Receamos os pesticidas, o terrorismo, as doenças, falar em público, ladrões, não fazer o melhor pelos filhos. O mecanismo-base é biológico, mas atrás de cada um dos piores receios está geralmente alguém que nos vendeu esse temor. É por isso que, não por acaso, uma parte substancial desses pavores é dirigida às coisas erradas.
Em 1820, os tripulantes do navio Essex, que se encontrava em alto-mar para capturar baleias e extrair-lhes o óleo, foram alvo de um ataque desses mamíferos – uma história que haveria, de resto, de inspirar “Moby Dick” de Herman Melville. À deriva em alto-mar, os tripulantes tinham duas opções: rumar até as Ilhas Marquesas, na Polinésia, a dois mil quilómetros, ou tentar chegar à costa da América do Sul, bastante mais distante.
Escolheram a segunda opção porque, dizia-se, na região das Marquesas havia canibais. O destino revelou-se irónico: durante os longos meses no mar para tentarem alcançar a distante costa americana, sem mantimentos, os homens viram-se transformados naquilo de que queriam fugir e foram obrigados a alimentar-se dos próprios companheiros mortos para se manterem vivos. A história pungente mostra como o medo – uma emoção primordial que nos ajuda a sobreviver desde sempre – pode também estar na origem das piores decisões humanas.
“O problema com os medos exagerados é que provocam respostas irracionais”, diz Barry Glassner, professor de Sociologia, figura de proa no estudo do medo, autor de nove livros, incluindo “The Culture of Fear: Why Americans Are Afraid of the Wrong Things” (A cultura do medo: Por que é que os americanos temem as coisas erradas; sem edição em português). E uma das coisas que os americanos mais temem, defende, é a comida.
“Basta considerar alguns dos alimentos e bebidas que alguns autoproclamados especialistas nos dizem para recear: ovos, leite, chocolate, café, carne. De facto, o que a evidência mostra é que quando consumidos com moderação, eles não são apenas seguros para quase todos como podem ser benéficos. O que é pior é que as campanhas que demonizam alimentos têm na realidade contribuído para o aumento da obesidade e outros resultados indesejados.”
A edição original do seu livro tem 20 anos, mas foi feita uma reedição em 2018, motivada pelos chamados “anos Trump”. “O nosso atual presidente – a quem me refiro como ‘o supremo promotor do medo’ – espalha inúmeros receios infundados acerca dos imigrantes, da criminalidade, dos meios de comunicação social e dos opositores políticos. Hoje gastamos muito dinheiro a combater perigos insignificantes e aprovamos leis repressivas por causa disso”, defende o académico em entrevista à “Notícias Magazine”.
Mas apesar do advento da Internet e das redes sociais lhes ampliarem os recursos, os criadores do temor são hoje os mesmos que há 20 anos. “Continua a ser através da promoção do medo que os grupos de interesses angariam dinheiro para as suas organizações, que os profissionais de marketing vendem produtos, que os media atraem leitores e que os políticos se vendem ao eleitorado”, destaca Glassner.
Este problema não passa ao lado dos chefes de Estado. Em setembro de 2019, por exemplo, durante o Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, Marcelo Rebelo de Sousa criticou a “instrumentalização do medo”, declarando que “existem demasiados poderes que têm medo que o medo acabe”.
O problema das narrativas dominantes
O medo é, também, uma narrativa que fazemos a nós mesmos e que parte frequentemente de uma visão distorcida do Mundo. Trabalhos como o de Hans Rosling, da Gapminder Foundation, mostram que nunca vivemos tão bem como hoje e, no entanto, a maioria das pessoas tem a perceção de que o Mundo está cada vez pior.
Isto faz com que tenhamos pavor das coisas erradas: receamos morrer quando entramos num avião, mas o que nos mata mais são os acidentes de viação. Temos medo do terrorismo, mas ignoramos paulatinamente as alterações climáticas que nos causam danos todos os dias. E temos, claro, medo da criminalidade, apesar de as estatísticas mostrarem uma diminuição da violência na generalidade dos países ocidentais. Em Portugal, uma análise mostra que, desde 2008, a criminalidade violenta recuou 42,5 %.
No livro “Criminalidade e Segurança”, a antropóloga Manuela Ivone Cunha traça o resultado deste fenómeno em Portugal: nos inquéritos de 2004 e 2005 do International Crime Victims Survey, num total de 30 países, Portugal estava entre os quatro com o risco mais baixo de vitimização e, no entanto, o país encontrava-se no top dez daqueles em que as pessoas tinham níveis de receio mais elevados.
Mas há, garante a autora no seu livro, outras idiossincrasias: os homens jovens são os que revelam menos medo de ser vítimas de crimes, apesar de serem os mais afetados; as pessoas receiam mais o crime violento, embora o crime contra a propriedade seja mais frequente; teme-se mais a noite, mas a maioria dos crimes ocorre de dia; e as mulheres receiam sobretudo o crime de rua, não obstante a maior probabilidade de serem vítimas no seu espaço privado.
“O ‘EVITAMENTO’ É UMA PALAVRA CENTRAL. O MEDO TORNA-SE UM PROBLEMA QUANDO É UM OBSTÁCULO À LIBERDADE INDIVIDUAL E EXPERIENCIAMOS UM MEDO IRRACIONAL, SOBRE O QUAL NÃO SENTIMOS CONTROLO, E PASSAMOS A EVITAR SITUAÇÕES QUE SÃO IMPORTANTES PARA NÓS”
NUNO MENDES DUARTE
PSICÓLOGO
Estado de paranoia parental
O interesse de Frank Furedi pelo estudo do medo começou há décadas. O sociólogo húngaro radicado no Reino Unido, autor de livros como “How Fear Works” (Como funciona o medo; sem edição em português) e professor emérito na Universidade de Kent, começou a olhar para o tema em 1995, quando nasceu o filho.
Como todos os pais de primeira viagem, enquanto se dirigia para a maternidade para conhecer o recém-nascido carregava algumas preocupações: será que a mulher estava a sentir-se bem? Será que o bebé iria chorar muito? Cresceria saudável? Quando chegou, uma das responsáveis chamou-o. Disse: “Sr. Furedi, fique tranquilo. Aqui colocamos pulseiras localizadoras no pulso dos bebés, para evitar que se percam ou sejam raptados”. Furedi vive no condado de Kent, a uma hora de Londres, uma região predominantemente rural, calma e bucólica conhecida como o jardim de Inglaterra. A última das suas preocupações seria raptarem-lhe o filho no hospital. Começou a pensar: porque será que até numa das mais bonitas experiências humanas, o nascimento de um filho, somos imediatamente bombardeados com medos infundados?
Começou a dar-se conta que o pavor é um manto que nos cobre e molda a maneira como pensamos e vivemos – e, em especial, a relação com as crianças e jovens. Furedi defende que desde há algum tempo passámos de uma preocupação parental normal para um estado de “paranoia parental”. Explica à NM: “A parentalidade é retratada como algo muito difícil e os pais estão sob pressão constante porque lhes dizem que qualquer erro terá um impacto muito negativo nos filhos”.
Ao mesmo tempo, a infância é retratada como uma experiência muito perigosa e as características normais da vida das crianças foram reinterpretadas como muito mais arriscadas. “Consequentemente, tudo o que elas fazem ou usam vem com um aviso de saúde”, observa o sociólogo, que se lembra que, pouco tempo após o nascimento do filho, lhe tentaram vender numa loja de brinquedos um capacete para colocar nos miúdos dentro de casa, para quando começam a gatinhar e andar.
O medo, considera Furedi, tornou-nos hesitantes, avessos ao risco e inseguros. “Tendemos a venerar a segurança e a sociedade encoraja-nos cada vez mais a ser fatalistas.” O antídoto, acredita, é a revalorização da coragem e também adotar uma forma de criar os filhos que procure cultivar a independência. “Precisamos de lhes restaurar o espírito de aventura e de experimentação.”
Um fenómeno social ou individual?
O medo é uma emoção fundamental que ajuda a mobilização em caso de perigo. “A segurança é uma necessidade humana fundamental e o nosso organismo, em interação permanente com o meio, procura avaliar e prever a manutenção dessa mesma segurança”, descreve Nuno Mendes Duarte, psicólogo e diretor clínico da Oficina de Psicologia, em Lisboa. “Isso quer dizer que, a cada perceção de perigo, o nosso sistema sinaliza medo para conseguirmos fugir ou evitar a situação.”
Vamos fazendo um ajuste, ora reforçando a resposta ao medo, ora perdendo esse temor se nos for garantida segurança nesse contexto. O que quer dizer que o pavor tem uma componente inata, mas os medos específicos são sobretudo aprendidos. O psicólogo ilustra com dois exemplos: se nunca aprendemos que uma cobra é perigosa é provável que não a receemos; por outro lado, pavores infantis como o escuro e a trovoada vão sendo dissipados à medida que entendemos que não representam perigo.
Claro que isto acontece quando tudo corre bem e não há uma patologia. As perturbações de ansiedade, quase sempre associadas ao medo, são muitas e frequentes, ressalva o psicólogo: as fobias específicas, que representam um terror irracional de algo inócuo; a perturbação do pânico, que faz com que pessoas que tiveram um ataque de pânico desenvolvam medo de voltar a ter outro; a Perturbação de Ansiedade Social, caracterizada por um temor excessivo de fazer algo embaraçoso ou inadequado socialmente; ou a perturbação de ansiedade de doença ou hipocondria, que é o medo persistente de ter um distúrbio. “De acordo como o relatório ‘Portugal: Saúde Mental em Números – 2014’, temos uma prevalência anual de perturbações ansiosas de 16,5%.”
Mas o que distingue exatamente um temor “normal” de uma perturbação da ansiedade associada ao medo? “O ‘evitamento’ é uma palavra central. O medo torna-se um problema quando é um obstáculo à liberdade individual e experienciamos um medo irracional, sobre o qual não sentimos controlo, e passamos a evitar situações que são importantes para nós”, explica Nuno Mendes Duarte. “O medo, cuja principal função é proteger-nos, passa a tolher-nos.”
Habituámo-nos a pensar no medo como um fenómeno individual, mas cada vez mais a sua componente social é estudada. “A importância de estudar o ‘lado social’ do medo está na repetição do fenómeno. Quando entrevistamos vários indivíduos e verificamos que os ‘tipos de medo’ se repetem entre eles, isto poderá querer dizer algo sobre o clima social”, expõe Patrícia Hermenegildo, autora da tese de mestrado em Sociologia “Medos Sociais numa Óptica Inter-Paradigmática: Uma Análise Exploratória de Quadros de Representação Portugueses”, em que tentou perceber quais são os principais medos sociais dos portugueses, conduzindo entrevistas a 77 pessoas.
Dos medos que se repetiram com frequência, a investigadora destaca o medo face ao futuro (relativo a condições de vida e à independência económica, mental, física) e medos relativamente às relações sociais (receio de não ser aceite, de conhecer pessoas, de falar em público, da imagem). “Existe uma dimensão muito primitiva nalguns destes medos”, realça. “Por exemplo, é natural que se tenha medo da rejeição ou da falta de autonomia física, pois implica questões de sobrevivência. Mas é importante perceber que a estrutura social também condiciona a existência e perpetuação desses medos.”
Resta saber se há uma forma portuguesa de ter medo. Há quem considere que a cultura e a história portuguesas não se podem desligar dos medos dos portugueses. A autora recorre ao filósofo e pensador José Gil, que defende a ideia de que o medo se “herda” de geração em geração, pois está impregnado na nossa sociedade. “Porque Portugal tem a particularidade de ter saído do regime fascista, um ‘regime de medo’, há apenas 45 anos.”