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The Ziguais. A música nos dias de uma banda de autistas

Fotos: Leonardo Negrão/Global Imagens

Lisboa, 21/03/2023 - Associação Portuguesa de Perturbações do Desenvolvimento e Autismo. Banda The Ziguais, com rapazes e raparigas com autismo. Catarina Loureiro, baterista e vocalista. (Leonardo Negrão / Global Imagens)

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Catarina Loureiro na bateria, Duarte Aranha na voz, Fernando Jorge e Leonel Inácio nas percussões, Micas no baixo e, por vezes, nas cantorias e nas teclas, e mais alguns elementos ensaiam canções de outros e cantigas suas que alinham em concertos por este país fora. Um projeto que sobe ao palco tal como é, com improvisações, diferenças, talentos e competências. Hoje, 2 de abril, é Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. Ao meio-dia, o documentário do grupo estreia-se em televisão, em dois canais em simultâneo.

Às terças-feiras de manhã, às 10, habitualmente em ponto, é dia de ensaio na sala à direita no fim de um corredor no primeiro andar, prateleiras com instrumentos de percussão, guitarras, violas, caixas de sapatilhas guardadas para concertos, piano encostado, paredes com fotografias de atuações e outras ocasiões especiais, cartazes de Bob Marley, U2, Xutos & Pontapés, Cesária Évora, Queen, Ben E. King, órgão junto à janela, o verde do parque de Monsanto ali tão perto, ali no bairro do Alto da Ajuda, em Lisboa. Todos nos seus lugares, todos preparados. A música vai começar.

A banda The Ziguais da APPDA Lisboa – Associação Portuguesa de Perturbações do Desenvolvimento e Autismo começa a tocar e a cantar covers e músicas originais. Tudo acontece naturalmente, com liberdade e criatividade, sem notas encaixadas nas cinco linhas das pautas. Duarte Aranha, microfone na mão, canta: “Pela manhã sinto a vontade de cantar, acordo a voz, agarro a música no ar…”. Dina e a sua canção “Há sempre música entre nós” é acompanhada por vários instrumentos de percussão, pandeiretas, bateria, baixo, guitarra. No fim da primeira música, Rui Pais, o professor de Música, guitarrista e instrumentista, organiza a bateria e avisa: “Agora vamos todos voar.” Catarina Loureiro bate uma baqueta na outra e dá o sinal para começar a próxima canção: “Voar”, dos Xutos & Pontapés. Duarte canta, os outros acompanham a preceito, terminam no tempo. “Boa, que final tão certinho”, exclama o professor.

Na sala de ensaios, há fotografias nas paredes de momentos passados, ocasiões especiais

A terceira música é um original, letra do antigo diretor Paulo Ferreira, e Micas, Amílcar Mahala de seu nome, assume a cantoria e continua a tocar baixo, certinho, sentido rítmico apurado, letra que fala de um gordo que quer emagrecer sem sofrer. É o “Blue do Comilão” que tem videoclipe e está disponível no YouTube. Catarina sai da bateria, quer cantar, o professor vai para o órgão, os colegas fazem uma pausa. Catarina canta “Hello”, de Lionel Richie, famosa nos idos anos 1980, interpretação à sua maneira, na forma de pronunciar as palavras, na performance, nas poses que faz para a fotografia. Quinta canção, mais um original da banda, letra em inglês, Duarte e Micas dão voz à letra, os restantes elementos seguem com os seus instrumentos. O ensaio termina com o hino da associação, da APPDA, que começa com um “brilha o sol para todos nós, anda no ar a minha voz, quero que saibam que estou aqui”. Duarte aproveita para simular a apresentação da banda seguida do comentário “está um lindo dia de sol”. Está, de facto. Afinal, o ensaio não termina com o hino, Catarina quer cantar mais uma canção, “Bloody Mary”, de Lady Gaga, da série “Wednesday” que está na Netflix. Não estava previsto, é coisa espontânea, Nando vai para a bateria, Micas segue a música no baixo. Mais um momento de improviso como vários que acontecem por ali.

Catarina canta, toca bateria, interpreta. “Faço tudo ao mesmo tempo”, informa. O avô faz anos. “Vou ajudar a minha tia a fazer o bolo.” Que bolo? Bolo de chocolate? “O bolo do Benfica”, responde, com águias, claro. Se fosse para a avó, o bolo seria do Sporting. “Faço desenhos muito mega fixes”, anuncia Catarina. E sai desenho na hora, lápis e folha branca nas mãos, a forma de uma cabeça redondinha, pontiaguda no queixo, depois o cabelo, olhos grandes, nariz e boca, e umas longas tranças, uma de cada lado, de uma boneca a sorrir.

O ensaio corre livremente, o próximo concerto ainda não está marcado, sabe-se, entretanto, que o espetáculo que se segue será a 22 de abril no Fórum Cultural de Alcochete, durante a tarde. Naquela sala, há espaço para criar, não importa o volume das cantorias, o timbre e os tons parecidos com os originais. Aquela nota não tem de bater exatamente com aquela palavra, aquele tom não tem de afinar com o original, aquela batida pode estar mais abaixo ou mais acima. “Gosto de explorar essa vertente de não estar sempre a fazer as coisas certinhas, gosto de coisas espontâneas”, explica Rui Pais, o professor. Há liberdade e há uma certa disciplina. A improvisação abre asas a momentos de catarse, à comunicação sem palavras para expressar o que poderia ser demasiado complexo de dizer, de transmitir, de explicar. “É um processo muito intuitivo e muito espontâneo. Vamos tocando as músicas e vamos aperfeiçoando os covers e os originais”, resume o professor.

Catarina Loureiro toca bateria, gosta de cantar e faz desenhos “muito mega fixes”

A banda está habituada a subir ao palco, já tocou em escolas, empresas, cineteatros, salas de espetáculos, Gulbenkian, Cinema São Jorge, Universidade Nova de Lisboa, CUF Tejo, um pouco por todo o país. A última atuação foi na RTP, em direto, no programa “A nossa tarde” apresentado por Tânia Ribas de Oliveira. Explicou-se o projeto, a banda tocou e cantou. Mais um momento feliz.

O impacto de tocar e cantar no mundo real

Duarte Aranha transforma-se em palco, tudo pode acontecer, como naquele concerto que deixou o microfone para ir tocar piano de cauda que estava ali ao lado, mesmo sem saber tocar teclas. Resultou tão bem, como se tivesse ensaiado toda uma estrutura melódica que partilhou nesse momento de vontade e de improviso que encaixou como uma peça de teatro. Mas quando não lhe apetece, não lhe apetece, é um artista como os artistas, só que o palco, esse espaço, tem esse poder que o chama e o torna cantor, artista, instrumentista.

“Estou na banda há muito tempo”, conta Duarte. Canta em português, em inglês, sabe outras línguas, é aficionado pelo mundo da Disney. “É um universo mágico”, considera. Scar, o leão vilão, é a sua personagem preferida. Depois do ensaio, Duarte não quer muita conversa, quer ir para outra sala da APPDA Lisboa, instituição que tem horta, ginásio remodelado com novos equipamentos que ainda cheiram a novo, e uma série de atividades ocupacionais, oficinas de comunicação, expressão plástica e expressão musical, tecelagem, culinária. A instituição foi fundada há 52 anos por um grupo de pais de pessoas com perturbação do espectro do autismo, para proporcionar melhores condições, melhor qualidade de vida, defender direitos, acompanhar e dar apoio especializado a utentes e suas famílias através de vários serviços. Neste momento, são cerca de 250, dos dois aos 66 anos.

O ginásio da associação, remodelado, com novos equipamentos

Micas é reservado, envergonhado até, mas sempre a sorrir, uma cena cool, toca baixo, piano também, autodidata na música, quer aprender outro instrumento. “Ensinar a tocar guitarra”, revela. O professor Rui anda a ensiná-lo nas guitarradas. Micas mora ali, no lar residencial, tem jeito para muita coisa, gosta bastante de desporto, futebol sobretudo, começou há pouco tempo um estágio remunerado, três manhãs por semana, na secção de desportos coletivos da loja Decathlon da Amadora.

A música é outra paixão nos dias de Micas. Tem vaidade na banda, pede para que filmem os concertos, passa o seu telemóvel a alguém para que registe todo o espetáculo do início ao fim. É fã de Bob Marley e vai daí toca a cantar “Everything’s gonna be alright”, baixo a tocar na letra, ao ritmo do reggae. A parte rítmica sempre muito certinha, elogia o professor.

Rui Pais, à direita, professor de Música, incentiva a espontaneidade, a criatividade

Rui Pais, o professor, ensina e aprende ao mesmo tempo. “Sou um aprendiz”, confessa. E isso fá-lo feliz. Por vezes, conta, quando se atrasa ligeiramente, Micas assume o comando, encarna o papel do professor, começa o ensaio à sua maneira. Às terças-feiras de manhã, pode haver um plano preparado, o que não quer dizer que seja seguido à risca. E isso não importa. “Parte tudo dos interesses e da espontaneidade deles”, adianta Rui Pais. O repertório é coisa em permanente construção com originais, covers de pop e rock, jazz, bandas sonoras, assente em constantes sugestões e desejos dos ecléticos membros da banda, dos 18 aos 49 anos.

Leonel Inácio toca jambé, dá uns toques em vários instrumentos de percussão, canta também, é fã de António Variações, se lhe pedissem para fazer uma apresentação da banda seria uma coisa simples. “Bom dia, boa tarde, nós somos os The Ziguais.” Faz parte da banda “há muito tempo” e, certa vez, na carrinha, a caminho de um concerto, pediu para cantar Santa Maria. Ri-se ao lembrar esse momento. Depois do ensaio também vai à sua vida, talvez para outra sala, talvez para o exterior. Conceição Gonçalves, voluntária, dá apoio no ensaio, nas idas e saídas de quem canta e de quem toca. Conhece-lhes os gostos, as vontades, as necessidades.

Mais um ensaio à terça-feira, com músicas originais e canções de outras bandas

A banda da APPDA Lisboa existe desde 2002, na sequência do projeto europeu “Uma sociedade para todos”, e não mais parou de integrar jovens e adultos com autismo que frequentam a associação. Em 2019, foi uma das candidatas vencedoras do Prémio Capacitar do BPI e Fundação “la Caixa” para o ano 2020, a partir daí o nome The Ziguais surgiu como batismo com letras feitas pelos elementos da banda, cada uma diferente da outra, desencontradas. A imagem foi trabalhada e gravou-se um documentário.

Apresentam-se em palco com uma camisola com o desenho do instrumento que tocam, feitos por eles, lenço à roqueiro, calças, sapatilhas iguais, pretas e brancas. Imagem bonita, nome mais apelativo, trabalho mais profissional, repara Inês Neto, diretora pedagógica da instituição. “The Ziguais é um nome forte para passar uma mensagem importante”, realça. A cada atuação, mais um passo no longo caminho para a inclusão de pessoas com autismo que, através da música, mostram talentos, competências, aprendizagens. Mostram que têm voz. Mostram a sua voz.

Inês Neto, diretora pedagógica, realça o impacto que a banda tem no palco, no mundo real

“Será sempre uma banda de gente com autismo”, observa Inês Neto. Que não fica fechada entre quatro paredes. “Ver uma banda com esta composição no mundo real tem impacto”, salienta a responsável. Até porque, prossegue, “tentar romper com a visão capacitista da diferença” é essencial, é um objetivo, é um propósito. “Nesta banda, mostram que são capazes. É uma janela de visibilidade incrível.” O melhor são os aplausos, os elogios, o público, as famílias ali tão perto.

Rui Pais, o professor de Música, sente isso na pele. Sair da sala de ensaios e da instituição tem um significado poderoso, são dias especiais para todos, banda, famílias, público, quem trabalha na associação. “Sair para a rua, ir para as comunidades tocar e sensibilizar as pessoas, este é um projeto inclusivo”, descreve.

Há, no fundo, que remar contra a maré, desfazer um manto de invisibilidade. Há que contrariar um percurso de não sucesso e de não destaque, sustenta Inês Neto. “A banda vai a qualquer lado e todos brilham, podem ser reconhecidos por uma coisa que fazem efetivamente bem, que é serem artistas, por eles e pelas famílias.”

Comunicar afetos num lugar de felicidade

Fernando Jorge, Nando como lhe chamam, sabe de cor o nome de todas as estações de comboio do Intercidades de Santa Apolónia até Campanhã, de Lisboa ao Porto, de sul para norte, di-las sem se enganar, uma a uma, sem interrupções. É apaixonado por comboios, pede mimos com frequência, é um dos mais velhos da banda, ainda não tem 50, toca vários instrumentos de percussão, maracas, pandeiretas. “A parede The Ziguais é muita gira”, diz. O nome da banda está escrito a azul na parede da sala.

Micas no baixo, Nando nas percussões, e muita vontade de tocar e improvisar

No fim do ensaio, encosta a cabeça no ombro de quem está ao lado, dá mimos, pede mimos, repousa. Vai batizando pessoas que conhece e não conhece, há quem lhe pareça ter nome de Madalena ou de autocarro da rodoviária ou de Intercidades. No ano passado, a banda tocou num sítio muito especial para Nando, no Museu Ferroviário, no Entroncamento, na sala do comboio real. Foi uma festa.

Rui Pais sabe que o entusiasmo e a excitação aumentam antes dos espetáculos. “Têm expetativas antes do concerto, perguntam como é, como não é, preocupam-se.” É sempre um prazer tocar com eles, garante. “No palco, não se vê nenhuma diferença”, diz. “As portas fecham-se continuamente, mas começam a surgir oportunidades”, sublinha Inês Neto.

Maria João Morgado, terapeuta da fala, responsável pela parte da comunicação, fala de competências que se têm e que podem ser mostradas. The Ziguais têm isso. “O desafio é perceber o que os faz felizes.” Fazem de forma diferente, comunicam de forma diferente, tocam e cantam de forma diferente. Sentem de maneira diferente. “Têm outras experiências, gostam de estar com outras pessoas, é importante existir essa interação”, refere.

O grupo tocou em vários palcos e atuará na inauguração da Feira do Livro de Lisboa

Hoje, 2 de abril, é Dia Mundial da Consciencialização do Autismo e a APPDA Lisboa apresenta o documentário da banda numa exibição simultânea nos canais Fox Life e National Geographic, ao meio-dia. Filme gravado em tempos de pandemia que dá a conhecer The Ziguais, sua história, seus membros, a união pela música, o poder que ela tem. Um documentário com vários propósitos que se leem nas entrelinhas da sinopse. “Um grupo que não deixa ninguém indiferente e que em cada concerto quebra estereótipos, desfaz receios e apaixona quem os ouve a comunicar afetos através da linguagem universal da música.” É intervir, é sensibilizar. A sinopse continua: “Pessoas que encontraram o seu lugar de felicidade, num Mundo que tantas vezes (ainda) não está preparado para as compreender. Uma narrativa intimista, cantada na voz dos seus protagonistas e contada por aqueles que têm o privilégio de estar sempre na primeira fila.” A 13 de abril, no Cinema São Jorge, em Lisboa, às 21 horas, é exibido o documentário da banda seguido da conversa “Vamos falar de autismo?”. A 22 de abril, o documentário é exibido às 15 horas, seguido de conversa e de concerto dos The Ziguais no Fórum Cultural de Alcochete. A 25 de maio, às 18.30 horas, a banda atua na inauguração da Feira do Livro de Lisboa.

Nando, Micas, Duarte e Catarina são a imagem do cartaz do filme. Em comum, um diagnóstico de autismo e uma enorme paixão pela música, por tocar e cantar letras de outros, palavras suas.

[Artigo publicado originalmente na edição do dia 2 de abril – número 1610 – da “Notícias Magazine”]