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2042, Odisseia em Portugal

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Textos Pedro Marta Santos | Ilustrações Lília Gomes

Acto I: AS CRIANÇAS

O corpo desarticulado quase quebrou ao primeiro suspiro, como se respirar fosse um ato de divina insolência. Maria Clara, exausta como todas as mães desde o começo do mundo, pegou no pedaço hirto de gente e desvendou-lhe o rosto vermelhusco em boca de coringa: ali, algures, havia um sorriso.

Os técnicos do Hospital Central da Área Metropolitana de Lisboa e Vale do Tejo, parceria público-privada de 3200 milhões de novoescudos – o euro implodira em 2022, gerando caos e fúria durante 16 meses até os mercados de Charleston e Kuala Lumpur se acalmarem –, abriram duas garrafas de hidromel de Estremoz. Afinal, era oficialmente o primeiro bebé do ano, embora já estivéssemos a 3 de janeiro.

Com a natalidade em queda há 27 semestres consecutivos, cada nascimento era celebrado como uma vitória na Mundovisão (ganháramos o concurso de talentos musicais, organizado pelos idosos fundadores da Google Larry Page e Sergei Brin em parceria com as empresas de scouting de Simon Cowell, cinco vezes desde 2019).

Maria Clara, portuguesa cor de chocolate equatoriano, nascida na Cidade da Praia e em união de conveniências – descendente jurídico-fiscal da união de facto – com Thor Destrooper, holandês naturalizado, pálido como as paredes de Cuba-a-Velha, de tios prósperos pelo negócio de restauração ultragourmet na Madragoa, esgotara o plafond do seguro de saúde All Inclusive Except Cancers and Other Chronic Diseases. Mas a felicidade era o seu solipsismo.

Thor falara-lhe dos planos de saúde que circulavam no mercado branco (a mais recente vaga de correção política, na década de 2030, eliminara qualquer negrume a substantivos e adjetivos), e tinha um contacto no Entroncamento para garantir a cobertura dos próximos 18 meses. Depois disso? Apesar do smog, estava uma tarde de sol radioso. Logo se via.

Acto II: OS ANCIÃOS

Embora não estivesse certa de já ter acordado, Fátima abriu os olhos. O quarto tinha todos os confortos dos melhores Lares de Terceira Oportunidade à escala global, num mercado extremamente competitivo. O espaço era de um design impoluto, cristalino, osmose crepuscular entre o classicismo nórdico e a Escola Pós-Milénio de Quioto. Lá fora, era apenas a serra do Caldeirão. Sentia-se a tranquilidade das azinheiras e dos carvalhos, com sapos embalando o repouso noturno.

Levantou-se depressa: não deixaria de o fazer por completar hoje o seu 107º aniversário. Fátima não era uma bizarria, nem sequer uma exceção estatística. A esperança média de vida europeia para as mulheres estava agora nos 105,4 anos (98,1 para os homens), uma diferença negativa de escassos 22 meses face à média europeia.

No espelho redondo e interativo, a face acusava rugas fundas, pistas de uma vida dura mas repleta, trilhando-lhe a pele em sucessivas ondulações. A última vez que os netos a tinham visitado, havia 349 dias (não era uma questão de memória prodigiosa ou obsessiva; os dígitos mantinham-se destacados no espelho até que os apagasse), a bisneta, Suzianna, loira como campos de trigo em hora mágica, sussurrara de forma suficientemente audível para Fátima escutar, enquanto lhe virava a cara de enfado: «a bisavó parece um sharpei».

O filho único, que pagava todos os anos as amenidades por transferência quântica, deixara de vir havia sete anos, após o 100º aniversário – eram comuns num Lar deste gabarito, havia mesmo um pack de festejos a preços módicos –, oferecendo-lhe uma écharpe. Era julho, deitou-a fora.

Colocou um vestido simples, em padrões de figos e amendoeiras, com o auxílio de Tyrion, anão androide doméstico de tecnologia luso-polaca, e percorreu o corredor até à sala comum num ritmo pouco geriátrico (a dupla prótese da anca de tungsténio neutro e efeito triple boost era uma categoria).

Chegou à sala, refeitório em doirados Versace e peças rosnantes ao estilo Damien Hirst – o rétro voltara a estar na moda –, sentou-se numa das três dezenas de largas poltronas laranja, distribuídas em círculo, tirou o tablet do bolso do vestido e verificou as mensagens. Todos agarrados aos seus tablets GALP e EDP, os 25 restantes velhos e velhas faziam o mesmo, polegares ativos, pescoços curvados sobre os ecrãs, em silencioso uníssono.

Acto III: OS IMIGRANTES

Ao sair da torre do Centro Integral de Apoio à Imigração (CRIAI), a que a direita neo-neo-conversadora de Luís Cristas, o nono filho de Assunção Cristas e figura messiânica do CDS-PS – Partido Separatista, chamava, em sorriso amarelo, «Criai e multiplicai-vos», Nawaz Bukhari contemplou por um segundo a longa fila que integrara seis horas antes, enguia multiétnica de muçulmanos, ortodoxos, adventistas, budistas, sefarditas, coptas, hindus e o ocasional membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, enleando, até se perder de vista, o gigantesco falo de vidro e betão armado construído onde antes existira o Cinema Batalha, velho anfiteatro de histórias quase tão trágicas como esse Grande Surto Mediterrânico de 2014-2023, onde 1,3 milhões de almas tinham perecido em cascas de noz vindas de enseadas clandestinas da Tunísia, da Líbia, de Omã, da Eritreia, transformando o Mediterrâneo, o estreito de Gibraltar e parte do oceano ao largo das Baleares num imenso cemitério de água salgada.

Olhou para o cartão digital impresso no minúsculo ultra-smartphone e sorriu: ao fim de nove meses de trabalho contínuo como condutor de hovercrafts voadores sobre a Ribeira, graças à técnica apreendida nos aerobarcos lumpen de Rawalpindi, era agora, oficialmente, cidadão da República Portuguesa, mais um a ter ajudado aquela nação quase milenar a converter-se no segundo maior destino turístico da Eurásia a seguir a Londaris, mega área metropolitana resultante da fusão geográfica e geoestratégica de Paris com Londres.

Desceu o início de Santa Catarina e virou rumo à Praça D. João I, onde um dos cento e dezanove Pita Shoarma by MacDonald’s do país disponibilizava menus a partir dos 2500 novoescudos. Pediu um Big Falaffel, sentou-­se entre um casal de nigerianos, um finlandês, unhas dos pés pintadas de cor púrpura nas tristes chanatas (a Finlândia ficara falida em 2036 após a implosão do sistema fiscal bancário, três resgates e quatro procedimentos por défice excessivo) e um grupo de amigas cantonesas, que ria em uníssono.

Não teve tempo de levar o Sumol de Cebola Roxa aos lábios, já que o restaurante explodiu face aos acontecimentos no ecrã holográfico de 6ª geração. Com um fulminante remate de cabeça, Quim Yarmolenko, o Eusébio de Odessa, capitão da equipa nacional, mãe ucraniana e pai do Barreiro, acabava de marcar o Golo de Platina na final do Campeonato do Mundo China-2042. Nawaz era simpatizante do onze das quinas desde o triunfo desta no Europeu de 2034, quarta vitória lusa no século XXI. Mas, agora, a seleção portuguesa era a sua seleção.

Acto IV: AS MULHERES

A festa, de um luxo digno das velhas casas reais europeias, reunia a elite do PSI-40 aos clãs renascidos dos escombros do sistema financeiro, da indústria pesada e dos grandes latifundiários, graças a um sistema de casamentos e de alianças cuidadosamente tecidas nos últimos 70 anos , hoje acrescidos de presenças eleitas entre as vedetas mais sumptuosas do desporto, moda, styling e Internet das Coisas.

Teresinha, a anfitriã, estava deslumbrante, o corpo hollywodiano enfiado num corpete de plumas de flamingo e crinolina decorada por motivos do Oriente Médio. O cabelo, curto e rapado do lado direito, era de um negro lunar, feito de dezenas de minúsculas nuances em cinza metálico.

Os Loubotin-Onofre faziam-na levitar um palmo acima dos restantes mortais. Teresinha era magnífica, e ninguém se orgulhava mais de a ver comandar um salão, entronizada imperatriz do supremo bom gosto, do que Zeca Antunes de Andrade, o marido.

A vivenda de dois pisos, de uma elegância cínica muito Mies van der Rohe, desaguava num jardim japonês de rochedos de tulipa e oceanos de miosótis. Ela sentia o leve odor a inveja enquanto saltitava de círculo em círculo como abelha-mestra a quem a imortalidade fora concedida. Sorriu, e os dentes eram mais que perfeitos.

O relógio cósmico marcava 02h15. Os convidados tinham deslizado os smokings indianos e os vestidos de seda pelos assentos de pele de pantera negra, acelerando os motores biónicos de 1200 cavalos dos SUV descapotáveis – carros e proprietários eram iguais, como se Tom Ford fosse Deus e Ferruccio Lamborghini o seu discípulo – rumo à Ponte Pênsil Estoril-Colares.

Enquanto Zeca ultimava com os criados indonésios os derradeiros preparativos para o almoço do dia seguinte (era com o CEO da telcom dominante no contexto ibérico, e convinha fechar o negócio antes que o homem fosse preso), Teresinha subiu os degraus para o andar superior.

Entrou no quarto, sentou-se em frente do tocador em forma de moreia alada e começou a desmaquilhar-se, recorrendo ao toalhete laser. O imaculado sorriso desapareceu, cedendo espaço a um olhar de terrível melancolia. Era um rosto abandonado à sua sorte. O olho esquerdo, sob a capa digital de rímel e sombra, estava pisado, e o queixo e parte do pescoço, debaixo do blush e do filtro bronzeador eletrónico, estavam cobertos de escoriações.

Horas antes do início da festa, o Zeca tinha feito das suas. Não gostara de um comentário dela sobre a música escolhida para a soirée. Mas a noite ainda não tinha acabado.

Acto V: OS CASAIS

Ninguém olhou furtivamente para eles. Ou lhes virou a cara. Vinte anos antes, um tio de Sofia fora expulso de uma esplanada a poucos metros dali por beijar o namorado entre dois gins. E a mãe de Rodrigo fora ostracizada pela família até ao definitivo corte de relações após decidir casar com a melhor amiga na ressaca de um matrimónio heterossexual precoce e carregado de equívocos (tratara-se do pai de Rodrigo).

Era um domingo, e passeavam todos de mão dada pela Praça do Giraldo. Na primavera, o calor de braseiro alentejano concedia brisas frescas pelo final da tarde. Sofia, Rodrigo, Marina, Kléber e Mário estavam legal e sentimentalmente unidos há três anos.

O casamento múltiplo fora aprovado em 2035, em resposta a uma polissexualidade que se previa maioritária na Europa em 2060 e nos EUA e Canadá cinco anos mais tarde.

Amar era amar, e as cores e matizes da praça, em pequenas marés de sorrisos, refletiam isso mesmo: pares do mesmo sexo, masculinos e femininos, poliandria de duplo sentido, new identities (era a palavra da moda para os transsexuais) ou novos e novas virgens, decididos a uniões castas, comentavam a mesma atualidade, bebiam os mesmos refrescos, acariciavam as suas crianças de igual maneira.

Este casamento múltiplo começara com Sofia e Rodrigo (Rodrigo mudara de sexo aos 14 anos com o apoio dos pais). Marina surgiria sete meses depois, e Kléber e Mário já estavam juntos, embora tenham chorado de comoção na discreta cerimónia numa quinta das redondezas que selara a união a cinco.

O domingo de céu azul como quarto de bebé era ainda mais especial porque Sofia estava grávida e Marina era a virtual partner do quinteto – os virtual partners tinham-se multiplicado nos anos 30 do novo século, parceiros de empenho completo mas comunicação à distância via LoveVR, a app que substituíra o Skype, acrescentando-lhe sensores que podiam ser ligados a um chip cognitivo na pele.

Hoje, Marina estava de carne e osso com eles. Acabaram de atravessar a praça, Desaparecendo sob os arcos de pedra.