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São sempre as palavras

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A construção amorosa fortalece-se com a pele e o desejo, mas também com as palavras e as imagens por estas criadas.

Maroto, malandro, em português do Brasil, danadinho, são as traduções do adjetivo “coquin”, no feminino “coquine”, do belo francês que tanto amo. O francês não é um idioma fácil, há muito que deixou de ser obrigatório no Ensino Secundário. No meu caso, foi bebido com o leite materno. A minha mãe falava-o em casa e ensinou-nos desde crianças os seus segredos e encantos, o que me permitiu dar explicações de Francês a amigos durante a adolescência. Nunca lhe perdi a mão nem o pé, gosto de o ler, de o ouvir e de o praticar e, recorrentemente, tento explicar a quem não o domina, o quão belo é. As pessoas encolhem os ombros e respondem que o italiano é mais bonito. Talvez seja verdade, mas os italianos não têm génios literários como, por exemplo, Alfred de Musset, que manteve com George Sand (pseudónimo da baronesa Amandine Aurore Lucile Dupin, numa época em que as mulheres não tinham espaço na literatura), uma fervorosa correspondência regida sob informação encriptada, tecendo frases dentro de frases para expressar o amor carnal.

O truque de Musset desvenda-se alinhando as primitivas palavras de cada frase; o da sua cúmplice, em saltar uma linha das suas missivas. Em ambos os casos, sob a aparente inocência de um amor que exaltava as mais nobres virtudes, o desejo e tudo o que ele contém de cru estava lá, disfarçado, para deleite dos amantes. Ao longo de dois anos (entre 1833 e 1835), de uma relação passional e algo tumultuosa, os dois amantes trocaram inúmeras cartas. O caso não durou, mas o espólio literário sim, deliciando os fãs do Romantismo, que é o meu caso, embora acredite que tão importante movimento literário tenha causado mais mal ao Mundo do que bem. Se é certo que sustentou grandes revoluções e clivagens, também é sabido que mascarou o sofrimento de amor e de um heroísmo estoico e algo bacoco, contaminando as mentes mais sensíveis com um chorrilho de encantadores disparates que pouco têm a ver com o amor construído na vida real. “Malgré tout”, os românticos foram autores tão geniais que ainda hoje são lidos com prazer. E as cartas de amor que produziram são verdadeiras pérolas, pela sua intensidade, beleza e profundidade.

A informação encriptada é um dos encantos da dinâmica amorosa: quando nos apaixonamos, inventamos vários nomes secretos para o ser amado e para as partes preferidas do seu corpo. Esses “petit-noms” criam uma ligação única, especial, dando origem a um léxico que, com o tempo, se transforma numa espécie de dicionário privado. No século XIX, a liberdade pessoal era constantemente vigiada pela sociedade, o que obrigava os amantes a malabarismos e artimanhas. A necessidade aguça o engenho e todos sabemos que não existe nada mais erótico do que construir um mundo secreto, com códigos secretos e momentos, se não secretos, ao menos discretos. A construção amorosa fortalece-se com a pele e o desejo, mas também com as palavras e as imagens por estas criadas. Aquele nome que chamamos ao nosso amor torna-se mais forte do que o seu próprio nome.

São sempre as palavras que vencem, mesmo quando tudo se dissipa na espuma dos dias, resistindo ao silêncio, à distância, ao tempo e à ausência.