa sopa, mas prefere não interferir na mão e na arte da “rainha da gastronomia”, como chama à mulher. “Em casa, há sempre alguma coisa para fazer, arruma-se isto, arruma-se aquilo, altera-se isto, altera-se aquilo…, joga-se às cartas, passa-se o tempo a ver se o sol brilha.”

O cantor espera sinais de melhorias, sente que o contágio está a aumentar, as festas não autorizadas causam-lhe apreensão. “Já estivemos melhor, isto não está risonho”, comenta. “É uma praga, isto veio para ficar, e não me parece que haverá hipótese para eliminar tudo isto de uma vez e para sempre.” Por vezes, pensa que tudo isto é um comércio para fazer um medicamento, destruir dinheiro primeiro para ganhar muito dinheiro depois. Pensamentos em tempos de pandemia. Mas sempre com as devidas precauções. O cantor confessa que se “encharca em álcool-gel” logo que se levanta da cama. E imagina-se em palco ainda este ano? “Este ano? Não sei. Estão a ser feitos uns espetáculos, quase como experiência, para ver como isto se comporta.” De uma coisa tem certeza, das saudades das viagens por este Portugal fora. “De sair para qualquer lugar, essa alegria, até isso nos faz falta.” Afinal de contas, são muitos anos de estrada.

Toy é despachado. “O que estou a fazer? A trabalhar muito.” Tem feito contactos com empresas e empresários, comissões de festas, câmaras municipais. Não quer ficar parado todo o ano, a sua escola de futebol em Setúbal ainda não reabriu, quer continuar a dar trabalho à sua equipa, organiza-se como pode, e não pára. À distância, cada um em sua casa, gravou quatro temas com os seus músicos. Toy abre o apetite sobre as novas canções: uma balada romântica, outra mais latina, uma inspirada no heavy metal e outra divertida, muito verão, muito dançável. “São quatro temas completamente diferentes”, atira. O primeiro acaba de ser lançado com o nome “Verão e amor, cerveja no congelador”. O EP está gravado, será disponibilizado nas plataformas digitais, os temas sairão um de cada vez.

Na primeira fase da quarentena, Toy passou mais tempo com a família, bastante tempo online em entrevistas e conversas, mais tempo no Facebook e no Instagram, escreveu canções. “Aprendi a trabalhar com plataformas digitais de uma forma que não sabia”, admite. As adversidades nunca o assustaram, não era agora que isso ia acontecer. “Chegou a hora de lutar outra vez, é o mínimo que tenho de fazer.” Acredita que o vírus vai perder força e enfraquecer. “A pandemia será uma endemia, haverá um medicamento seguro e eficaz, e as pessoas vão viver com isso.”

Ágata não ficou parada durante a pandemia. Há mês e meio, abriu um espaço de terapias alternativas, “Essência da Vida”, junto à Praça de Londres, em Lisboa, onde faz reiki
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Ana também não amocha e, apesar das circunstâncias, continua a pôr batom nos lábios mesmo que seja para ficar em casa e não ir a lado algum. “Para me sentir bem.” A nova realidade emagreceu-lhe o corpo, trouxe-lhe mais stresse. Tratou das arrumações domésticas, tem feito bolos que já não fazia há 20 anos. Entretanto, trouxe para o pé de si a madrinha, que é como uma mãe, que vivia sozinha.

A cantora está apreensiva com os aglomerados e ajuntamentos que vai vendo, com as notícias que vão chegando. “As pessoas têm de ter consciência de que isto não é brincadeira. O Universo está a pôr-nos à prova.” A esperança de que tudo passe não esmorece. “Tenho fé que vai haver uma vacina ou então um medicamento para que possamos ficar mais descansados.” E também tem fé que vai voltar ao estúdio.

O verão, já se sabe, não será igual a nenhum outro. Seja como for, enquanto houver estrada para andar, ninguém vai parar de cantar.