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Navegar é preciso

O fotógrafo Pepe Brix acompanhou a viagem de um dos últimos bacalhoeiros portugueses.
Foram três meses e meio a bordo do Joana Princesa, um dos 13 navios portugueses que ainda pescam bacalhau na Terra Nova, no Canadá.
O barco zarpou de Aveiro. À volta da ria contam-se séculos de pesca ao bacalhau.
São essencialmente da Murtosa e da Torreira, os homens que se fazem ao mar.
No início de abril, o Joana Princesa encontra-se com o Praia de Santa Cruz nos mares do Norte.
As redes descem a uma profundidade que vai dos 300 aos 500 metros, para capturar bacalhau.
Os homens trabalham em turnos de seis horas, ao fim dos quais são substituídos por outros tripulantes.
Nas pausas de trabalho, é preciso encontrar maneiras de contornar o isolamento.
A tarefa do cozinheiro é essencial: sem boas refeições, a tensão no navio pode aumentar.
A bordo, os telefonemas para casa acontecem uma vez por semana.
A frota portuguesa de bacalhoeiros reduz-se hoje a 13 embarcações.

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Pepe Brix nasceu nos Açores e tem mais água salgada do que hemoglobina no sangue. Fotógrafo de terceira geração, decidiu fazer-se aos mares do Norte. Passou três meses e meio a bordo do Joana Princesa, um dos 13 navios portugueses que ainda pescam bacalhau na Terra Nova, no Canadá, e captou estas imagens. História de uma viagem que nunca terminou, e que valeu ao fotojornalista açoreano o prémio Gazeta 2015 na categoria de Fotografia.

Depois de passar três meses e meio no mar, um homem precisa de tempo. Pepe, que na verdade se chama Rui, só escolheu as fotografias que tinha feito a bordo de um dos últimos bacalhoeiros portugueses muito tempo depois de chegar a terra. Os homens com quem se fez à Terra Nova já o tinham avisado dessa circunstância. Há, no dizer das gentes de Ílhavo, três raças de homens: os mortos, os vivos e os marinheiros. Quando regressam de uma pescaria longa, o limbo torna-se claro como as águas do Atlântico Norte.

O Joana Princesa zarpou de Aveiro a 4 de fevereiro de 2014, com 34 homens a bordo. Pepe, que tem 30 anos e é fotógrafo, estava de tal modo interessado de passar uma temporada em mar alto que fez um curso de observador de pesca, era ele o operador da Northwest Atlantic Fishery Organization destacado para a viagem. «O meu trabalho era o de registar a quantidade de peixe capturado, fosse em peso vivo ou processado.» Responsabilidade elevada, que não interferiu com o registo documental que queria fazer do trabalho dos últimos bacalhoeiros.

O tempo foi essencial. Nas primeiras semanas nem sequer fotografou. A paciência, quando se fala de jornalismo, é toda uma arte. «Ao princípio fui tentando perceber as dinâmicas, os sítios marcantes onde queria fotografar, as coisas que aconteciam a bordo e justificavam o registo das imagens.» Já tinha três semanas de ondulação nos ombros quando disparou os primeiros cliques. E depois continuou sempre a fazê-lo, meio por defeito de repórter, meio para queimar tempo.

É açoriano de Santa Maria e o mar é fascínio tão antigo quanto a fotografia. Os avós – ele alentejano e ela alemã – eram artistas de dois circos diferentes, que nos anos trinta se conheceram no Porto juntaram os chapitôs. Desaguaram em Lisboa e, um dia, foram atuar a São Miguel, nos Açores. «E então olharam um para o outro e decidiram que iam ficar a viver ali.» Paraíso na terra, rodeado de mar por todos os lados.

Pepe Brix, o original, era domador de cavalos, a mulher trapezista. Era talento parco para a vida no arquipélago, por isso decidiram abrir uma loja de fotos à la minute. Mas a II Guerra Mundial trouxe uma base aérea militar para a ilha vizinha, Santa Maria. «Os americanos queriam registos da construção e estavam sempre a pedir ao meu avô que fosse lá. Às tantas ele decidiu mudar-se de vez.» A Foto Pepe funciona em contínuo desde o final da década de quarenta. Primeiro o avô, depois o pai, agora ele. Todos, independentemente do nome, são Pepe para o resto do mundo.

O neto do fundador da loja começou aos doze anos a acompanhar o pai. As revelações na câmara escura e as poses de casamento foram aprendizagens adolescentes e, na viragem do milénio, fez-se ao Porto, para estudar no Instituto Português de Fotografia. «Percebi que o meu caminho estava na fotografia documental, em procurar pequenas histórias de pessoas simples que tivessem muitas camadas de leitura.» Fez interrails, viagens ao Leste da Europa, sempre a tentar enquadrar o que sentia. O espírito nómada era afinal herança genética. Mesmo agora, em Santa Maria, o terceiro Pepe precisa de um barco para conseguir respirar. O Ilha Azul é um veleiro de oito metros, onde ele passa as noites que pode e o mar deixa.

A obsessão com os bacalhoeiros é o outro lado da sua vertente marítima, e passou mais de um ano a frequentar cursos e preparar-se para embarcar. «Agora, olhando em retrospetiva, vejo que para mim foi uma experiência única, aconteceu uma vez. Mas a vida daquelas pessoas é esta, uma vida muito dura.» Meses depois de regressar a terra voltou a Aveiro para passar tempo com os seus companheiros de viagem. Os homens que fazem ao mar do bacalhau são quase todos das mesmas terras, Murtosa e Torreira. Quando a campanha do bacalhau termina, fazem-se à ria de Aveiro para apanhar berbigão.

Pepe divide a viagem em três fases. Há o tempo em que o barco viaja até à Terra Nova, três semanas com mar de inverno e o frio a entranhar-se cada vez mais nos ossos. Depois há toda a campanha. É atenção para os oficiais da ponte e músculo para a tripulação de convés. Turnos de seis horas, toneladas de peixe a descerem da rede aos alçapões, as saudades de casa e o sono. Depois o barco vai a St. John’s, no Canadá, e começa a preparar-se o regresso. É o entusiasmo e a força redobrada, os últimos dias de pesca em alegria, cada homem é uma terra.

Aqui está a história de uma viagem que, segundo Pepe Brix, nenhum homem poderá esquecer. Quando regressou a terra firme, a 19 de maio do ano passado, não poderia ser a mesma pessoa. As fotografias explicam melhor que quaisquer palavras a solidão e o companheirismo, a tensão e o esforço dos últimos portugueses que andam ao bacalhau. Daqui não saem mortos nem vivos. Saem marinheiros, que não são uma coisa nem outra.


Este portfolio, publicado na Notícias Magazine a 1 de março de 2015, valeu a Pepe Brix o prémio Gazeta na categoria de Fotografia.