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Os sabores da infância dos chefs

Rui Paula aprendeu na casa dos avós, em Favaios, os primeiros pratos. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

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Cheiros, paladares e truques que aprenderam em pequenos e entranharam-se de tal forma que ficaram gravados naquilo que, ainda hoje, os mais famosos cozinheiros portugueses confecionam. Viajámos pelas recordações de alguns dos melhores especialistas na arte de cozinhar. E resgatámos passados felizes que influenciaram futuros de sucesso.

Aquelas vindimas em Favaios. Aqueles anos em que a pequena aldeia transmontana do concelho de Alijó era vida cheia em tempos de colheita da uva que daria vinho. Aqueles cheiros. Aquela cozinha farta, quase bruta, da avó Amélia que alimentava quem passava a jorna em trabalho duro.

Aquela gente de trabalho a alentar estômagos vorazes em sorrisos permanentes. Aquele burburinho dos pratos, dos talheres, das panelas de barro. Aqueles sabores. Aquela mesa grande, aquelas brasas. Aquele fogão a lenha que a tantas bocas dava de comer. Aquela alquimia que dali saía e que o pequeno Rui tentava perceber e imitar para orgulhar a avó e a si próprio.

O pequeno Rui cresceu e ganhou apelido, fama e estatuto. Assina Rui Paula e é referência top da cozinha portuguesa e internacional, estrela Michelin, símbolo maior da Casa de Chá da Boa Nova, arquitetura de Siza Vieira encaixada no mar de Leça da Palmeira (Matosinhos), do DOC, ali nas margens do Douro, para os lados de Armamar, e do DOP, que fez do Palácio das Artes, no Centro Histórico do Porto, janela de experiências gastronómicas únicas.

“Essas memórias todas estão hoje na minha cozinha. Todas. Umas de uma forma, outras quase inconscientes. Mas estão lá todas”, garante Rui Paula, a quem é fácil puxar-lhe a fita atrás para devolver ao discurso no presente um passado delicioso. Nos vários sentidos do adjetivo.

“O pessoal vinha de vindimar e a minha avó preparava-lhes sopa de feijão, milhos à transmontana, arroz de polvo com filetes, massa com feijão vermelho, cozido à portuguesa, cabrito assado, carne de caça. Enfim, tudo o que havia”, recorda Rui Paula. “Lembro-me de ter uns oito ou nove anos e andar por volta dela a tentar perceber aquelas voltas que ela dava para preparar aquilo. E comecei a tentar fazer o que a ia vendo fazer”, rebobina.

Mais tarde, já adolescente, Rui Paula experimentou arriscar ele próprio aqueles pratos, sem ajudas familiares. Primeiro para o irmão, depois para os amigos. “Correu-me bem, confesso. Foi só uma questão de ir aperfeiçoando.”

Pareceu quase natural que a vida profissional de Rui Paula se encaminhasse para o mundo da cozinha. Quando a realidade o comprovou, o passado e as memórias, sempre eles, foram marca sublinhada a tinta grossa de afetos. Nas ementas, incluem-se receitas que lhe devolvem a infância em Trás-os-Montes. “Os sabores que a memória traz são a base, a principal fonte de inspiração do que hoje faço. Claro que houve conceitos que mudaram, isso é bem evidente, mas esses tempos, essas primeiras experiências, foram essenciais”, explica o garoto das vindimas de Favaios que se tornou chef do mundo.

Mesa de todos e com todos

Tal como Rui Paula, transmontanas são também as raízes de Justa Nobre. Viu-a nascer e crescer a aldeia de Vale de Prados, em Macedo de Cavaleiros, 500 habitantes e muita história de tradições alimentares para contar. A família de Justa não fugia à regra e era à volta da mesa que se reunia, em tempos em que televisão era miragem e a telefonia coisa rara. Pais, sete irmãos, tios e tias, primos e primas, roda de gente à volta de um elo comum: a comida. A festa, a união, a confraternização, as conversas, os risos, era aí que se exprimiam no ponto mais alto da escala.

Pertencia a todos a tarefa de contribuir para que a mesa se enfeitasse de alimento. Sem exceção de idades ou estatutos. “Era normalíssimo eu, em muito nova, chegar a casa e cozinhar, por exemplo. Nem havia outra hipótese”, desfia a proprietária dos afamados restaurantes lisboetas À Justa e O Nobre, um na Ajuda, o outro no Campo Pequeno. “Ainda criança dava bastantes palpites à minha mãe sobre temperos e gostos. Opinava se faltava sal ou azeite, entre outras coisas. Provava e dizia-lhe o que achava. Adorava destapar as panelas e sentir aquele cheirinho das comidas a fumegar.” São as recordações a vir ao de cima, tarefa fácil quando são tantas e tão gratas.

Justa Nobre tinha apenas nove anos quando matou um frango e o cozinhou com massa. (Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Não demorou muito até Justa Nobre se aventurar, ela própria, a cozinhar de raiz. E aqui a palavra raiz adquire contornos completos. Foi um esparguete de frango que a pôs à prova. “Devia ter nove anos, não mais do que isso. Matei e depenei o frango, cozinhei-o com a massa e servi. Tudo, tudo, tudo. E foi também por essa altura que comecei a cortar e a fazer caldo verde”, sublinha com orgulho, como que ainda sentindo os cheiros dessa “altura feliz” que lhe deixaram marca robusta.

“É muito comum cozinhar e virem-me à memória esses tempos, esses tais cheiros, esses paladares de então”, assegura. “As influências permanecem muito fortes. Aliás, vou transmiti-las para os meus netos, para que não desapareçam”, desabafa. Garantia solene.

Geadas de sucesso

Para não desviar coordenadas, continuemos por Trás-os-Montes. Mais propriamente por Bragança, cidade orgulhosa do seu G Pousada, restaurante galardoado com uma estrela Michelin, como se sabe símbolo de excelência no universo da gastronomia. Obra e graça de dois irmãos, António e Óscar Gonçalves, que fazem da cozinha vida própria e do renovar das tradições missão plena. Os Geadas, como são conhecidos, eles que praticamente nasceram e cresceram no ramo da restauração.

“Os meus pais começaram por abrir um restaurante em Vinhais, o Sol e Neve. Foi daí que surgiu a alcunha, como aquilo era zona onde a geada durava o inverno inteiro, o nome ficou”, contam. Tanto assim que uns anos mais tarde, quando Iracema e Adérito se mudaram com os filhos para Bragança, para abrir porta nova, o nome do novo restaurante só poderia ser um: Geadas.

Essa foi a época que apaixonou os manos Gonçalves. Quando a cozinha do Geadas era quase extensão natural de casa. “Passávamos lá a vida. Cheguei a dormir entre duas cadeiras em plena cozinha”, desvenda António. “Ajudar a minha mãe a preparar as refeições era algo quase natural. O bichinho foi ficando. Até hoje”, confirma Óscar. Começaram por descascar batatas, picar alhos, desfazer cebolas. Evoluíram para o passo seguinte da excelência num piscar de olhos.

Com o puxar das idades, à medida que foram entrando na adolescência, António e Óscar Gonçalves aventuraram-se na elaboração de receitas que não estão ao alcance de qualquer um. Com a supervisão da mãe Iracema, claro, mas com muita independência de criação. “Uma posta de vitela mirandesa, um javali estufado, perdizes também estufadas, pratos de forno… Fazíamos o que víamos fazer, às tantas era quase mecânico de tão natural”, sublinham.

Os irmãos Gonçalves, uma estrela Michelin em Bragança, deram os primeiros passos culinários nos restaurantes dos pais. (Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

Ganharam asas, adquiriram a Pousada de Bragança, abriram nela o G Pousada, ganharam clientela fiel e fama de qualidade. O culminar foi a estrela Michelin atribuída em 2018 pela primeira vez. “O que conquistámos não é um conto de fadas, é pura realidade. E essa realidade surgiu porque aprendemos o que aprendemos com os nossos pais, vem tudo daí. Os pratos que levamos às pessoas têm a identidade do que somos. Estão neles as nossas raízes”, afirmam.

As recordações a que os irmãos Gonçalves aludem com afeto têm episódios vários. Como aquele dia, em que Óscar, com 12 anos, preparou sozinho moelas numa panela de ferro, que depois levou enrolada em papel de jornal aos trabalhadores que andavam ao feno na aldeia dos avós, em Travanca (Vinhais). Ou o porco bísaro e os milhos tantas vezes preparados e comidos lá em casa. Uma ementa imensa que os chefs agora cuidam e aprimoram.

Tradições que não mentem

De restaurante se fez também o passado de Inês Diniz. Não um restaurante qualquer, mas um dos mais afamados e populares do Porto, a Casa Aleixo, em Campanhã, com a enorme estação ferroviária a dois passos. A infância e juventude de Inês fez-se lá, era quase inevitável que assim não fosse.

“Os meus pais eram os proprietários e, além de lá trabalharem, morávamos todos no andar de cima”, conta Inês. O convívio com a cozinha acabou por se tornar intrínseco e aceite com naturalidade que não se contesta. Mas não foram fáceis os caminhos até aceder ao local onde se fomentam todas as iguarias. “A minha mãe não deixava que me aproximasse da cozinha, achava que era perigoso.” No entanto, a curiosidade esteve sempre lá, nunca lhe fugiu do objetivo. “Gostava de ver o que se passava, de perceber as dinâmicas.”

Inês Diniz teve no estabelecimento da família, a famosa Casa Aleixo (Porto), as referências iniciais. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Só quando chegou à idade adulta, “pelos 20 anos”, é que Inês Diniz começou a ser assídua na cozinha da Casa Aleixo. E a preparar aquilo que são as especialidades da casa, “os filetes de polvo com arroz do mesmo, os filetes de pescada, os assados, a aletria”.

As memórias, essas, nunca fugiram. Mesmo quando deixou o restaurante da família e se aventurou por outras andanças. “Ficam sempre agarradas a nós, é quase inevitável. E ainda bem que assim é”, assinala. Ficou também a garantia de que nada vale a pena se a matéria-prima do que se vai cozinhar não é de qualidade. O segredo, jura Inês Diniz, está na origem dos produtos. Condição que continua a levar à letra.

Trabalhar as tradições de sempre

Em setembro, Tiago Bonito foi um dos chefs internacionais convidados a apresentar no Grande Prémio de Singapura de Fórmula 1 os seus dotes culinários singulares. Deu a provar especialidades variadas, como um arroz malandrinho de lavagante ou um xerém de amêijoas, algas e champanhe. Cruzamento de influências e proveniências várias, de referências longínquas que lhe ficaram eternamente moldadas.

Dos tempos em que, em Cantanhede, se sentava na cozinha e observava com a atenção mágica dos olhos atentos de criança a mãe a preparar a chanfana, a aproveitar pedaços de porco acabado de matar para umas morcelas ou um sarapatel, espécie de sarrabulho que os portugueses levaram lá para fora nos Descobrimentos e haveria de se tornar prato de eleição nalgumas regiões do Brasil e da Índia. De ver escorrer para os pratos o azeite caseiro em fios de ouro, de limpar os míscaros, acabados de apanhar com o avô Avelino, que seriam almoço de eleição de tantos domingos.

“É com os sabores que me fizeram feliz que quero fazer as pessoas felizes através dos meus pratos.” A frase de Tiago Bonito diz tanto em tão pouco e é mote de vida do chef executivo da Casa da Calçada Relais & Chateaux, em Amarante, estrela Michelin confirmada ano após ano. Traz consigo a ternura que lhe vem dos tempos em que a cozinha de família era templo de alegria. Lá centrava-se o planeta de infância de Tiago. Lá ele observava, tentava, arriscava.

O chef Tiago Bonito tem da infância passada em Cantanhede recordação maior: “É com os sabores que me fizeram feliz que quero fazer as pessoas felizes através dos meus pratos”. (Foto: Octávio Passos/Global Imagens)

Foi assim desde cedo, “uns dez anos, pouco mais ou menos”. E continuou assim vida fora. Até quando a hora foi de ousar imitar uma iguaria especialidade do avô, dono de três talhos e conhecedor das melhores carnes. “Leitão na carta, uma receita centenária. Segui os passos todos que ele me ensinou e fiz direitinho, calhou muito bem”, lembra.

A mãe, Ondina, foi para Tiago Bonito “a principal fonte de inspiração”, musa de texturas e sabores que pareciam não ter explicação de tão únicas e únicos. Eram dias em que o galo assado no forno, as cabidelas, as muitas e variadas sopas mandavam naquela casa, para alegria do então menino. “O cheiro ficou, parece que perdura. Muitas vezes estou a cozinhar, apanho um desses cheiros e viajo para os tempos de Cantanhede”, reconhece com saudade boa.

O fascínio do caos organizado

Foi uma curiosidade pré-adolescente que espoletou o rastilho do que viria a ser a vida profissional da chef Marlene Vieira. O pai entregava carne em restaurantes e Marlene por vezes acompanhava-o. Observava as cozinhas por dentro, espreitava-lhes os segredos, tentava conhecer-lhes os truques. E deixava-se fascinar. “Era um caos organizado que eu adorava e me chamava a atenção”, confessa.

Tinha 12 anos e decidiu o que queria. Como em casa a mãe não a deixava tocar em tudo o que fosse utensílio para cozinhar, Marlene ganhou coragem e pediu que lhe dessem uma oportunidade no restaurante Costa Brava, que ainda hoje existe na Maia, perto do Porto. “Era só ao fim de semana, mas deu para aprender muito.”

Os primeiros tempos não foram fáceis. Atribuíram-lhe as tarefas mais básicas, quase não a deixavam expandir ideias, aprender, experimentar. “Descascava batatas e cebolas, aquilo de que ninguém gosta muito. Fazia os que os outros não queriam fazer. Até nem me importava muito porque o melhor vinha sempre a seguir”, revela.

Quando o restaurante fechava portas aos clientes, abria horizontes a Marlene Vieira. Mais liberta de trabalho e com a condescendência dos patrões, ficava na cozinha a tentar dar largas à imaginação. “Era então que ia treinando, sobretudo a tentar preparar doces, o que sempre adorei. Sempre sozinha”, deslinda.

Marlene ainda hoje recorda o primeiro projeto de iguaria que confecionou do princípio ao fim. E ri-se do resultado final. “Foi um pastel de nata. Tentei fazer um e foi um desastre, não tinha noções nenhumas.”

Com apenas 12 anos, Marlene Vieira aproveitava as horas mortas de um restaurante na Maia para ensaiar truques culinários. (Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

De então para a frente, a paixão de Marlene Vieira pela cozinha transformou-se em amor e a escolha do caminho profissional surgiu com naturalidade. Com 16 anos ingressou na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira, pouco depois encontrou emprego num hotel, em Vila do Conde. “Não demorou um ano e fui para Nova Iorque trabalhar no Alfama, um restaurante gerido por portugueses no coração de Manhattan.”

Olhando para trás, Marlene Vieira não tem sombra de dúvidas que foram os tempos mais longínquos a dar-lhe o muito que hoje encara com o rigor do profissionalismo a que depois se entregou. “A base de tudo foi aquela temporada no restaurante Costa Brava. A partir daí fiquei apaixonada e percebi que o queria mesmo era ser cozinheira”, admite. O resto foi futuro que agora se escreve com nome próprio no Marlene Vieira Food Corner, no Time Out Market, no Cais do Sodré (Lisboa), e no restaurante Panorâmico, vista privilegiada para Lisboa, Cascais e Sintra a partir de uma sala no Tagus Park, em Oeiras.

Sabores que não se esquecem

Em 2018, está quase a fazer um ano, um restaurante de Guimarães estreou uma estrela Michelin. Mérito de António Loureiro, vimaranense de gema, que em pleno centro histórico da cidade, classificado pela UNESCO como Património Mundial, abriu o A Cozinha. É lá que expande muito do que lhe vem de antes, do antes que lhe fez ser o que é hoje. Uma espécie de prolongamento natural dos tempos em que ficava horas a fio a mirar com deleite as delícias que a mãe ia preparando com denodo e amor.

“Sempre tive muita curiosidade. Pelos aromas, de ver o que se estava a passar enquanto a minha mãe estava na cozinha a preparar refeições. Comecei por ser ajudante dela nessas tarefas”, orgulha-se.

Não se pense que foi fácil para António conquistar direitos adquiridos em torno de tachos, panelas e afins. “Só aos poucos ela me foi autorizando a colocar os legumes na sopa, a por uma massa a cozinhar, por exemplo”, recorda-se. Os passos seguintes foram graduais, até que chegaram as grandes provas de fogo. “Uns galos assados ou uma cabidela de galinha. Ou um bacalhau com dois molhos, um de tomate e pimento e outro bechamel”, descreve.

António Loureiro continua a tentar reproduzir os sabores que o fascinavam nos tempos de criança. (Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Tinha “entre uns dez e 15 anos” e António iniciava quase inconscientemente um percurso que atualmente, aos 50, não tem dúvidas ter nascido nesses tempos de amor materno pela preparação da comida. “Despertou-me o gosto, sem dúvida alguma. Foi quando era mais novo e com a minha mãe que surgiu o prazer e a vontade de querer a cozinha”, afirma convictamente.

A vida de António Loureiro encarregou-se de confirmar a profecia. E de lhe salvar inconscientemente o necessário para que não se perdesse o fundamental. “A minha memória gustativa guardou coisas que me fascinavam quando era miúdo e que continuo a tentar reproduzir. Não propriamente as receitas, mas sobretudo os sabores”, salienta. Para que continuasse a ser nosso o que nunca deixou de ser, para que a felicidade dos outros seja salpicada de outras memórias felizes, para que jamais desapareça património para sempre português.