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Carlos Fiolhais: “Deus não morreu porque a humanidade precisa dele”

Fotos: Maria João Gala/Global Imagens

"O governo podia ter ido mais longe [nas restrições do Natal]", assegura Carlos Fiolhais

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É um dos mais citados e conhecidos cientistas portugueses. Diz que devíamos estar mais bem preparados para a covid, admite grandes falhas de comunicação da Ciência, mas lembra que a Natureza pode trocar-nos as voltas. Acredita que as máscaras vieram para ficar, porém avisa: a crise climática é um perigo muito maior do que a pandemia. Aos 65 anos, quer continuar a divulgar a Ciência. Não gostava de ser ministro. E tem medo da solidão.

Estamos no Rómulo, Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Na biblioteca que Carlos Fiolhais fundou há 12 anos, dedicada à cultura científica, “a ligação entre ciências e humanidades”. O nome vem de Rómulo de Carvalho, o poeta professor de Física e Química que assinava António Gedeão. Uma biblioteca que cresceu graças a muitas ofertas, sobretudo as do fundador. Todos os dias o cientista chega com novos livros. O cenário da entrevista comove-o. Os livros emocionam Fiolhais. É uma biblioteca aberta, ao serviço de todos, com uma componente digital típica das bibliotecas modernas. Um local de partilha e de debate, paredes-meias com o laboratório onde turmas de miúdos de nove anos antecipam o seu futuro, entrando precocemente na universidade. O professor já deu a última aula do semestre. “Os meus alunos vão até ao fim do jogo.” Está muito contente. Há no sorriso infantil a curiosidade e o deslumbramento próprios da infância. O humor característico de quem conhece “um pouco” do Universo, e “alguma coisa” da humanidade. A pandemia não lhe roubou otimismo. Mas está cauteloso.

“Temo os resultados do Natal”, começou por dizer. Aconselhava restrições maiores?
Não é fácil dizer o que se deve fazer, mas se olharmos para a Europa encontramos medidas mais duras do que as nossas. Na Alemanha, que não tem tantos casos por milhão de habitantes como Portugal, na Holanda, na França, no Reino Unido, etc. E por isso interrogo-me se o nosso Governo não poderia ter tomado medidas mais restritivas. Os números não nos permitem estar tranquilos, o pico do número de mortos ainda não foi atingido e, por isso, ganharíamos em ser mais cautelosos. Cada morto é uma perda irreparável. O Governo podia ter ido mais longe.

Podia e devia?
Não gosto de me pôr nas botas dos outros nem é fácil estar hoje na posição de quem tem de decidir. Não quero criticar pessoas que estão numa posição em que eu não estou nem queria estar. Continuamos a ter muita incerteza e lidar com a incerteza não é nada fácil. Mas, se as medidas fossem mais restritivas, eu não ficaria desgostoso.

Está então preocupado com o que pode vir depois do Natal.
Estou. Basta olhar para os Estados Unidos – depois do “Thanksgiving” o número de mortos aumentou muito. Foi uma tragédia, que aliás continua. Ainda que agora haja esperança nas vacinas.

Vai tomar a vacina sem nenhum receio?
Sem dúvida alguma. Se me coubesse ser o primeiro da lista, aceitaria sem hesitação. Tenho perfeita consciência de que a vacina é preparada e autorizada com os maiores cuidados. Para chegar ao primeiro utente tem de se garantir em primeiro lugar a segurança. Não pode fazer mal. E depois é preciso ver se faz bem, ou seja, se confere imunidade. Os dados conhecidos são bastante animadores. Os boatos contra as vacinas são largamente infundados.

Mas só daqui a muitos meses a ciência terá conhecimento dos efeitos secundários…
A longevidade que temos deve-se em grande medida ao uso de vacinas. As novas vacinas foram conseguidas em dez meses graças a um trabalho porfiado. Foram usados processos inovadores, é verdade, mas estes têm sido desenvolvidos há muitos anos. A verdade é que não existe risco zero. Como qualquer medicamento, na vacina pode acontecer um caso ou outro de reação adversa. Tal pode acontecer até a tomar uma aspirina. Mas estou otimista: chegaremos ao Natal de 2021 muito melhor do que ao Natal de 2020. A ciência sozinha não nos salva, mas sem a ciência estaríamos perdidos.

Está otimista quanto ao processo de vacinação?
O objetivo da vacinação só se efetiva se vacinarmos em massa. O vírus é uma máquina estúpida de reprodução, nós é que somos inteligentes. Temos obrigação de mostrar a nossa inteligência nesta crise. Eu sei que não há em Portugal défice de inteligência, mas gostava de ver a inteligência nacional mais em ação. Por exemplo, gostava de ver um plano inteligente. Não o vi ainda.

O que faria de modo diferente?
Não sou gestor de saúde pública, mas todos podemos ter opinião. Não vi anunciado um plano baseado na ciência, que seja claro quanto aos grupos de prioridade e prazos. Em Portugal podíamos e devíamos organizar melhor a vida pública. Quando não há um bom plano, o que se quer fazer pode ocasionalmente correr bem, mas em regra corre mal. Por vezes gabamo-nos da nossa impreparação, quando falamos da nossa capacidade de desenrascanço. Quero confiar no Governo que tem o dever de nos representar. Mas no plano da vacina tem havido algum atraso e alguma atrapalhação. Os portugueses deviam aprender mais com os erros. Um erro devia ser uma “vacina” que nos protegesse de o repetir. Em Portugal, erra-se demais porque se aprende pouco com os erros.

Estamos habituados a que os resultados da ciência nos cheguem em artigos científicos com revisão pelos pares. Com a covid as regras mudaram. A ciência está em direto. Isto é bom para a ciência?
Espero que não seja mau. Na verdade, devíamos estar mais bem preparados para o que nos aconteceu, até porque houve vozes que nos foram alertando. Não é a primeira vez que se vive uma pandemia. Mas eu diria que, de todas as épocas, esta é a melhor para ter um problema deste género. O nosso conhecimento em Biologia Molecular permitiu-nos fazer a sequenciação do ADN do vírus em muito pouco tempo, permitindo o desenvolvimento acelerado de testes e de vacinas. De facto, nunca a ciência se tinha confrontado com um desafio tão forte e nunca a ciência deu uma resposta tão forte, produzindo num só ano mais de 80 mil artigos sobre uma só doença. Contudo, por mais que as pessoas queiram respostas rápidas, a ciência não pode queimar prazos. Há que ser cauteloso. Não se pode morrer da cura. A ciência não faz truques de ilusionismo nem é um conjunto de receitas mágicas. Gostava que esta crise nos levasse a confiar na ciência e a percebê-la melhor, tal como ela é.

Ou seja…
A ciência é sobretudo a resposta a um certo número de perguntas. É um desfazer de dúvidas a respeito da Natureza para logo a seguir nascerem outras. A ciência é um meio de diminuir a incerteza e não de dar a certeza. Se alguma coisa devemos aprender com a pandemia, é ver a ciência tal como ela é, um processo de alargamento do conhecimento, e não como ela é ensinada na escola, um conjunto de conhecimentos.

Ver os cientistas a construir um avião enquanto o pilotam será bom para a nossa compreensão geral do processo científico?
Não é bem assim. Um avião não vai para o ar, muito menos com passageiros, sem um piloto com muito treino e sem haver a maior segurança possível. Nos hospitais e centros de saúde não há aprendizes de feiticeiro a experimentar coisas malucas. O que há é um processo de aprendizagem coletivo, no qual há dúvidas. Sei bem que há algum distanciamento entre as pessoas e a ciência – basta ver a desconfiança das vacinas, que aliás não é de agora, baseada em falsas informações e em autoilusões -, mas acredito que as pessoas acreditam na ciência, acredito que prezam a racionalidade.

As afirmações de especialistas de hoje podem ser desmentidas pelos eventos de amanhã. O caso das máscaras, por exemplo. Isso é muito inquietante?
Com certeza. A ciência teve grandes falhas de comunicação: a melhor ciência não chegou a tempo e da melhor maneira ao público. A ciência tem hoje um desafio enorme, que é o de saber falar para o grande público. Os cientistas pensavam que tinham a vida assegurada nos laboratórios, mas não têm se não conseguirem falar para a sociedade e serem entendidos por esta. Claro que nunca irá haver unanimidade numa dada questão científica, nem a ciência precisa dessa unanimidade. Basta o consenso da comunidade científica. A ciência comete erros – foi um erro a não recomendação de máscaras desde o início da pandemia -, mas também tem maneiras de os corrigir. E esse erro foi corrigido.

Correu-se o risco de confundir informação científica com palpites.
Há muitas vozes em simultâneo e nem todas com fundamento. Temos de respeitar a liberdade de expressão, mas o certo é que nem todas as vozes valem o mesmo. Eu sei, em geral, distingui-las. Pelo treino científico, tenho algum “faro” para detetar o disparate. Sobre a vacinação tenho ouvido muitos mitos, amplificados pelas redes sociais. Sei que algumas pessoas, levadas pela desinformação desenfreada, acreditam em patranhas vindas de pseudocientistas. É preciso separar a ciência do joio.

“Queremos viver, não queremos sobreviver”, garante o cientista

Na Suécia, parece que os cientistas erraram e muito. Ou foram os políticos? O rei já pediu desculpa.
Neste momento, os suecos admitem que a experiência correu mal. Houve demasiados mortos. Menosprezaram pessoas, como os idosos nos lares, que mereciam outra atenção. Morreram muitos pais e avós sem necessidade. Mas agora que na Suécia as medidas passaram a ser mais restritivas, ainda há em Portugal quem se entretenha a defender o “modelo sueco” e a dizer disparates.

Vivemos um século de epidemias: o SARS, a gripe suína, o ébola. Não estávamos preparados. Devíamos estar, não?
Devíamos estar mais bem preparados, mas temos de pensar que a Natureza por vezes nos troca as voltas. É impossível estarmos bem preparados para tudo. Alguns cientistas alertaram para a possibilidade de um novo contágio viral, é verdade, podíamos estar mais alerta, mas a vida tem sempre riscos e podem a todo o momento surgir surpresas.

Concluindo, a ciência sai reforçada?
O futuro é uma caixa de surpresa, mas estou em crer que a ciência vai sair reforçada, tendo em conta a resposta extraordinária que está a dar a este desafio. Ainda não vimos o resultado, mas acredito na ciência. Vai sair valorizada, mesmo estando ciente que há em todos nós, a par do lado racional, um lado irracional e que, por isso, haverá sempre gente a desconfiar dela. Imaginar coisas onde elas não existem é humano. O que não é humano é deixarmo-nos vencer por esse lado irracional. Por muito numerosos que sejam os portadores de irracionalidade, só a racionalidade pode ter razão. A irracionalidade não tem razão nenhuma.

Acredita que a pandemia poderá convencer os céticos de que a descoberta científica é crucial para o florescimento humano?
Gostava que assim fosse, mas não tenho ilusões. Haverá sempre céticos. Veja o caso dos chamados “médicos pela verdade”: de facto, são médicos pela mentira. O uso de uma bata branca não garante que se fique imunizado contra a mentira.

Falava dos decisores políticos, desde logo em Portugal. De que forma é que podemos promover conhecimento científico, nas escolas, nas faculdades, nos laboratórios?
Essa promoção podia e devia ser maior do que está a ser. Em Portugal, a ligação entre as autoridades de saúde e a comunidade científica foi feita de uma maneira muito “ad hoc”. Nos países em que a ciência está mais enraizada, os políticos ouvem os cientistas de um modo institucional. Entre nós, o caminho para a ciência é muito recente. E isso transpareceu nesta pandemia. Não vemos os especialistas a dar pareceres independentes, baseados na sua melhor ciência e na sua melhor consciência, desligados de compromissos com a política e com o interesse do Governo. Gostava de ter visto os meus colegas cientistas das áreas relacionadas com a covid, alguns deles muito bons, reunidos num comité independente, com um porta-voz, a representar a ciência. Esta não tem tido uma voz forte.

Ouviu opiniões contaminadas pela política?
Os poucos cientistas que foram chamados a intervir pelas autoridades da saúde em Portugal fizeram-no decerto o melhor que puderam e de boa-fé, mas sempre a título individual. Não houve mecanismos que permitissem responsabilizar a comunidade científica, preservando a sua autonomia e podendo até dizer coisas desagradáveis. Podemos crescer todos com esta crise. Podemos numa próxima crise fazer melhor.

Que lhe pareceram as reuniões do Infarmed?
Não percebi bem essas reuniões. Elas eram resumidas pelo presidente da República, o que não faz sentido. Ele estava lá para ouvir e tirar conclusões para si. Se são reuniões científicas, têm de ser resumidas por cientistas. Houve uma sobreposição entre ciência e política. Foram reuniões muito improvisadas e pareceu-me que, a certa altura, faziam-se ou não conforme as conveniências da política.

A ciência está a funcionar com os meios de que precisa?
Esse é um ponto essencial. Para funcionar, a ciência, seja pública ou privada, precisa de meios. Ora em Portugal o financiamento da ciência está estagnado em 1,4% do PIB. Já foi mais (1,6%), já foi, após a troika, um pouco menos (1,2%). Ainda não recuperámos. Esta despesa é um investimento. Não tem havido meios para a renovação do corpo docente das universidades nem para a criação de emprego para os jovens – temos uma comunidade científica jovem muito bem preparada, que, não querendo andar de bolsa em bolsa, emigra. Agora que tanto se fala de dinheiros europeus, por que razão não seguimos o exemplo do investimento de outros países? Já não peço que se ultrapasse a correr a média europeia, que é de 2,1%. Mas que se avance nesse sentido. Ouvimos muito políticos a cantar loas à ciência. Porém, na hora da verdade, quando estão em causa as carreiras científicas de muitos jovens ou a criação de melhores laboratórios, vemos enormes dificuldades. Inteligência temos – nada distingue um neurónio português de um neurónio alemão. Mas falta-nos o resto: o investimento nela. Nós precisamos da ciência e a ciência precisa de nós. E temo que a pandemia não vá alterar muito o quadro.

Porquê? Se não reivindicam no tempo pós-pandemia, vão reivindicar quando?
A nossa comunidade científica não está organizada. Não está organizada de forma autónoma. Cresceu muito, basta dizer que temos cerca de 50 mil cientistas, mas os cientistas têm sido demasiado expectantes e reverentes perante os sucessivos governos. Cada um vê se consegue receber mais um bocadinho. A ciência precisa da política e a política precisa da ciência. E esta ligação entre nós não é sólida.

Disse: “A Ciência Viva tem feito alguma coisa, mas pode-se fazer muito mais e muito melhor”.
A Ciência Viva foi uma grande ideia do ministro Mariano Gago. Infelizmente, tem estado um pouco estagnada. Precisava de estar mais viva. A pandemia está a ser uma oportunidade desperdiçada de promover a cultura científica de um modo muito maior.

À ciência o que é da ciência, à política o que é da política. Porém, tem havido algumas interferências. Quando é que o cientista se deve calar para deixar falar o político?
As decisões que afetam a vida de todos não podem ser tratadas por cientistas. Os cientistas podem saber certas coisas, mas há outras dimensões humanas – o domínio da economia, do social, da política, e mais em geral da filosofia e da religião – que excedem largamente a ciência. A ciência diz que usar máscara ajuda a prevenção do vírus. A política diz o que se deve fazer a quem não usa a máscara pondo a vida dos outros em risco. E há questões para as quais a ciência não tem, não pode ter, resposta. Os cientistas não podem dar certas respostas. Por vezes, alguns cientistas têm a tentação e respondem a coisas que não devem. Quando me perguntam o que existia antes do Big Bang, respondo que não sei. Ninguém sabe, provavelmente nunca se saberá. Temos de dessacralizar a ciência. Não é uma vaca sagrada, tem as suas limitações. Por isso, ela tem de ser humilde. E atenta ao que se passa à volta. Em especial, nesta altura em que se propaga informação falsa à velocidade da luz, em prejuízo da democracia e em favor de populismos.

Porque é que os populistas são, por regra, anticiência?
Uma das poucas coisas boas da pandemia foi ela ter propiciado a eleição de um presidente dos EUA decente. Trump é não só um populista como um adversário da ciência. Temos de ter presente que ele defende um conjunto de interesses. O que ele diz, parecendo-nos por vezes absurdo, não o é completamente, pois serve certos propósitos. Começa por defender o seu interesse pessoal e da sua família, à qual se prepara para conceder um perdão, uma coisa absolutamente extraordinária. Depois, há os interesses de certos grupos económicos, gente que o apoia e a quem ele apoia, como é claro no caso das questões climáticas. A crise climática é um perigo muito pior do que a pandemia. Há sinais graves por todo o lado: os grandes incêndios, por exemplo. A ciência ajuda a resolver esses problemas, mas a política tem de atuar. Trump representa certos interesses instalados. Nos EUA, a indústria do petróleo tem muita força. Tem também o voto de pessoas que, vendo-se desempregadas, reagem de uma forma primária. Esta situação preocupa-me muito. E não há uma solução fácil. A ciência ajuda a tornar a sociedade mais bem informada, mas a sociedade e a política é que têm de fazer o dia de amanhã. É um caminho difícil, longo, que passa muito pela escola. Eu pergunto-me se a escola estará a cumprir bem o seu papel. As pessoas saem da escola e eu não sei se serão atropeladas pelo futuro. Têm pela frente desafios enormes.

As notícias falsas propagam-se mais rapidamente do que as verdadeiras. Porquê?
Há notícias verdadeiras que são estranhas, mas as notícias estranhas são falsas na sua maior parte. As pessoas vão atrás de títulos estranhos: “Fulana de tal teve um filho de um extraterrestre”. As pessoas clicam, dando dinheiro a ganhar a alguém. Podem o jornalismo e a política estar sujeitos a interesses financeiros desenfreados? Julgo que não. Como evitar? Com regulamentação. Não é censura. É regulamentação democrática.

Em contexto de pandemia há médicos a divulgar informação não confirmada. Que tem a dizer-lhes?
O que eu chamo “médicos pela mentira” é um grupo pequeno, mas bem organizado, com ligações conhecidas à extrema-direita e ao populismo. São pessoas que podem até ter diplomas, mas que só prejudicam a classe médica. Precisamos de confiar nos nossos médicos e esse grupo é uma espécie de vírus que é preciso contrariar. Agora, não se pense que o problema se resolve a “cassetete”. Estou em crer que a Ordem dos Médicos os porá na ordem.

Tempos de grandes tragédias são também tempos de presença forte da religião. Como acha que se está a comportar a Igreja Católica?
O Papa Francisco, sozinho na praça de São Pedro, deu a melhor imagem do distanciamento social. Uma imagem impressionante. O pastor com as ovelhas à distância, mostrando que é possível haver uma comunhão para além da proximidade física. Em geral, o papel da Igreja tem sido muito positivo. Os padres adaptaram-se à situação. Fiquei até surpreendido com os poucos protestos em funerais praticamente sem ninguém a não ser o morto. Um funeral, religioso ou não, é uma despedida, um último adeus. A Igreja desempenhou aqui um papel muito sensato.

Gosta do Papa Francisco.
Muito. As posições dele sobre as questões climáticas, sempre baseadas na ciência – aliás ele tem formação em química –, têm sido relevantes na cena mundial. Num tempo em que faltam líderes mundiais, a voz do Papa é ouvida e respeitada de forma transversal. E não só sobre o clima. Vale a pena ler o que ele diz e escreve sobre economia. A Igreja, até pela estrutura piramidal em que assenta, tem uma forte expressão. O papa tem sido uma voz universal, não só sensata como esperançosa, ao longo desta pandemia.

Já António Guterres parece desaparecido.
Discordo. António Guterres tem estado muito atento e a dizer as coisas certas desde o início. Porém, a ONU não é um governo do Mundo. A ONU está tolhida por grandes interesses geoestratégicos e, nesse contexto, a voz dele tem dificuldade em fazer-se ouvir. Mas louvo muito o que tem dito sobre alterações climáticas. Nestes meses de pandemia não devemos esquecer outros perigos maiores.

Vamos ao dia seguinte. O aperto de mão voltará a ser um gesto normal, impensado?
Vai demorar. Enquanto houver memória próxima do vírus, o aperto de mão, o abraço e os beijos entre pessoas que não são próximas vão demorar a reaparecer.

Os afetos foram muito castigados. Que preço vamos pagar?
Os afetos foram muito afetados, é caso para dizer. Mas isso não significa que estejam extintos. Os afetos permanecem, e eles serão muito superficiais quando resultam apenas do toque da pele. Pelo contrário, esse toque tem de resultar de uma proximidade, mental e emotiva. Ainda que com alguma lentidão, os afetos vão voltar. O ser humano não vai deixar de ser quem é. É um ser gregário, precisa de proximidade física. Estou convencido de que daqui por um tempo vamos voltar a fazer a festa.

A máscara veio para ficar?
Sim. Passará a viajar connosco, não me parece que pese muito. Acredito que passarão a ser mais usadas nas gripes. Este ano a gripe está a ser até agora residual. Porquê? Por andarmos de máscara. Dito isto, o ar está cheio de micro-organismos e é o nosso convívio com eles que nos dá proteção. O nosso sistema imunitário está feito para aprender. O problema deste vírus é que ele tem um truque novo. A vacina irá ensinar ao nosso sistema imunitário esse truque. Não há pandemia que não tenha sido temporária e esta vai ser vencida mais rapidamente do que muitas outras. Há pouco disse-lhe que o vírus era estúpido. Quer um exemplo: ao matar uma pessoa ele está a cometer suicídio.

A amnésia pós-pandemia, esse regresso às nossas vidas normais, poderá significar a persistência nos erros que levaram a este fenómeno?
Vamos ser realistas: a proximidade entre humanos e animais é antiga e vai continuar. Um dos enigmas desta pandemia é não se saber ainda a sua origem, só se sabendo que não é artificial. Acredita-se que tem a ver com um morcego. Pode voltar a acontecer algo parecido? Pode, claro. Podemos e devemos prevenir-nos criando um sistema de “radares” que nos alerte para novos casos. Temos de fazer a sequenciação ainda mais rapidamente, comparando as novidades com uma base de dados de microrganismos, os chineses atuaram com força brutal, que só é possível naquele tipo de regime, mas nós temos de saber o que fazer em casos semelhantes, preparando os protocolos mais adequados. A globalização não vai acabar e será útil cortar imediatamente o mal pela raiz se ele aparecer. Mas é claro que vai haver uma amnésia, como diz. A sociedade já esqueceu os 50 milhões de mortos da gripe espanhola. Ainda bem, sem esquecimento não poderíamos viver. Queremos viver, não queremos sobreviver.

Ainda bem que a China agiu em força? De outra maneira teria sido muito pior?
A China atuou à força bruta, impedindo que o surto alastrasse a milhões de pessoas. Os direitos individuais foram sacrificados sem hesitações. Seria difícil ou impossível esse modo de agir numa sociedade democrática. Mas houve países democráticos no Oriente que lidaram muito bem com o vírus, como a Coreia do Sul e Taiwan. Podemos aprender com o Oriente sem ser com a China.

Lidar com o recolher obrigatório, com a restrição à liberdade, não é fácil. Os portugueses lidaram bem com as restrições?
No primeiro pico, portámo-nos muito bem de forma coletiva. Mais do que as orientações dos governos, seguimos um certo instinto. Sabíamos que em Espanha e em Itália, com as unidades de cuidados intensivos cheias, muitas pessoas estavam a morrer sem ajuda. Foi o nosso confinamento que impediu que houvesse um grande pico e os nossos hospitais ficassem congestionados. Mas foi um pequeno pico, comparado com o de hoje. No verão, relaxámos um pouco. Diria que foi uma pausa bem-vinda. O que faltou nessa altura foi uma preparação mais adequada para o que se sabia vir a seguir.

O que lhe disse a pandemia sobre o apego dos portugueses à liberdade?
Os portugueses gostam de liberdade, como toda a gente. Mas também conhecem os perigos da pandemia. É muito difícil encontrar um equilíbrio. Ninguém pode viver sempre confinado. A economia não aguenta. E, de resto, as pessoas não aguentam psicologicamente. Por outro lado, a liberdade total também não é possível. A ciência não consegue dizer onde está o meio-termo. Não há um programa de computador que diga as medidas certas. Mas podemos ir aprendendo com o que se passa aqui e noutros lados. Ser inteligente é ser capaz de aprender.

A geração covid será mais sábia?
A inteligência não piora. Biologicamente melhora, embora muito devagar. Apesar de ter algumas dúvidas sobre o desempenho da escola de hoje, confio muito nos jovens que saem delas. Temo, no entanto, que a economia não os vá ajudar. Muitos não conseguirão encontrar facilmente um primeiro emprego. Não terão estabilidade no emprego. Temo que essa geração venha a ser muito sacrificada pelo que aí está e pelo que aí vem. Temo pelos mais novos assim como temo pelos mais velhos. Os jovens são o nosso futuro. Os idosos são um repositório de humanidade que é essencial para o futuro. Um jovem é um aprendiz de humanidade. E um velho é um perito em humanidade. Uma sociedade que não dedica aos jovens e aos velhos a sua melhor atenção é uma sociedade sem futuro.

A covid obrigou-nos a levantar muros à nossa volta. A pandemia provocará o recrudescimento dos egoísmos?
Sim, levantámos muros, mas também temos formas de espreitar através deles. Fala-se do aumento do teletrabalho. As pessoas já passavam os seus tempos de lazer em frente a um ecrã, de um televisor ou de um computador. Há ecrãs no lazer e no trabalho. Temos de saber ver para lá dos ecrãs, perceber que as pessoas que estão do outro lado são de carne e osso como nós. Algumas já as vimos, já as tocámos, já as beijámos. Essa consciência é uma forma de contrariar os egoísmos. Por outro lado, a pandemia ensina-nos a cooperar. Ao dizer que a vacinação só funciona se a sociedade se organizar, a pandemia dá uma grande lição aos egoístas de todo o Mundo. Vão ficar sozinhos no seu egoísmo. Só aqueles que se souberem unir serão capazes de se salvar em conjunto. Para a humanidade, uma saída individual nunca é uma saída.

“A ciência sozinha não nos salva, mas sem ela estaríamos perdidos”, reconhece Carlos Fiolhais

As medidas securitárias poderão abrir precedentes perigosos nas democracias?
Não me preocupo com isso. Não se fez nada de ilegal, embora eu ache um exagero impedirem a venda de vinho depois das 20 horas. Tudo foi feito democraticamente. As pessoas estão dispostas a pagar um preço pela sua vida, pela sua liberdade futura. É a única maneira racional de combater a pandemia.

Fale-me dos seus medos.
(Silêncio) Tenho tendência como toda a gente para reprimir os medos. Mas não ter ninguém próximo de nós deve causar uma angústia enorme. Talvez seja um dos meus maiores medos. Gosto de estar sozinho, mas não gosto de estar demasiado sozinho. Vou contar-lhe uma história. Há muitos anos, fiquei preso numa gruta. Devo dizer-lhe que entrar por um buraco da terra até 200 metros de profundidade, um sítio escuro e húmido, e não conseguir sair de lá causa muito medo. Ninguém diga que não tem medo. O medo é um instinto biológico. Mas também percebi que se entrasse em pânico estaria mesmo perdido. O pânico paralisa. E percebi, sobretudo, o grande valor que é ter a ajuda dos outros.

Continuou a praticar espeleologia?
Com certeza. A vida continua.

Quando se apanhou cá em cima, qual foi a primeira coisa em que pensou?
Olhe, gostei de ver a luz do sol. O sol tem um significado diferente para quem esteve mais de 24 horas no escuro. Atrevo-me a dizer que quem nunca esteve muito tempo no escuro não sabe bem o que é o sol.

Aos 20 anos já era agnóstico.
Não me deu para rezar. Tenho formação católica, mas não o dom da fé. Percebo a ideia de Deus, percebo a necessidade de Deus para muita gente, mas não me lembro de ter rezado nessa situação. Mas sei rezar, aprendi, sei acompanhar uma missa e há em mim como em toda a gente uma espiritualidade intrínseca. Digo mais: rezar faz muito bem a quem o faz. É a procura de uma saída. A religião é das coisas mais humanas que há. Na verdade, religião e ciência são maneiras, embora diferentes, de penetrar no mistério. Numa o mistério do sobrenatural e noutra o mistério do natural. Um médico salva vidas, um padre salva almas – cada um tem o seu ofício. Nunca achei sensatas campanhas contra a religião em que alguns cientistas participam. Andam a proclamar a morte de Deus, mas – ao contrário do que disse Nietzsche – Deus não morreu. E Deus não morreu porque a humanidade precisa dele.

Que questões lhe tiram o sono?
Escolhi a Física porque achei que podia descobrir coisas, compreender melhor o Mundo. O Mundo precisa de ser compreendido e só nós, os seres humanos, o podemos compreender. Que Mundo é este? Quem somos nós neste Mundo? Contribuí para a ciência, do modo que fui capaz, numa escala modesta. Ensino ciência. Procuro divulgá-la, porque a ciência é de todos. Uma descoberta científica é de todos. É feita pelos cientistas em nome da humanidade.

E inquietações?
Vivo bem sem ter respostas a grandes questões que não têm resposta. O que é a felicidade? O que é o belo? O que é a bondade? O que é o amor? Sobre este último, a única coisa que posso dizer é que já caí nele. Mas a força da gravidade não é responsável por essa tão agradável queda.

Fale-me do que é o momento “eureka”.
É um momento individual de criatividade. É muito difícil descrevê-lo. Podemos estar no banho, como Arquimedes, e de repente ligarem-se, no nosso cérebro, duas coisas que estavam desligadas. Essa epifania é fascinante, não sabemos ainda bem como se dá.

A que descobertas gostava ainda de assistir?
Há muitas questões. Dou três exemplos, que não são diretamente de Física, mas nas quais há físicos a trabalhar. Não sabemos se há outros planetas com vida além da Terra. A descoberta de vida fora da Terra seria uma descoberta extraordinária para a humanidade. Não sabemos qual foi a origem da vida no nosso Planeta. Não sabemos como atua o cérebro, designadamente como emerge a consciência.

Escreveu mais de cem artigos científicos, um deles com vinte mil citações. Poucos cientistas portugueses podem dizer o mesmo. Valeu a pena?
Voltei-me para a Física em jovem, na idade dos porquês. Interessei-me pelos mistérios da Natureza, pela ordem escondida, pelas leis do Universo. E ainda que em pequena escala, pude contribuir para essa epopeia que é a descoberta científica. Descobri o que era a Física um pouco à margem da escola, através dos livros de divulgação de ciência que já então existiam. Já então Rómulo de Carvalho mostrava o lado humano da ciência. A ciência é um empreendimento humano.

Depois da última aula, o que gostava de fazer?
Vou continuar a fazer o que gosto – a escrever livros, a dar conferências, a divulgar a ciência nos jornais, nas rádios e nas televisões. Eu dou a voz, a cara e o peito pela ciência e, mais em geral, pela cultura.

Gostava de ser ministro da Ciência e Tecnologia?
Não, não gostava. Não sou a pessoa indicada para fazer as coisas que os políticos normalmente fazem. A política, na sua essência, é uma atividade muito nobre, mas no nosso país essa nobreza parece perdida. A ação de muitos políticos passa por vezes pela mentira e pela dissimulação e os cientistas têm um vínculo estrito com a verdade. Mas poderei participar na vida da minha cidade de Coimbra. Nas últimas autárquicas, integrei uma lista de independentes, uma experiência que posso repetir, porque Coimbra precisa de futuro, precisa de uma grande renovação.

Fale-me da relação com os livros.
Tenho com os livros uma relação muito íntima. Devo-lhes muito. Muito do que sei e sou vem dos livros que li. Quando disse ao meu pai, militar da GNR, que queria ir para Física, ele perguntou-me “Serve para quê?”. Na altura não soube responder. Nasci numa família modesta, mas podia ter ido para o curso que quisesse, pois não havia “numerus clausus”. Para Medicina, por exemplo. Na verdade, apaixonei-me pela Física sem saber o que era a Física. Tinha uma ideia e fui atrás dessa ideia. Ela não me desiludiu. Serve para muita coisa. Muitos anos depois, na cerimónia da minha tomada de posse como diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra a que o meu pai assistiu com muito orgulho, podia dar-lhe finalmente a resposta: “Pai, serve para guardar livros”. Sabe, quando um dia for confrontado com São Pedro, imaginemos que existe, e ele me perguntar o que fiz para merecer o céu direi: “Guardei livros, livros que era preciso guardar”.