Publicidade Continue a leitura a seguir

Voltamos às modistas

Publicidade Continue a leitura a seguir

O pronto-a-vestir não lhes tirou clientes. Parece até que as valorizou. O sucesso está na qualidade do trabalho e na fita métrica. Porque nenhuma roupa assenta tão bem num corpo, seja ele de tamanho S, M, L ou XL, como a roupa feita à medida.

É no terceiro andar do Edifício Interpress, no Bairro Alto, em Lisboa, numa pequena sa­la estreita sobre o comprido, que as Modis­tas de Lisboa confecionam roupas por me­dida. Debruçadas sobre uma mesa ilumi­nada pela luz natural que entra pela porta de uma varanda com vista para o Tejo, Susana Fernan­des e Sara Gaspar detêm-se nos acabamentos de um vestido cujo tecido chama a atenção pelo exotismo do padrão e das cores. Num busto, a um canto, um peda­ço do seu talento está exposto num vestido de cerimó­nia em tecido sablé azulão, cujos detalhes não deixam nenhuma cliente indiferente – decote retangular com encaixe contrastante, aperta atrás com sistema de fe­cho-éclair invisível, as mangas em 3/4 estilo alfaiate, peplum amovível a apertar atrás com colchete, forrado com tafetá tipo ponge. Mas os pormenores desta peça são uma ínfima parte do trabalho que esta dupla é ca­paz de executar. Para além de vestidos de cerimónia e de festa, que constituem a maioria dos pedidos, fazem roupas para o dia a dia, desde saias-casacos a calças e blusas. E como os tempos não estão de feição para recu­sar trabalho, aceitam fazer transformações e arranjos.

Existem como dupla de modistas há pouco mais de um ano e já têm uma carteira de clientes «confortá­vel», o que lhes permite pelo menos acreditar no futu­ro do ateliê. Quem, como elas, mudou de profissão na casa dos trinta e teve de aprender a costurar – Susana é licenciada em Psicologia mas nunca exerceu, traba­lhava numa empresa de telecomunicações; Sara tinha perdido o emprego numa distribuidora de cinema –, só pode abraçar com otimismo uma atividade que parece estar novamente na mó de cima. O nome que escolheram para o ateliê é exemplo disso.

«Mais do que fazer bainhas e uns arranjos, quisemos passar uma mensagem: a de que temos vontade de re­cuperar o ofício de modista e a tradição de ir à modis­ta», diz Sara. E isso passa por conseguir atrair as pesso­as mais jovens, criar nelas o hábito de mandarem fazer roupa por medida. É mais caro do que o pronto-a-vestir de um modo geral, é certo, mas é também um merecido investimento na imagem. «Faz toda a diferença vestir uma roupa que cai no corpo como uma luva», diz Susa­na. «Mesmo as pessoas magras, que são mais fáceis de vestir, tiram mais partido da roupa feita à sua medida do que no pronto-a-vestir.» As clientes reconhecem a vantagem e parecem satisfeitas com o perfecionismo de Sara e Susana, para quem «os trabalhos mais difíceis de executar são um desafio». E apesar de trabalharem mais do que alguma vez imaginaram, é com um sor­riso largo que reconhecem: «Nunca fomos tão felizes no trabalho.» O arrependimento não mora neste ateliê.

O ARREPENDIMENTO TAMBÉM NÃO MORA no ateliê de Linda Ramos, na Rua do Cabo, em Campo de Ouri­que, Lisboa. É com boa disposição que Linda, de 41 anos e filha de modista, continua o legado da mãe em duas frentes – no ateliê de confeção por medida e na escola de corte e costura Europa. Nunca quis fazer outra coisa na vida, nem a frequência do curso de Técnica Superior de Educação (que abandonou quase no fim) a demoveu da costura. Era miúda quando começou a familiarizar-se com a agulha, as linhas, a tesoura e o tempo, ao ver a mãe e as suas costureiras de volta dos tecidos. Foi aprenden­do a passar marcações, a cortar, a pôr em prova, a aparar e a chulear as costuras, a abrir a ferro. Mas foi na escola fundada e gerida pela mãe que aprendeu a executar com perfeição o que há de mais complicado nesta arte.

Andou aí três anos em formação, tendo a mãe como professora, e hoje é ela quem ensina. Fundada em 1962, a escola Europa é das mais antigas em Lisboa, mas não será a antiguidade que lhe garante a lotação nas inscri­ções: é, sobretudo, «a qualidade» da formação, que no caso do curso completo de costura tem uma duração de 1152 horas em dois anos. O preço – 190 euros por mês – não é à partida atraente. «Mas se as pessoas pensarem que é um investimento numa profissão com futuro, em que aprendem tudo o que é necessário para executarem os trabalhos mais complexos, terão outra perspetiva.»

Numa altura em que parece haver uma recuperação deste ofício, em parte provocada pela onda de desempre­go e pela necessidade de as pessoas procurarem outras atividades (a abertura de muitas casas de arranjos nos últimos anos é disso exemplo), a oferta é proporcional à procura que, no caso da confeção por medida, «tem sido cíclica», como testemunha Linda: «Antigamente, não ha­via família que não se vestisse na modista. No início de ca­da estação era costume as pessoas comprarem os tecidos para os levarem às modistas, nas quais se vestiam mães e filhos. Isto, nos anos 60 e 70.» Com a expansão do pronto–a-vestir, a procura refreou. E voltou agora em força: «O trabalho de mãos está na moda. Há cada vez mais pesso­as a quererem aprender a costurar, umas para si próprias, muitas para fazerem disto profissão. Nos meus workshops tenho médicas e professoras que os frequentam pelo pu­ro gosto de costurar, outras estão desempregadas e ve­em nisto uma saída. Também tenho muitas estudantes de design de moda.»

O espaço é amplo mas, mesmo assim, não é suficiente para acolher em simultâneo as clientes – «dez regula­res e umas quantas, poucas, esporádicas» – e as 50 alu­nas dos cursos e workshops (além da formação de dois anos, a escola de Linda também promove worshops de fim de semana para aprender o básico). «Tive de estipu­lar dias para cada atividade. Durante quatro dias por se­mana a casa funciona exclusivamente como escola, e durante três funciona como ateliê.» A formação é o que lhe ocupa mais tempo. Tanto, que se dá ao luxo de re­cusar novas clientes: «As que tenho são fixas e mante­nho-as por respeito, pois muitas já eram clientes da mi­nha mãe. Gostava de aceitar mais, mas não consigo des­dobrar-me. Tenho uma modista a trabalhar comigo e dois filhos pequenos, gémeos, que precisam de mim e eu deles.»

Fotografia: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

O TRABALHO, MESMO EM ÉPOCA DE CRISE, não tem de ser tudo. Mas para Maria Antónia Rodrigues, que com 74 anos já devia estar a gozar a reforma, continua a ser a sua razão de viver. «Trabalho como quando tinha 30 ou 40 anos, com a mesma energia e afinco. Aprendi a costu­rar aos 10, quando saí da escola, e estou à minha responsa­bilidade desde os 17. Acho que desde então não houve dia em que não pegasse na tesoura e na agulha, apesar das dores de costas que me afligem e me põem toda torta.»

Com orgulho na voz, diz que confecionou o primeiro vestido de noiva quando tinha apenas 18 anos. Isto para dizer que faz «tudo com a maior das perfeições», ou não fosse ela modista que aprendeu à moda antiga uma ar­te de que «muitas mulheres se dizem sabedoras, mas na verdade não sabem fazer mais do que bainhas e pregar botões». Maria Antónia encontra na crise terreno fértil para a «charlatanice que por aí anda». Diz ela que sur­giu «muita coisa barata e muita coisa má», referindo-se não só às pessoas cujo mau trabalho desprestigia a pro­fissão mas também ao pronto-a-vestir. E o pior, acres­centa, é haver uma clientela «tão pouco habituada aos trabalhos como deve ser. Dá-se por vezes o caso de nem saberem como é um trabalho bem feito».

É numa sala pequena de um primeiro andar na Rua da Hortinha, em Portimão, que Maria instalou o seu ateliê há muitos anos, não sabe quantos. Podia fazer mais, mais barato e mais depressa. Ganharia mais di­nheiro, mas o brio obriga-a a fazer como aprendeu. «Das minhas mãos não saem chinesices, disso as mi­nhas clientes podem estar certas.» Estão. De contrá­rio, não deixariam nas mãos desta algarvia a confeção de quase todas as roupas que usam. «Eu ainda perten­ço àquela geração de modistas que tem senhoras que se vestem cá o ano inteiro. Já houve épocas melhores, mas hoje as pessoas parece que estão a querer voltar. E eu acho isso bem. Não falo por mim, que já estou ve­lha e o que tenho chega-me. Falo pelas clientes, por­que o barato não dá elegância nenhuma.»

Fotografia:Pedro Granadeiro/Global Imagens

UMA OPINIÃO PARTILHADA pela colega Bernardette Guerra, com loja aberta no Centro Comercial Brasí­lia, na Avenida da Boavista, no Porto. Tal como Ma­ria Antónia, Bernardette aprendeu a arte quando era criança, numa costureira «à moda antiga», pelo que experiência não lhe falta para saber distinguir a con­feção por medida do pronto-a-vestir. «Basta olhar para as costuras, já para não falar do forro. E depois é a forma como assenta no corpo. Uma cliente que ves­te na modista, tenha ela uma anca larga ou um peito grande, a roupa fica-lhe sempre bem. Não há ali na­da demasiado apertado ou demasiado folgado. Está à medida e isso diz tudo.» Também sabe distinguir as diferenças nas clientes que vestem num lado e nou­tro: «A mulher que vai à modista é exigente: além de coisas bonitas faz questão de ter coisas bem feitas. É uma mulher que quer qualidade nos acabamentos e nos pormenores, seja naquilo que se vê seja no que não se vê – como o forro, lá está.»

Em troca da qualidade do trabalho feito por Bernar­dette e por duas modistas ao seu serviço, as clientes ofe­recem-lhe fidelidade. Tem algumas há mais de 20 anos e as novas são conquistadas logo depois da primeira peça entregue. «Esta arte não corre o risco de acabar. Tem clientela, por isso tem futuro. Não vivo afogada em trabalho, mas o que tenho chega para estar ocupa­da de manhã à noite.» Não fossem as mazelas – dores nas costas, uma tendinite em cada ombro, uma cirurgia às mãos e os olhos cansados –, Bernardette só teria coi­sas positivas a dizer da profissão que exerce desde os 20 anos. Hoje tem 56 e tão cedo não abandonará a sua má­quina de costura, mais sofisticada e rápida do que a pri­meira – uma velha PFAFF que comprou no sítio onde se formou durante três longos anos. «Costumo dizer que os trapos já nasceram comigo e, sinceramente, não me vejo a largar isto. Vou continuar até as mãos já não pode­rem ou os olhos não verem.» Vai continuar por ela e pe­las clientes, que «não encontram em mais lado nenhum um trabalho de primeiro nível».

TALVEZ POR SER MAIS JOVEM, Diana Matias não acusa as mazelas de Bernardette, mas partilha com ela a paixão pela profissão que iniciou em Paris. Es­ta modista de 36 anos é também designer de moda com marca própria, Didimara, de que tem variados exemplares estrategicamente expostos em cabides no ateliê, para serem vistos pelas clientes que a ela recorrem para a roupa à medida. Entre um traba­lho e o outro, Diana não assume preferências: «Gos­to tanto de criar como de fazer roupa a pedido das clientes. Uma coisa completa a outra.» De facto, não haverá muitas modistas que tenham, como ela, uma perspetiva global do universo da moda: enquanto criadora de tendências, dá largas à sua imaginação, rabisca, experimenta através do desenho novos mo­delos, padrões e cores; enquanto modista aproxima–se da realidade das pessoas, deleita-se a tocar os te­cidos, a sentir-lhes a textura, a cortar, a coser à má­quina ou à mão, a fazer a prova enquanto tenta ler no rosto das clientes sinais de contentamento ou de desagrado.

O ateliê de Diana Matias está localizado a escas­sos metros da Sé de Lisboa e a dez minutos a pé do Chiado, aonde em tempos as pessoas se deslocavam para ir à modista e às mais afamadas lojas de tecidos – talvez por isso Ramalho Ortigão falasse da rua principal do Chiado como a «ladeira vaidosa», a que não faltavam locais de culto para comentar a osten­tação e a elegância no vestir e no porte. A literatura relata um século XIX e princípios do XX em que era costume as senhoras da alta sociedade mandarem copiar as cores e padrões impostos pelas revistas de França. Tal não escapou à mordacida­de de Eça que, exageros à parte, dizia que «a moda é que é uma religião» e que «a mo­dista reina, absorve tudo, não deixa tem­po para a menor ocupação ou curiosidade de espírito».

NESSA ÉPOCA, COMO AGORA, quem vai à modista gosta de estar bem por fora e por dentro, porque «uma roupa bonita sem um interior apresentável não tem qualidade». Quem fala assim, com o conhecimento de muitos anos a fazer roupa por medida e a trabalhar em parceria com lojas das me­lhores marcas de vestuário nacionais e in­ternacionais, é Paula Bernardo. Ao seu ate­liê, num rés-do-chão da Rua Jacinto Nunes, em Campo de Ourique, Lisboa, chegam pe­ças de pronto-a-vestir para arranjar, acer­tar, alargar e subir bainhas. Paula aceita-as por serem mais uma fonte de rendimento e porque lhe permitem aprender novas con­feções: «As boas marcas trabalham bem, fazem ótimos acabamentos. Basta ver o for­ro, que na generalidade dos casos é um sinal da qualidade da confeção ou da falta dela: se estiver bem cosido, sem linhas repuxadas e a fazer refegos, o tecido não fica picado. Is­to acontece muito nas costuras das bainhas e das mangas.»

De resto, esclarece a modista, são jus­tamente os acabamentos que encarecem uma peça à medida. Rodeada de botões de várias cores, tamanhos e feitios, encontrá­mo-la ao balcão a receber um vestido pa­ra transformar. As tranformações estão na lista de pedidos mais frequentes, quase a par dos vestidos de cerimónia. «Agora es­tá na moda e não é por causa da crise, por­que há transformações que custam mais dinheiro do que mandar fazer ou comprar uma peça nova. Há roupas de que as pes­soas não se querem livrar, preferindo pa­gar um pouco mais pela transformação do que deitá-las ao lixo, por exemplo fazer uma saia de um vestido, ou alterar com­pletamente o feitio de um casaco. Muitas vezes são roupas que foram usadas pelas avós. Ou então peças muito boas e caras.»

Seja para fazer transformações, roupa nova à medida ou apenas arranjos, a verda­de é que nunca como hoje se viu abrir tan­ta casa de corte e costura, o que parece indi­car uma vontade de recuperar a velha práti­ca de ir à modista. Clientes com vontade de usar peças únicas, pensadas por elas pró­prias e executadas por uma costureira à mo­da antiga, é coisa que não falta. Resta saber é se a procura se manterá a par da oferta.