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“Estou Além”

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Não sei que idade tinha, mas era muito pequena. Estava a dar um programa de Verão, daqueles que ainda hoje se repetem nas grelhas de programação da televisão portuguesa. Havia um palco em cima da areia da praia, um apresentador, que não tenho a certeza de ser o mítico Júlio Isidro, e muita gente a ver. Ao longo do programa, às entrevistas ia-se seguindo a música.

A televisão a cores havia chegado há pouco tempo lá a casa. Tinha sido um acontecimento solene, com os senhores a acartar a dita da entrada até à sala de estar. O meu pai carregava freneticamente nos botões para sintonizar os dois canais e, de repente, fez-se cor. Não me lembro de haver outra televisão lá em casa, mas houve. A velhinha televisão a preto e branco, que durante anos deu as notícias e permitiu conhecer as aventuras da “Gabriela, Cravo e Canela” original, acabou por ir parar ao meu quarto, depois de alguns anos desligada. A nova televisão mostrava o mesmo, mas com as cores da vida.

E foi assim que me lembro de ver pela primeira vez António Variações. No programa de Verão, a cantar e a dançar como nunca tinha visto ninguém. As suas roupas eram diferentes das que estava habituada a ver nas outras pessoas, a forma como estava em palco também. Na altura, não tinha maturidade para perceber o alcance da sua música, mas algo me dizia que ali estava alguém de quem gostava.

Não me lembro da notícia da morte de Variações, mas a música que deixou é tão viva e tão actual que é quase como se a pessoa nunca tivesse desaparecido. Como se ainda cá estivesse a observar-nos e a contar como somos. A confidenciar-nos histórias de vida, a partilhar as suas reflexões, a sua filosofia simples e clara. A pegar nas tradições musicais e a misturá-las com o tempo presente. Foi tão importante o seu legado musical que, não tendo havido Variações, dificilmente uma boa parte das propostas musicais que hoje trabalham sobre as tradições o fariam da mesma forma.

Em Variações tudo era pessoal e único, sem deixar de ser universal. Não me recordo de como as pessoas o viam na sua altura, mas imagino que o Portugal dos anos 80 o tenha recebido com algumas reservas. Era tão à frente do seu tempo que provavelmente terá incomodado o status quo da altura. No entanto, foi essa sua singularidade, a sua destemida convicção em nunca se trair que fez com que a sua voz ainda falasse às gerações de hoje, embaladas pelo tributo “Humanos”.

A geração que não o conheceu em vida pôde conhecê-lo muitos anos depois da sua morte. E as gerações que o tinham quase esquecido voltaram a lembrar o seu génio. A Deolinda não seria a mesma sem António Variações e sem os Humanos. Desde o trabalho com a tradição, até ao contar aquilo que observamos, tudo aquilo que representa o trabalho de Variações influenciou o nosso trabalho criativo e artístico.

É por isso que ficámos tão contentes por estarmos presentes numa homenagem que irá ser feita ao mestre e que contará com Gisela João, Linda Martini e Rui Pregal da Cunha e Paulo Pedro Gonçalves. Primeiro, porque irá ser um desafio interessante trabalhar as suas canções sem perder a essência de Variações e de Deolinda. Depois, porque nos vai permitir trabalhar com alguns músicos de cujo trabalho somos fãs (e há tanto tempo que brincávamos com os Linda Martini sobre um dia juntarmos as duas bandas em concerto para formar os Deolinda Martini!). E, principalmente, porque, desde aquele momento, num Verão passado há muito, muito tempo, que na minha cabeça ficaram as suas palavras, como um mapa para a minha alma permanentemente insatisfeita. “Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar”.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[Publicado originalmente na edição de 20 de abril de 2014]