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A guerra da matrícula provocadora

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Na semana passada, houve uma II Guerra Inglaterra-Ar­gentina, e nós quase sem dar por nada. Também é verdade que com esses dois as causas da guerra são sempre ninharias. Da outra vez foi por uma ilha com ovelhas e, desta, nem isso: foi por causa de uma matrícula de automóvel. Habituados que estamos agora a guerras de civilizações, como nos interessar por um conflito que geralmen­te não mobiliza senão um motociclista da Divisão de Trânsito? Ain­da por cima passou-se mais longe era impossível, em Ushuaia, na Terra do Fogo.

Lá vou como correspondente de guerra, sem o habitual colete de grande repórter e vários bolsos, mas de colete refletor, porque o as­sunto puxa para o asfalto. Ushuaia, cidadezinha argentina de duas ruas paralelas, montanhas nevadas às costas e canal de Beagle à frente – no extremo sul da América do Sul. Ar fresco e patas de ca­ranguejo ainda mais frescas em qualquer restaurante, uma guerra para desenjoar das que todos os dias me entram no sofá, desérticas. Tirando os camelos, que esta também os tem, uma guerra como de­ve ser, com hotéis de cinco estrelas a funcionar, como o Arakur com as janelas dos quartos a abrir para a ilha Navarino, para lá do canal. Justamente, na semana passada, os ingleses que estavam no hotel não tinham vista: estavam escondidos debaixo das camas.

Mas não nos adiantemos, contemos do início. O cruza­dor argentino General Belgrano foi daqui, Ushuaia, que saiu para a guerra, de 1982, que muda de nome segundo os lados, das Malvi­nas ou das Falklands. Era um cruzador cheio de sorte, já fora ame­ricano e estava atracado em Pearl Harbor quando os japoneses atacaram e saiu incólume. Talvez por isso foi tranquilamente pe­lo canal de Beagle para leste e, já no Atlântico Sul, aventurou-se a aproximar das águas territoriais das Malvinas ou Falklands. Só podia confiar na sorte porque as turbinas tossiam e as munições entupiam os canhões. Azar: enfrentou-se com o submarino britâ­nico Conqueror e, pior, com a primeira-ministra Margaret That­cher, mortinha por um boa batalha. Dois torpedos, o General Belgrano afundou, morreram 323 tripulantes e Ushuaia passou dias a receber botes com feridos.

Pois foi a Ushuaia que chegou, na semana passada, o Top Gear, famoso e polémico programa da BBC. Fala de automóveis (po­demos vê-lo cá, passa no Discovery Channel) e para testar um no­vo modelo não se importam de o atirar de uma grua. Tem três apre­sentadores com linguagem maluca, James May, Richard Hammond e, sobretudo, o chefe, Jeremy Clarkson: «A minha agenda diz que hoje tenho de testar um Suzuki. Quando tocar a campainha, fi­co escondido atrás dos cortinados a fingir que não estou» – é esse o género dele. Clarkson também já foi advertido pela BBC que é des­pedido se torna a dizer «escarumba». Ou, como fez, há dois anos, na Índia, quando filmou o seu Jaguar com uma retrete no capô, evo­cando a falta de higiene do país… Top Gear é um programa de auto­conflitos diplomáticos. Chegou há dias a Ushuaia e o Jeremy Clark­son vinha num Porsche com a matrícula «H982 FKL».

Por isso May, Hammond e Clarkson estavam, não atrás dos cortinados, mas debaixo da cama do luxuoso hotel Arakur. Mais tarde, Clarkson, que gosta de ser piadético, diria «bravely», com va­lentia. É que o hotel estava invadido por uma multidão: «Matem!», «Incendeiem os carros!», gritavam. Os três fugiram por uma porta dos fundos, foram para o aeroporto e embarcaram para Buenos Ai­res, que fica numa Argentina mais calma. Para trás deixaram a equipa do Top Gear, 29 pessoas que foram escoltados pela polícia, entre pedradas e carros queimados, até à fronteira chilena.

Mas que guerra foi esta? Ah, não viram bem a matrícu­la do Porsche: «H982 FKL»! Um piscar de olho a «1982, Falklands», mais uma piadinha de Jeremy Clarkson, que a nega, e diz ser mera coincidência. Vai ser um Top Gear giro. E, como a BBC paga bem, nenhum dos 29 deixados para trás dará um murro ao piadético.

Publicado originalmente na edição de 12 de outubro de 2014