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O cão e o sósia criminoso

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O jovem que passeava o cão nas ruas do Técnico não podia estar ao mesmo tempo a assaltar dois miúdos na estação de Entrecampos, alegou a advogada. E ali estava eu, no Campus de Justiça de Lisboa, a ver um clássico da literatura criminal, do teatro e do cinema: a identidade trocada, o inocente acusado, o sósia maléfico, o dom da ubiquidade! A indignação da advogada voava contra a procuradora da República. Das suas mãos pareciam sair raios magnéticos, plasmas coloridos de batalhas entre super-heróis psíquicos. Tremia-lhe o corpo, a voz arroxeava ainda nos lábios:

– Para mentir, vamos lá mentir a sério! Conseguiria ele, em 10-15 minutos, pôr-se noutra roupa que ninguém conhece? Tão longe? O que não é normal é uma pessoa ter o dom da ubiquidade!, gritava a advogada.

A procuradora acabara de pedir a condenação de David por roubo agravado, um crime que já fazia parte do currículo do jovem. E agora ouvia as alegações da defesa, cerrando e abrindo as pálpebras como que experimentando as persianas da sala, mais sol, mais escuro?, continue, senhora advogada, é a sua vez.

– O que nos parece, continuou a advogada, é que a digna magistratura do Ministério Público pegou no registo criminal do David e disse: olhe, está aqui, fê-lo, e durante este período voltou a repetir, e portanto ele é o culpado!

Só que nada era o que parecia. Embora parecesse bastante… Um dos rapazes vítimas do roubo violento (um telemóvel, duas notas de dez euros), descrevera a fisionomia de David à polícia e, meses depois, acusou-o com base em fotografias. Também existe uma gravação da estação de comboios de Entrecampos onde, num dia de Janeiro pelas 23 horas, filmaram David. Melhor: para a advogada, apenas alguém parecido. E o crime em si não foi gravado.

– Eu garanto-lhe, sotora, que quando eu vi esses fotogramas, a primeira imagem que tive foi: este não é o senhor David! E eu sou muito boa a imagens. Eu conheço perfeitamente os senhores procuradores inclusive por todos os tribunais por onde passei e os doutores juízes não me falha um! Até me recordo da ilustre procuradora da última vez em que estivemos juntas, continuou a advogada, e dizia isto como que atirando um elogio, e a procuradora sorria como se agradecesse.

O que a advogada de David trazia era a possibilidade de a vítima ter sido condicionada pela polícia, colocam à frente umas fotos e perguntam: não terá sido este tipo a roubá-lo? A advogada imitava o testemunho do rapaz assaltado:

– “Não, ele era de facto muito mais baixo”. E também disse que era “mais magro” e também, acho que foi o termo, “seco de cara”. Diz a sinceridade desta pessoa!

E não só nas fotos, mas no reconhecimento presencial, isto é, num friso de suspeitos alinhados contra a parede.

– Todos nós sabemos que onde se falha mais em termos de produção de prova é no reconhecimento presencial. E aquele senhor, se for sincero, sabe perfeitamente que é no reconhecimento, e até na observação das fotografias, há sempre dúvidas!

No banco dos réus, David esperava.

– Temos uma semelhança, não temos uma verdade, não temos o reconhecimento directo.

Depois, o problema do cão. Pelos vistos, o pai de David disse que não queria que este fosse passear o cão, mas este foi. Segundo a advogada, estando um miúdo a passear um cão, podem aparecer outros também a passear o cão e, “porque eles são vaidosos às vezes, os miúdos”, o passeio canino pode acabar mal. [Isto aconteceu antes de “passear o cão” se transformar em “cão a passear o dono”, no confinamento covid-19.]

– É assim tão anormal essa situação? Virem os pais falar do cão? Não era muito mais fácil o pai dizer: não, o meu filho estava no sítio tal comigo?! Para mentir, vamos lá mentir!

Resumiu a advogada, ao pedir absolvição “in dubio pro reo”:

– Meritíssima senhora, não tenho qualquer dúvida, até pelas imagens oferecidas: não é a mesma pessoa.

Mas para o tribunal David foi devidamente reconhecido. E como, por assim dizer, já tinha ido “passear o cão” (roubo agravado, roubo simples) outras duas vezes, voltando com objectos que não lhe pertenciam, levou três anos de prisão efectiva. Sorte de cão na prisão. Do cão errado, dirá o recurso da advogada.