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O feminismo está na moda

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Texto de Ana Pago | Foto da Getty Images

Fevereiro deste ano, Semana da Moda de Milão, temporada de inverno 2017/18: Chiuri volta a passar a mensagem de luta inspirando-se na roupa fabril das mulheres na Segunda Guerra Mundial, graciosas e lutadoras. Contudo, é Miuccia Prada quem arrasa na defesa da causa feminista ao recriar um dormitório de mulheres com camas e rostos femininos, os quais também estampou em algumas saias e tops da coleção. «A moda é sobre o dia-a-dia e esse quotidiano é o palco das nossas liberdades, quer na vida privada quer na pública», disse aos jornalistas a designer, que desde os anos 1960 se bate pela questão da igualdade de género. «Neste desfile decidimos olhar para o papel das mulheres na formação da sociedade moderna, a sua participação política, as conquistas sociais.»

A moda está a pôr o tema nas passerelles e isso gera curiosidade, sede de saber e mudança de mentalidades. Os estilistas tiram partido do mediatismo para passar estas mensagens.

Decididamente, a moda tornou-se uma alavanca do feminismo, explica a stylist Sandrina Francisco, especialista em marketing de serviços de luxo. «Tal como a indústria da moda pegou no girl power e o transformou em ferramenta de marketing, também as mulheres viram na moda um modo de veicular a sua mensagem.» E foram muitas as marcas que se uniram ao movimento além da Dior, cujo slogan We Should All Be Feminists aludia a um discurso da escritora feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie – que assistiu ao desfile com outras mulheres engajadas, como a cantora Rhianna, a ex-primeira-dama Carla Bruni ou a atriz Marion Cotillard. «A Gucci teve na plateia a ativista transgénero Hari Nef e a curadora feminista Petra Collins. A atriz e ativista Amandla Stenberg é musa do perfume da também feminista Stella McCartney», acrescenta Sandrina.

Ainda na Semana de Milão, a estilista Donatella Versace afirmava que a moda tem o dever de falar sobre o contexto em que está inserida: o perigo dos nacionalismos, a vitória de Donald Trump à presidência dos EUA, a marcha das mulheres em protesto após a cerimónia de posse. «Chegou o momento de retomar a luta», disse, enaltecendo a inclusão. Armani e Christian Dior apresentaram novas abordagens à feminilidade. A 13 de fevereiro, na Semana da Moda de Nova Iorque, o designer Prabal Gurung manifestou-se em t-shirts com as máximas The future is female (o futuro é feminino), This is what a feminist looks like (é esta a aparência de uma feminista), break down walls (derruba muros) ou girls just wanna have fun-damental rights (apelando à letra Girls Just Wanna Have Fun, de Cyndi Lauper, para dizer que as miúdas só pedem direitos básicos).

Na Semana da Moda de Nova Iorque, o estilista Prabal Gurung usou (e as suas modelos na passerelle também) t-shirts com mensagens feministas.

Foi assim até ao último dia da Semana de Moda em Paris a 7 de março, o culminar da temporada outono-inverno 2017/18: as grandes griffes mal falaram de outra coisa que não do empoderamento feminino. «A realidade está a mudar. O feminismo, antes visto apenas como algo do passado que acarretou grandes alterações para as mulheres, está hoje a ser discutido por mulheres e homens no mundo inteiro, com um olhar mais crítico e individual», aplaude Danyla Borobia, psicóloga e consultora de estilo em Miami, EUA. O facto de a moda estar a pôr o tema nas passerelles só vem gerar curiosidade, sede de saber e mudança de mentalidades. «Este novo feminismo está comprometido com o respeito. Entende os géneros como iguais, embora não descure as diferenças de cada um nem o alcance dos direitos e liberdades de escolha», diz à Notícias Magazine.

E não, a luta das mulheres pelos mesmos direitos não será novidade. Já ver tantos estilistas a erguer a voz em simultâneo, num mundo ainda dominado por eles, é digno de nota.

Muitos foram os momentos na história em que o feminismo funcionou como catalisador de mudanças. Logo em 1910, as mulheres aderiram aos vestidos soltos do francês Paul Poiret e libertaram o corpo dos espartilhos que as dominavam a todos os níveis sociais. Na Primeira Guerra Mundial, a comodidade impunha-se à estética: as working girls usavam calças e cabelo curto para agilizar o seu papel nas fábricas, rejeitando o anterior conceito de feminilidade. A partir de 1918, Coco Chanel revoluciona de vez a liberdade de movimentos ao incluir no guarda-roupa feminino calças, tailleurs, vestidos práticos para trabalho e lazer, sapatos de tacão baixo, bolsas a tiracolo e até bijutaria (dos poucos adornos que podiam comprar sem dependerem dos maridos).

Nas décadas de 1940 e 1950, o feminismo ganhou novo alento com intelectuais como Simone de Beauvoir. O biquíni ateava polémicas e tornava-se símbolo de emancipação (as fotos de Brigitte Bardot na praia de Cannes em 1953 fizeram furor). Marilyn Monroe democratizava os jeans e ousava com os seus decotes, abrindo caminho para que as minissaias da estilista inglesa Mary Quant desinibissem uma revolução sexual sem precedentes na década de 1960. Mais tarde popularizou-se o power dressing (com o livre acesso ao mundo laboral nos anos 1980), as transparências (apogeu da libertação do corpo em 2006) e a moda unissexo. Em 2014 Karl Lagerfeld, designer da Chanel, voltou a impulsionar o feminismo simulando um protesto em que modelos famosas – Gisele Bündchen, Gigi Hadid, Kendall Jenner e Cara Delevingne – surgiram com os slogans Ladies first (Senhoras primeiro) ou Be different (Seja diferente).

As mulheres passam por gravidezes, cuidam dos filhos. São apontadas como menos ativas a assumir riscos e não têm papéis dominantes. Sempre precisaram de coragem para romper paradigmas.

«Eu estudo tendências e uma delas é o female up rising em todos os setores de atividade a nível internacional», sublinha a consultora Sandrina Francisco, para quem as mulheres estão cada vez mais a preparar o salto para uma integração plena na sociedade. «Sentem que não precisam de pedir proteção. Que podem alcançar mais e têm em si o poder para fazê-lo.» Raquel Guimarães, diretora da Fashion School, no Porto, concorda: «Estão conscientes da sua polivalência e de como as suas competências podem ser um contributo ímpar nas várias esferas do quotidiano.» O reconhecimento do poder no feminino vem de todos os quadrantes, diz a formadora. A quem sugere que as marcas só se apropriam do feminismo para aumentar as vendas, responde que isso não a incomoda, desde que vá «dando força às consciências menos anímicas».

E não, a luta das mulheres pelos mesmos direitos não será novidade. Já ver tantos estilistas a erguer a voz em simultâneo, num mundo ainda dominado por eles, é digno de nota. «Associamos moda e mulheres, mas este é um pelouro masculino a vários níveis», realça Sandrina. Apesar de as turmas de moda serem maioritariamente compostas por alunas, existem mais diretores criativos e mais designers homens, que ocupam também a maioria dos cargos de topo das grandes marcas. «Leva-me a pensar que é mais difícil para as mulheres subirem na hierarquia», aponta a stylist. Elas passam por gravidezes, cuidam dos filhos. São apontadas como menos ativas a assumir riscos e não têm papéis dominantes. «Sempre precisámos de coragem para romper paradigmas. O que é certo é que eles não podem usar vestidos, mas nós podemos usar calças.»

 

O GORRO QUE DESAFIOU TRUMP

Queimar sutiãs já era. O novo símbolo da luta das mulheres contra as ideias sexistas de Donald Trump, o presidente misógino dos EUA, é um gorro cor-de-rosa em tricot a sugerir umas orelhas de gato – o famoso pussy hat, usado por milhares de manifestantes na Marcha das Mulheres em Washington, a 21 de janeiro deste ano. Estrelas como Madonna ou a atriz Jessica Chastain fizeram questão de usar os delas, apelando à moda para protestarem contra uma presidência machista.
Tudo começou quando Trump afirmou, numa gravação trazida a público recentemente, que às celebridades tudo é permitido com as mulheres, incluindo agarrá-las pela vagina (em inglês pussy, que também significa gatinha, daí o formato do gorro). Com a Marcha das Mulheres prestes a estalar, o Pussyhat Project – criado por Krista Suh e Jayna Zweiman, de Los Angeles – partilhou o molde na internet e desafiou-as a exibirem o seu gorro no grande dia. O êxito foi tal que até os polícias nas ruas, homens e mulheres, aderiram ao repto. O pussy hat fez história a defender a igualdade de direitos.

ELAS ROMPERAM PADRÕES

COCO CHANEL

«Paradigma da mulher moderna, é uma das maiores responsáveis pela mudança do papel feminino no século XX», escreveu a biógrafa Janet Wallach. A ela se devem a inclusão de peças masculinas para maior conforto, o corte de cabelo Chanel – a direito sobre os ombros – e o primeiro perfume da marca (Chanel n.º 5)

MARLENE DIETRICH

A atriz adorava usar calças e influenciar outras mulheres a fazê-lo. Tanto que, em 1930, o chefe da polícia de Paris ameaçou prendê-la se continuasse a usá-las. Quando apareceu na estreia d’O Sinal da Cruz (em 1932) trajando um smoking masculino, mudou a moda para sempre.

MARY QUANT

Conhecida por criar e popularizar a minissaia e os vestidos curtos, a estilista londrina ajudou a libertar a condição feminina. Em 2015 recebeu das mãos da Rainha Isabel II o título de Dame da Ordem do Império Britânico (sendo Dame o equivalente feminino de Sir) pelo seu trabalho revolucionário na indústria da moda.

VIVIENNE WESTWOOD

É outra estilista inglesa de renome, responsável pela criação de um estilo inspirado no movimento punk. E torna-se feminista no seu não-feminismo: não vê qualquer vantagem em manifestações pelos direitos das mulheres simplesmente porque elas não precisam disso. Os homens, sim, têm razões para serem inseguros.

NAOMI CAMPBELL

Começou a sua carreira de top model aos 15 anos e deu logo nas vistas por ser a primeira mulher negra a aparecer na capa da revista norte-americana Time e nas capas da Vogue inglesa e francesa. Escândalos à parte devido a episódios de agressão (inclusive a polícias e funcionários de lojas), deixou a moda mais inclusiva.

ANNA WINTOUR

Perfecionista e exigente, a jornalista britânica é editora-chefe da Vogue americana desde 1988 e inspirou a editora-chefe da revista Runway, Miranda, no filme O Diabo Veste Prada. Em 2014, a ex-primeira-dama Michelle Obama deu o nome de Anna ao instituto de vestuário dentro do Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque.

WINNIE HARLOW

Quebrou barreiras ao ser a primeira modelo com vitiligo (doença de pele em que a perda gradual de pigmentação resulta em manchas no corpo) reconhecida a nível mundial. Foi descoberta no Instagram por Tyra Banks, modelo e apresentadora do programa America’s Next Top Model, e é uma inspiração para milhares de mulheres.

ASHLEY GRAHAM

Quando lhe dizem que tem um corpão o piropo pode ser levado num sentido mais literal, já que Ashley é uma das primeiras e mais famosas modelos plus size do mundo. Segura de si, cheia de curvas que contrariam os ideais de magreza da maioria das marcas, foi capa da revista Sports Illustrated em fato de banho.