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A morte do Bairro Alto

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Há uns bons anos que não ia ao Bairro Alto. Quer dizer, de vez em quando vou lá ao restaurante do meu amigo Bhaves, ou vou a um concerto na Galeria Zé dos Bois, mas há muito tempo que não me dispunha a uma noite de copos com amigos nas mesmas ruas onde vinte anos antes firmámos a nossa amizade.

Costumo dizer que as pessoas que têm agora 40 anos são pioneiras na extensão boémia. Ou, dito de outra forma, a idade não nos prendeu demasiado a casa e continuamos a gostar de sair à noite. Mesmo que as obrigações e a vida familiar nos exijam rituais mais domésticos, e mesmo que a ressaca agora dure mais tempo, acreditem que tentamos, como nenhuma das gerações anteriores, preservar uma certa vadiagem.

Nos anos noventa, quando cheguei a Lisboa, o centro de toda a animação era o Bairro Alto. A cidade tinha iniciado o seu grande processo de despovoamento na década anterior e aquela colina, que somava séculos de farra, foi capaz de reunir a folia que definhava em cada bairro – e agora se concentrava toda ali.

O Bairro da minha geração era profundamente lisboeta. Não era só copos, era tertúlia. Interessava-nos sobretudo a conversa e então ficámos à porta dos bares a beber cerveja, teorizar sobre os grandes dilemas do mundo e as mais ínfimas das circunstâncias, a aprender em nove negas que à décima nos podíamos converter em mestres de sedução. Era isso o Bairro Alto. E era tão específico que se foi tornando atrativo para demasiada gente. Aparecia em todos os guias turísticos, em todos os emails e em todas as mensagens de telefone. «Vamos ao Bairro?»

Aos poucos algumas casas foram sendo transformadas em hotéis e hostels. Alguns habitantes protestaram – não tanto os que sempre viveram ali, mas sobretudo os que tinham ocupado casas anos antes porque achavam que a confusão era cool e agora, com filhos nascidos e empregos diurnos, a tertúlia era demasiado ruidosa e suja. Então, em 2012, a câmara decidiu limitar o horário de funcionamento do bairro.

Os bares, que antes fechavam às seis, passaram a cerrar portas às duas da manhã – uma hora mais tarde às sextas, sábados e vésperas de feriado. Era uma medida bastante popular, diga-se de passagem, ainda mais porque foi tomada em vésperas de autárquicas. A noite tem o cunho da vadiagem e do vício – e isso não ganha votos.

Mas depois há isto: uma boa parte dos lisboetas trabalha hoje com horários nada curriculares. O Bairro Alto, no entanto, tem hoje um horário europeu, ruas cheias de viajantes e cada vez mais vazias de lisboetas. A diversão noturna foi empurrada para perto do rio, mas no translado perdeu-se uma coisa. Perdeu-se aquele espaço intermédio que existe entre o final do jantar e o início da dança, em que as ruas se tornam mesas redondas e os debates se tornam extraordinários.

Nessa noite em que voltei ao Bairro Alto, discutimos o Médio Oriente ao jantar e a conversa prolongou-se no restaurante até tarde. Quando saímos, estávamos quase a descobrir a solução para a paz na região mais conflituosa do globo. Mas os bares agora fecham demasiado cedo. Foi pena: mais um copo e podíamos ter salvado o mundo.