Publicidade Continue a leitura a seguir

Para voltar à beleza das coisas

Publicidade Continue a leitura a seguir

O corpo feminino foi uma das grandes fontes de inspiração de Oscar Niemeyer, e ele disse-o em betão, em edifícios que continuam a encantar-nos, como a silhueta de mulher deitada que é o Teatro Popular de Niterói. E disse-o em palavras, no Poema da Curva do maravilhoso livro de memórias As Curvas do Tempo.

«Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo. O universo curvo de Einstein.»

A sensualidade deste carioca mudou a arquitetura, moldando o cimento como plasticina ou dançando um risco a desenhar a paisagem. No mesmo país onde a sensualidade foi trazida à luz do dia por escritores, músicos, atores, artistas de tantas artes.

Passou uma semana de ressaca de medalhas e prémios desportivos, com a força explosiva das vitórias sucessivas em competições europeias, e começamos a virar-nos para o outro lado do Atlântico, a pensar nos Jogos Olímpicos que arrancam daqui a uma vintena de dias. É esse agosto que ocupa os sonhos e os trabalhos dos atletas, uns preocupados sem ter ainda provas que os confirmem, outros estimulados pelas medalhas ganhas deste lado do mar.

Antes de a equipa nacional partir, porém, e sem trazer para aqui a turva e situação política do Brasil, há uma história em que se misturam boas e más notícias. Péssimas notícias, na verdade: as violações de crianças, jovens, mulheres, a passividade das autoridades, a costumada dúvida sobre se as meninas estavam «a pedi-las». Do lado das boas notícias: a reação desencadeada pelo escândalo da violação coletiva de uma jovem de 16 anos por mais de 30 homens, alguns dos quais não hesitaram em exibir-se na net. E a nomeação da delegada Cristiana Bento, 42 anos, em cujas mãos foi colocado o processo que se encaminhava estrondosamente para a culpabilidade da vítima.

E foi assim que começou a desfiar-se o novelo escabroso da banalidade da violação e de outras violências dentro e fora de portas. Cristiana não cai de paraquedas nem sozinha neste mundo obscuro. Tem com ela mais gente que não vai vacilar, em diferentes patamares do poder. Por ela passaram casos impensáveis como o do advogado que era abastecido de crianças por uma educadora (a palavra é inadequada, é verdade) de uma creche. E voltou a falar-se das quatro meninas amarradas a árvores, violadas por um adulto e três menores e depois atiradas de uma ribanceira, no ano passado, caso meio esquecido por ter acontecido num lugar longínquo do Nordeste.

Como bem explicou o correspondente do DN, João Almeida Moreira, as notícias deixaram o país em choque e a mergulhar numa psicanálise coletiva. Os números nus e crus: a cada 11 minutos, há uma violação no Brasil. Só há queixas em menos de dez por cento dos casos. Nove em cada dez vítimas são mulheres, mais de dois terços são crianças ou adolescentes.

O que tem isto que ver com o hino à sensualidade da obra de Niemeyer? É precisamente isto: não tem nada que ver, é o oposto de toda a beleza criada por ele, Jorge Amado, Chico Buarque ou Sónia Braga. É a desumanidade a destruir o melhor que a vida tem. É a monstruosidade a obrigar a uma vigilância teimosa e a uma punição sem tréguas. É o mal mais sórdido e imperdoável.

[Publicado originalmente na edição de 17 de julho de 2016]