Publicidade Continue a leitura a seguir

Marcados pela Guerra Colonial

Fotos: Leonel de Castro/Global Imagens

Publicidade Continue a leitura a seguir

Há 60 anos, com a Guerra Colonial, gerações de jovens portugueses foram forçadas a combater até vir a Liberdade. Nove mil morreram, 30 mil ficaram feridos, muitos com marcas profundas e definitivas. Mas vivendo sempre como homens inteiros que são.

Descrever por inteiro a guerra, a guerra ela mesma, é uma tarefa impossível. Até para os que a viveram na alma e na carne. Mais o será, ainda, para os que sofreram por terem alguém na família ou conhecerem quem lá andou, já para não falar dos que sobre ela apenas leram ou, na versão mais indolente, ouviram falar. Mais não há do que aproximações à forma como a guerra afeta profundamente os indivíduos, as sociedades, a humanidade. E há guerra desde que há gente. Se quem lá esteve regressou outra pessoa, podendo calar ou alterar (até sem querer) o que viu e viveu, o que sofreu e o que fez sofrer, o que perdeu e o que encontrou, quem não esteve lá só pode acumular informação e tentar discernir. É a sina de todos os que tentam reconstituir o passado.

Estas páginas, no mês em que se assinalam 60 anos sobre o início da Guerra Colonial (1961-1974), são a primeira expressão pública de um projeto, assente na fotografia documental e na recolha de testemunhos, que terá várias etapas. E contribuem para a cadeia de construção do conhecimento, trazendo à luz aqueles que, ao tempo, eram varridos para debaixo do tapete ou escondidos atrás de um biombo patriótico: os deficientes das Forças Armadas.

Fazendo uso de um processo fotográfico desenvolvido em meados do século XIX – ferrótipos de colódio húmido -, o retrato coletivo cobre a cronologia da Guerra Colonial, toca os três grandes teatros de operações (Angola, Guiné-Bissau e Moçambique), revela toda a espécie de marcas que alteraram radicalmente as vidas e os sonhos destes jovens de então: amputações, paralisia, cegueira, surdez, lesões internas, distúrbios pós-traumáticos de stresse (o mal invisível que afetou alguns 140 mil)…

As próprias imagens ajudam a perceber as razões de uma escolha aparentemente bizarra em tempo de massificação digital: enormes, antigas e pesadíssimas câmaras, alimentadas por um processo que obriga a sensibilizar a chapa, fotografar e revelar em apenas dez minutos. Porque assim eram as fotografias antigas (pensadas, cuidadas e custosas), o que vemos é a tremenda dignidade de homens inteiros, reinventados em vidas plenas que eles mesmos, ao perce-berem os ferimentos, tinham julgado perdidas.

Nesta caminhada temos encontrado homens extraordinários e bem-humorados, capazes de brincar com a própria condição a que jamais chamarão desgraça. Também outros sobre quem a sombra se mantém pesada. Homens reencontrados consigo mesmos por serem determinados, por terem famílias lutadoras e, em larguíssima escala, por se terem unido. A Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), cujo entusiasmo abriu portas a este trabalho, fez mudar leis e mentalidades, ajudou a criar laços inquebrantáveis e presta continuamente apoio a estes homens. Homens que a ditadura, como dissemos, escondia ainda mais do que a própria guerra.

De intruso em terra alheia a dirigente associativo

Abel Fortuna foi o último a entrar no navio “Angra do Heroísmo”, rumo à Guiné-Bissau. Não concordava com a guerra, sentindo, ao desembarcar, que era um intruso. Por ter fraca classificação em Mafra, deram-lhe a especialidade de minas e armadilhas. Antes do acidente que o deixou sem mãos e cego, viu outros camaradas mutilados e mortos. Ele próprio ouviu, no momento, que o davam como perdido. Depois, inconformado com os diagnósticos em Portugal, lutou para ir à clínica Barraquer, em Barcelona, onde viveu o “segundo nascimento”, ao recuperar boa parte da visão (que voltou a deteriorar-se muito). Já depois do 25 de Abril, casou-se e não retomou o sonho juvenil de ser economista, acabando por se envolver de corpo e alma na vida associativa. Preside à Delegação do Porto da ADFA.

Abel Fortuna, 71 anos
Vila Nova de Gaia
Biamputado braços / visão residual
Alferes – minas e armadilhas
Guiné-Bissau 1971

Os fantasmas do morto-vivo tombado em Porto Amélia

Ilídio Lázaro, trasmontano desde miúdo lançado nas lides do campo, nelas conhecendo a mulher de toda a vida antes de a tropa se meter ao barulho, é a ironia em forma de gente. Dado como morto num acidente de viação em Porto Amélia (Pemba), no norte de Moçambique, estava numa gaveta da morgue, quando um enfermeiro a abriu, vivo como a personagem bíblica com quem partilha o nome. Comando, viveu no mato tudo o que não conta, exceto por meias-palavras. Horrores que, por anos e anos, o faziam virar a cama, a meio da noite, e entrincheirar-se debaixo dela. Apesar de tudo, chegou a ponderar o alistamento na Legião Estrangeira. Foi para França, sim, mas para Estrasburgo, onde trabalhou numa grande fábrica de calçado.

Ilídio Lázaro, 71 anos
Carrazeda de Ansiães
32.ª C.ª de Comandos
Stresse pós-traumático
Moçambique 1972-1973

“Tratado que nem um cão” e dedicado ao coletivo

Em 1966, Francisco Janeiro tinha a quarta classe, tirou a carta de condução e empregou-se como motorista do presidente da Câmara de Montemor-o-Novo, que levou a Lisboa, em agosto, à inauguração da ponte sobre o Tejo. Sob essa ponte passou em fevereiro de 1970, a bordo do “Vera Cruz”, rumo a Moçambique. A mina que lhe mudou a vida pisou-a na zona de Mueda, Cabo Delgado, e ainda se revolta com o calvário dos hospitais militares, em especial o famigerado anexo de Campolide, onde foi “tratado que nem um cão”. Mas aí encontrou a madrinha de guerra Elisa, a sua mulher, que o conheceu “todo escavacado”. Arranjar emprego era um tormento e, ainda de baixa, lutou para completar o Ciclo Preparatório. Foi contínuo no Ministério da Educação, trabalhou 11 anos na Brisa e, depois, dedicou-se de corpo e alma à ADFA. Preside à delegação de Lisboa.

Francisco Janeiro, 73 anos
Montemor-o-Novo
Apontador de metralhadoras
Amputado perna / cego olho direito
Moçambique 1970

O momento em que um homem decide nascer de novo

“Um molho de brócolos” é como Armando Alves se descreve a chegar ao Hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques (Maputo). Tinha pisado uma mina perto da fronteira de Moçambique com o Malawi, as pernas já lhe haviam sido amputadas em Tete e continuava em estado crítico. Nada disso sonhara o menino que deixou a aldeia, em Montalegre, para ser padre, que largou o seminário e foi para Lisboa trabalhar e estudar, que começou jovem uma carreira nos seguros, que quis ser advogado. Foi no dito hospital que, após duas semanas, recuperou ânimo e disse: “Eu nasci hoje!”. Assim se deu à reabilitação, que fez em Hamburgo (como muitos deficientes militares portugueses) e, depois, a uma vida cheia: pessoal, profissional e associativa. Vive em João Pessoa, no Brasil, onde a filha é juíza.

Armando Alves, 70 anos
Montalegre
Furriel de artilharia
Biamputado pernas / surdez parcial
Moçambique 1973

Feliz a lutar por uma normalidade diferente

O tenente-coronel Silvério Rodrigues ficou no Exército até à reforma. Colocado no Presídio Militar, soube que no Bilhete de Identidade se lia “não sabe assinar”. Indignado (cego e sem braços, sabia e não podia), o regente agrícola (tinha emprego prometido numa multinacional depois da guerra) pediu a um recluso, serralheiro, a peça que encaixa na “pinça de Krukenberg” (cotos do rádio e do cúbito) e lhe permite escrever o nome. Idêntica ao garfo com que come. Trabalhou na ADFA, destacado pelo Exército e como voluntário, e é autónomo. Sendo os quatro filhos adultos e lançados na vida, reside na aldeia onde nasceu, com Madalena, com quem casara meses antes de ser ferido por uma granada, ao preparar uma instrução em Bolama, e que lhe deu um apoio insuperável. Não chegou a combater.

Silvério Rodrigues, 73 anos
Sardoal
Alferes de infantaria
Biamputado braços / cego
Guiné-Bissau 1971

Vida cheia e realizações do “homem do microfone”

Queria ser professor de História ou Geografia, mas, por falta de recursos, ficou-se pelo Magistério Primário, um curso mais breve e barato. E ensinou crianças durante quatro anos antes de ir para a guerra, incluindo na terra natal, Fermentelos. Voltou a ensinar depois de regressar à “metrópole” e de superar as deficiências (amputação, surdez do lado direito, perda de saco lacrimal, estilhaços por todo o corpo…). Ficou ferido ao tentar desarmadilhar oito granadas montadas em cadeia. Só uma rebentou, ou não estaria entre nós. Casou, foi pai e, no ensino, ocupou cargos regionais e nacionais, tal como no mundo associativo. Dirigiu (1979-80) o “Elo”, jornal da ADFA, e era “o homem do microfone”, pela facilidade de falar em público.

João Vasconcelos, 76 anos
Águeda
Furriel de infantaria
Amputação / surdez parciais
Angola 1968

Escrever para superar a opressão do pessimismo

Chama-se Albertino Flores Santana. Sá Flores é pseudónimo literário. Publica desde os anos 1960, quando frequentava a Fundação Shine, em Lisboa, e foi estimulado pelo dramaturgo Bernardo Santareno, ali psiquiatra. Essa instituição salvou este homem, marcado por um acidente, em Tete, com o camião militar em que seguia. Só veio a cegar totalmente já em Lisboa, na sequência de traumatismo e infeção microbiana, e o referido instituto deu-lhe tudo o que o Exército não soube dar. Alguma autonomia, uma via para exorcizar os seus fantasmas (“há momentos em que o pessimismo é terrível”), a capacidade de arranjar emprego num escritório, uma mulher para toda a vida (depois três filhos e sete netos). Um dos que foram para África logo no início da guerra, mobilizado quando estava a dias de terminar o serviço militar, iniciado em 1959.

Sá Flores, 81 anos
Ferreira do Zêzere
Soldado de infantaria
Cego
Moçambique 1961-1963

Os rostos visível e invisível da deficiência

A deficiência de Manuel Lopes de Sousa tem dois rostos. Um, visível e mecânico, é a cadeira. O outro, revelado em radiografias, é a bala que ainda tem alojada na coluna. Era já casado quando o levaram a combater, deixando mulher e uma filha por nascer. A única filha que tem. Em Moçambique estava estacionado junto ao Lago Niassa e a missão que lhe mudou a vida era levar o correio a outra companhia. Duas viaturas, uma Berliet e um Unimog, foram os alvos da emboscada. O furriel, na cabina, morreu. Manuel ia sentado atrás. Já internado em Lisboa, recebeu dos mais velhos apoio e ânimo. Diz que não chorou pelo que lhe aconteceu. E reformulou a vida. Em novo, tinha trabalhado numa fábrica de calçado. Decidiu montar uma oficina de sapateiro no fundo do quintal. Assim se governou.

Manuel Sousa, 76 anos
Santa Maria da Feira
1.º cabo CCS
Paraplegia
Moçambique 1966-1967

Um amor clandestino mais forte do que o resto

A história de José Dias Silva é também a de Cidália. O casamento, à revelia da família dela, foi notícia no JN, e o amor que vinha de antes da guerra gerou dois filhos e três netos, abrindo caminho ao resto da vida. Depois de ele regressar, os encontros eram clandestinos, pois as marcas deixadas por “uma mina daquelas da Rússia” pareciam fechar portas ao futuro. De facto, o soldado cego e mutilado, que trabalhara desde novo em carpintaria, queria ser motorista de camiões TIR, e esse sonho morreu. Mas da guerra, que ele percebeu injusta mal lá chegou, nasceram laços fortes, revividos desde o primeiro convívio anual, de que foi “o cabecilha”. Desde que a ideia germinou com o reencontro fortuito, banhado em lágrimas, com um antigo camarada, num corredor de hipermercado.

José Silva, 72 anos
Valongo
Sapador minas e armadilhas
Biamputado braços / cego
Guiné-Bissau 1971-1973

A música, a metralha e a guerra da qualificação

A música esteve sempre com Albino Loureiro, e os sons da metralha em Cabo Delgado, Moçambique, foram um duro interregno. Ter um pároco progressista na terra natal, Sendim (Felgueiras), levava o grupo de que ele fazia parte a cantar, em passeios que faziam, músicas de José Afonso e outras. Na vida do pós-guerra, vários agrupamentos musicais fizeram parte da vida deste homem. Mas a guerra dele, depois de uma mina o ter mutilado e cegado de um olho, quando ia buscar as tropas que o renderiam e aos seus camaradas, foi a da qualificação. Foi para África com a quarta classe e operário no setor do calçado, mas, depois, quis estudar. Acabou por fazer o Magistério Primário e ensinou crianças durante mais de um quarto de século.

Albino Loureiro, 72 anos
Felgueiras
1.º cabo de artilharia
Amputação perna / cegueira olho direito
Moçambique 1970