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Como identificar e confrontar uma amizade tóxica

Fotos: Freepik

O que devo fazer se há um amigo que não me faz bem?

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A palavra "tóxico" tem-se normalizado no vocabulário de todos. Mas ainda que estejamos habituados a ouvir falar de relações amorosas abusivas, também as há nas amizades. Os amigos podem fazer-nos mal. Como identificar, como gerir e a importância de manter um círculo de convivência saudável.

Respeito, confiança, ajuda, companheirismo. Se se vir confrontado com a pergunta “em que pressuposto deve assentar uma amizade saudável?”, deve, provavelmente, dar uma das respostas acima. Ou algumas parecidas a estas. Mas há igualmente uma (ou parecidas) que não deve faltar: reciprocidade, dar e receber, igualdade. É este pressuposto de equilíbrio que, por vezes, pode falhar numa relação entre amigos. E, por consequência, há um desajuste de poderes. O que, por sua vez, leva a um abuso por uma das partes. E, a outra parte, fica diminuída. A isto, a gíria popular tem a tendência de chamar comportamento tóxico. Para sermos mais precisos, trata-se de comportamentos abusivos que, quando repetidos ou perpetrados no tempo, constituem uma relação abusiva.

Quem ajudou a traçar os primeiros adjetivos que devem ser associados a uma amizade saudável foi Cláudia Melo. A diretora técnica da Unidade de Psicologia Clínica Cognitivo-Comportamental (UpC3), da Universidade de Coimbra, alerta, no entanto, que não se deve resumir o tema a meia dúzia de palavras. “Por vezes, pode ser difícil identificar quando uma amizade já não é saudável ou um amigo é ‘tóxico’.” Vamos, antes de perceber como se pode lidar com estas situações, aprender a identificá-las.

Bárbara Ramos Dias, psicóloga clínica, define uma amizade como abusiva “quando esta influencia a vida do outro negativamente”. Mas, adverte, “numa fase inicial, as amizades tóxicas podem acontecer dos dois lados e os comportamentos abusivos alimentam-se entre si, não sendo unilaterais”.

A profissional salienta que são várias as linhas ténues no que toca a identificar uma pessoa, um comportamento ou uma amizade tóxicas. “Pode ser-se tóxico com uma pessoa e não com outra. Pode haver comportamentos abusivos que levam a outros comportamentos abusivos do outro lado. Pode haver uma multiplicidade de razões para termos um determinado comportamento que magoa a outra pessoa.”

Por isso, sintetiza Alberto Lopes, a linha vermelha traça-se na repetição. Uma amizade é abusiva, considera o neuropsicólogo, quando existem comportamentos abusivos repetidos, perpetuados no tempo e sobre os quais já tentamos conversar e levar à mudança, mas sem sucesso. Nestes casos de maior complexidade, frisa, “está-se perante pessoas com características narcísicas e, por vezes, até psicopáticas”.

Perguntar e refletir

E há mais linhas ténues, agora identificadas por Alberto Lopes. “Depois de percebermos que as relações abusivas não acontecem apenas entre amantes, mas também entre amigos, é importante notar que o mesmo pode acontecer numa relação familiar.” O abuso pode ser transversal a todos os tipos de relações.

“Importa reconhecer que cada um de nós pode encontrar-se num destes casos sem se dar conta, estando em relacionamentos tóxicos que são relações caracterizadas por manipulação, por um ciclo contínuo de exaustão e abuso psicológico.” Para o especialista em neuropsicologia e hipnoterapia, “a melhor forma de se identificar uma destas relações é perguntar-se: ‘as minhas barreiras, o meu eu, estão a ser respeitados?’.”

Cláudia Melo, da UpC3 e também psicóloga clínica, indica alguns sinais aos quais é necessário estar atento. Em primeiro, “sentirmos que os nossos limites e as nossas necessidades são ignorados pela outra pessoa”. Um exemplo: continuar a fazer ou dizer algo que nos incomoda, mesmo depois de chamarmos a atenção para o nosso sentimento sobre isso.

Depois, “sentirmos que a outra pessoa nos tenta controlar de forma direta ou subtil, que nos manipula e que nos mente”. Também, “percebermos que estamos sempre dispostos a ajudar a outra pessoa e a fazer dela prioridade, mas que o mesmo não acontece no sentido oposto”. Por último, “reconhecermos na outra pessoa a ausência de empatia para connosco ou outros amigos”, tendo “sempre uma justificação para os seus comportamentos menos corretos e nunca revelando culpa ou remorso”.

As fases

Mais do que saber identificar sinais, Alberto Lopes defende ser igualmente importante estar ciente das três fases de uma relação abusiva levada a cabo por alguém de forma intencional, para que a sua identificação e a ação sejam mais eficazes. E ainda que não haja um processo identificado pela ciência separadamente para as amizades, a lógica é a mesma aplicada às relações amorosas. “A primeira é a fase da idealização, em que há uma valorização, há elogios, a atenção carinhosa, há tudo de bom.”

Alberto Lopes, que irá em setembro editar um livro que aborda a temática das relações abusivas, identifica este primeiro momento como um “bombardeamento de amor”, para fazer com que o outro se sinta acolhido. Numa segunda fase passa-se para a desvalorização, uma vez que, “depois de a pessoa ser viciada no manipulador e na atenção que este lhe dá, começa a dar-se um afastamento”.

“O abusador fica indisponível e inventa desculpas para o seu afastamento, num ir e voltar constante que deixa a pessoa em posição inferior, desestabilizada.” Por último, continua Alberto Lopes, há a fase do descarte, na qual, “já num extremo de prejuízo psicológico, a vítima vai perceber que foi manipulada”.

O neuropsicólogo verifica que a sociedade “está cada vez mais consciente dos perigos de um relacionamento desigual, abusivo ou tóxico”. “Mas nunca é de mais promover o conhecimento do que é uma relação saudável e do que é o apego seguro.” Especialmente, reitera o especialista, numa altura em que saídos de três anos de pandemia e de sucessivos confinamentos que colocaram muitas pessoas em maior isolamento e solidão e que estarão, assim, debilitados e mais suscetíveis de ser apanhados em relações abusivas.

Tomar uma decisão

Agora que sabemos os sinais a apontar, segue-se a ação. O que devo fazer se há um amigo que não me faz bem? A psicóloga Cláudia Melo explica que qualquer decisão deve passar, em primeiro, por um momento de reflexão. De seguida, há duas opções: “Conversar com a pessoa em causa para tentar resolver as dificuldades na relação, uma vez que a pessoa pode não ter consciência do impacto negativo que os seus comportamentos têm em nós, ou as nossas necessidades e limites podem não estar suficientemente claros”; ou decidir pelo afastamento. Vamos por partes.

No primeiro caso, em que decidimos “ter uma conversa honesta com a pessoa, tentando fazê-la entender o que sentimos e o que precisamos”, pode fazê-la compreender como nos está a magoar e, desta forma, alterar as suas atitudes. Cláudia Melo avisa que “iniciar estas conversas nem sempre é fácil”, pelo que pode ser útil preparar antecipadamente os principais pontos que queremos transmitir. Escrevê-los é o conselho da profissional.

A segunda opção, afastar-se da pessoa, “pode parecer uma solução extrema, mas no caso de os comportamentos da outra pessoa serem graves e repetidos no tempo, o afastamento pode ser o mais acertado”. Afastar pode ser a ação a tomar quando, tendo tentado a primeira forma, conversar, não se veja mudanças de atitude, havendo uma continuação dos comportamentos abusivos. Independentemente de conhecer os sinais e os passos a dar, Alberto Lopes aconselha que se procure ajuda profissional, com o objetivo de ter uma sensação de resiliência e treinar a capacidade de impor limites.

Bárbara Ramos Dias, psicóloga especializada na adolescência, sublinha o impacto acrescido que estas relações abusivas podem ter nos jovens. “É uma fase de transformações e de delinear da personalidade, sendo que uma relação abusiva pode ter um papel preponderante na formação de inseguranças.”

Para a profissional, ainda que comportamentos tóxicos na adolescência sempre tenham existido, as redes sociais vieram facilitar essas atitudes, ou pelo menos, permitir que estas sejam feitas a qualquer hora e em qualquer lugar. É preponderante, assim, a atenção dos pais, que devem conversar com os filhos “sobre o que é a partilha, a amizade, o amor, o dar e receber e o delimitar de barreiras”.

Alertar o outro

E se eu souber de alguém que está numa amizade abusiva? Segundo Alberto Lopes, a sociedade tem impacto em nós e nas nossas decisões, no entanto, “a vítima de um relacionamento tóxico pode estar tão cativada pelo manipulador que não acredita quando alguém tenta mostrar determinados sinais de alerta”.

Uma técnica recomendada, diz, é enviar sugestões de leitura, de vídeos ou de artigos jornalísticos que abordem o tema, para que a pessoa comece a identificar por si a situação. Se estamos num contexto de grupo de amigos, a situação pode parecer mais complexa, mas os especialistas garantem que, quer seja com dois ou mais envolvidos na amizade, a estratégia deve ser sempre a mesma: conversar e, caso não haja mudança, afastar.

Bárbara Ramos Dias aborda, ainda, uma possibilidade: perceber que tivemos atitudes tóxicas ou abusivas para com outro, mesmo que tenha sido inconsciente. “Saber pedir desculpa é essencial. Se identifiquei uma atitude que pode, ainda que apenas no campo da possibilidade, ter magoado o outro, devo saber conversar, ouvir as emoções da pessoa e pedir desculpa.”

Para fechar, a psicóloga clínica Cláudia Melo realça o benefício de ter amizades verdadeiras e saudáveis. “Termos bons amigos, ou seja, pessoas com quem partilhamos os mesmos valores na forma de viver a vida, interesses, experiências positivas, assim como as dificuldades, tem um impacto significativo na nossa saúde física e psicológica.” De um ponto de vista físico, explica, “conectarmo-nos aos outros, gera a libertação de oxitocina, que está associado a uma redução na pressão arterial e diminuição dos níveis de ansiedade”.

Para além disso, as relações de amizade fazem-nos sentir protegidos e seguros, mesmo nos momentos mais difíceis da nossa vida, “e, com isto, temos uma qualidade de vida otimizada”. Ter amigos é ter saúde.