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O deserto e a glória

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

“Spirit lives when man dies”, como cantavam os Waterboys nos idos 90 numa discoteca construída em cima do mar, que um incêndio destruiu para sempre.

Todos os dias dizemos adeus a alguém: quando saímos de manhã para o trabalho, quando nos despedimos de um velho amigo depois de um almoço, quando partimos após uma visita aos nossos pais e avós. Por vezes despedimo-nos sem adivinharmos que será para sempre. Um atropelamento, um choque frontal, um ataque de coração, um azar dos diabos ou o final de uma doença letal leva as pessoas num instante, ou num par de semanas, de meses ou de anos que nos parecem sempre pouco mais do que um segundo. O tempo que resta é sempre curto, porque não existe ensaio geral para a morte. Perante esta, despedimo-nos com o coração, num abraço longo e imaginário, que imagino sempre alado e leve.

A pandemia tornou a morte muito mais presente nas nossas vidas. Durante dois anos partiram muitos e não foram apenas idosos. A guerra na Europa que a seguiu mostra-nos a morte a entrar na nossa realidade diariamente, enquanto passamos a sopa na cozinha e preparamos o jantar. Faz parte do nosso quotidiano, o Planeta está a aquecer com consequências devastadoras, em África já morreu uma geração inteira de elefantes vítimas da seca extrema, mas no ramerrame da rotina não pensamos na morte, a não ser quando chocamos de frente com ela e nos ceifa um familiar mais velho, um animal de estimação ou um amigo da adolescência.

Já não me sobram dedos para contar quantas pessoas perdi nos últimos três anos, alguns mais novos do que eu, e quem me lê terá certamente o mesmo pensamento. Aceitar a sua partida é como abraçar o anjo da morte, é interiorizar que é apenas a ordem natural das coisas, por mais desoladora e irónica que a realidade se imponha com as suas jogadas inesperadas. Resta-me o consolo de pensar que alguns tiveram uma vida cheia, realizaram os seus maiores sonhos, deixaram filhos e netos que com eles se parecem a ponto de vermos aqueles que partiram no corpo e espírito dos que ficaram, e a ideia, se não católica, ao menos mística de que estão finalmente em paz, numa outra dimensão onde não existem o tempo, o espaço, o frio, o medo, a dor, o sofrimento, mas apenas a saudade daqueles que por cá andam. “Spirit lives when man dies”, como cantavam os Waterboys nos idos 90 numa discoteca construída em cima do mar, que um incêndio destruiu para sempre.

Perante o desaparecimento de alguém querido, paramos para ouvir o coração, escolhendo a estrada do perdão, porque como canta Vinícius de Moraes, quem não perde perdão, não é nunca perdoado. O mesmo poeta que escreveu: “E de repente, do riso fez-se o pranto/ Silencioso e branco, como a bruma/ E das bocas unidas fez-se espuma/ E das mãos espalmadas fez-se o pranto”. As mãos com que tapamos a cara para esconder a tristeza e nos escondermos do Mundo perdido na espuma dos dias, que nos vai embalando na sua inevitabilidade.

Quando a vida se dissipa na sua insignificância, há duas coisas que nunca esquecem, o deserto e a glória. O deserto de uma solidão longa e árida e a glória de um grande amor que nos levou mais longe do que alguma vez imaginaríamos. O deserto e a glória, ontem, hoje, agora e sempre, para nos lembrarmos de tudo o que já vencemos e o quanto já fomos felizes.